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Hibridação e identidade cultural: Deus e o diabo na terra do sol 40 anos depois

O argumento aqui traz como premissa a contraposição geral entre hibridação cultural enquanto absorção recriadora de influências e uma mera transposição automática de tendências, partindo do conceito de hibridação utilizado por Néstor-Garcia Canclini e, indiretamente, por Angel Rama e aplicando-o ao caso do cinema brasileiro.

E então my friends?
Bastou vender minha alma ao diabo,
E lá vem vocês seguindo o mal exemplo,
Entrando numas de vender a própria mãe.
Alguém se atreve a ir comigo além do shopping center, heim, heim?
¿Donde estan los estudiantes,
os rapazes latino-americanos,
os aventureiros, os anarquistas, os artistas,
os sem-destino, os rebeldes experimentadores,
os benditos e malditos, os renegados, os sonhadores?
Esperávamos os alquimistas,
E lá vem os arrivistas,
Consumistas, mercadores
(…)

Belchior


(1) Os objetivos: a) indicar Deus e o diabo na terra do sol, que faz agora 40 anos e é tipicamente um clássico do cinema brasileiro, como exemplo privilegiado de hibridação cultural no sentido apontado; e b) indicar porque haveria hoje necessidade de resgate da atitude artística espelhada no filme de Glauber Rocha.

Deus e o diabo na terra do sol: 40 anos de um clássico

Deus e o diabo na terra do sol completa 40 anos em 2004. A seu autor o Festival de Cannes reservou este ano uma homenagem, e o próprio filme será exibido numa mostra retrospectiva do cinema brasileiro. Talvez o filme mais revolucionário já feito no Brasil, em todos os sentidos, seu aniversário acontece no momento dos 40 anos da "revolução" (golpe) de 1964. Trata-se reconhecidamente do maior clássico do cinema brasileiro.

Mas por que, afinal, ver os clássicos? Por que revê-los após alguns anos? Ítalo Calvino colocou a questão acerca do porquê da frequentação dos clássicos no âmbito da literatura, o que não impede de transplantarmos sua concepção do livro para o filme, da literatura para o cinema. Vejamos se o filme de Glauber passa no "teste" reservado para autores como Charles Dickens, Henry James, Jorge Luis Borges, dentre tantos outros clássicos da literatura. Calvino apresenta algumas tentativas de resposta à questão "Por que ler os clássicos?" Dentre elas, encontramos estas duas, resultando numa definicão à primeira vista circular:

"(…) Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira.
(…) Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura."(2)

Essa segunda resposta parece mais abstrata, mas quer dizer apenas que, quando abordamos um clássico pela primeira vez, sabemos mais ou menos conscientemente o que esperar dele. O horizonte de seu estilo e de suas idéias vai se expandindo com o passar do tempo, sedimentando-se na própria cultura onde foi inicialmente gerado, impulsionando ou modificando algum aspecto dela. Não precisamos dizer que Deus e o diabo na terra do sol habita o imaginário de todo e qualquer cinéfilo ou cineasta brasileiro e talvez mundial; e, mesmo dentre aqueles que nunca viram o filme, há certamente muitos que já "ouviram falar", o que significa de certo modo ter já um contato indireto com ele.

Sem falar das citações diretas ou indiretas a ele em outros filmes, desde O desafio (1965), de Paulo César Saraceni, até Abril Despedaçado (2001), de Walter Salles, passando pela homenagem que lhe prestou Nelson Pereira dos Santos ao final de Cinema de lágrimas (1995). Assim, ao entrarmos em contato com o filme pela primeira vez, como acontece com qualquer clássico, ele nos parece já algo familiar.

Por sua vez, a primeira das respostas citadas remete-nos ao caráter inesgotável de um clássico. Ele é dotado de uma riqueza temática e estilística tal que, por mais ricos que saiamos de um primeiro contato, a fonte permanece jorrando. O clássico é algo que atravessa o tempo e desafia novas leituras, mesmo feitas quando já é outro o cenário das idéias que serviram de pano de fundo para sua criação. Eis o que é mais claramente válido hoje para Deus e o diabo na terra do sol. Gostaria aqui de tentar elucidar por que.

Às vezes se ouve comentários sobre o Cinema Novo dizendo que "aquilo era muito interessante na década de 1960", mas que hoje tudo parece "chato", "obsoleto", "ultrapassado". De fato há uma distância muito grande entre aquela esperança de transformação da realidade através da atuação artística direta, presente sobretudo na primeira fase do Cinema Novo, antes do golpe, e a situação atual do país e do mundo. Já não conseguimos hoje acreditar em possibilidades de transformação em larga escala do modelo de estruturação política e econômica da sociedade.(3) Sentimos no máximo uma nostalgia daquela época em que os artistas acreditavam que poderiam "mudar o mundo".

Gostaria, no entanto, de acreditar que, se nossos problemas são novos, pelo menos algo da atitude estética do Cinema Novo, especificamente de Glauber Rocha em Deus e o diabo na terra do sol, pode se manter hoje como uma fonte de inspiração. Se soubermos adaptar essa atitude para o nosso tempo, talvez (re)acessaremos aí o valor do filme e possamos resgatar a riqueza que lhe é própria enquanto clássico do cinema brasileiro.

Deus e o diabo na terra do sol há 40 anos

A chave do Cinema Novo encontrava-se na idéia de uma política de autores adaptada à realidade do cinema no Brasil. Encontramos essa idéia já na Introdução da Revisão crítica do cinema brasileiro, que Glauber Rocha publicava em 1963. Na ocasião de uma conversa com Glauber, registrada por Alex Viany, Nélson Pereira dos Santos definia assim a idéia básica da "política de autores" e sua especificidade no contexto brasileiro:

O importante, para um autor de filme, é saber o que quer dizer: ele não precisa conhecer objetivas, nem densidade de filme, nem sensibilidade, nem banho, nem não-sei-o-quê, não precisa saber nada daquela série de problemas que eram acrescentados ao trabalho de direção para impedir que aparecessem mais diretores. Era uma mistificação da profissão. O importante é o sujeito saber o que quer. Em função disso comandará uma equipe... Aqui no Brasil, curiosamente, os autores sempre tiveram, em tese, a máxima liberdade; não tinham, nunca tiveram, diante deles, essa estrutura legal, industrial, sindical. (4)

O autor do filme é, então, concebido menos como um técnico que como um pensador, um intelectual comprometido com as grandes questões de seu tempo. No caso brasileiro a "grande questão" era a da identidade nacional. A "questão" por trás de filmes como Vidas Secas, O padre e a moça, Deus e o diabo na terra do sol, Os fuzis, Ganga Zumba, A hora e a vez de Augusto Matraga, Terra em transe dentre tantos outros tão conhecidos e tão importantes, era a de fornecer um retrato e, mais ainda, uma reflexão sobre as características do povo brasileiro e de sua cultura, possível apenas quando o cinema deixasse de imitar os padrões internacionais do produto cinematográfico construído segundo moldes industriais. Isto afetava sobretudo o aspecto temático dos filmes do Cinema Novo. Neles, é a fala popular, seus trejeitos, suas idiossincrasias identificadoras o que deveria ser buscado, não as estilizações e os signos identitários superficiais ou mesmo exóticos, angariados quando se trata de produzir um cinema segundo demandas comerciais internacionais. Mas uma mudança temática exige uma mudança estética, sob pena de aparecer como mera moda ou "tendência".(5)

Para Glauber Rocha, a tudo isto acrescentava-se a preocupação de construir uma cinematografia caracteristicamente brasileira, um problema que foi se transformando, com seu amadurecimento artístico e crítico, na idéia de formar uma estética cinematográfica do Terceiro Mundo. À "grande questão" relativa à busca de uma identidade nacional no nível temático somava-se, então, num nível propriamente estético, a "questão" da busca de uma maneira de fazer cinema que expressasse os próprios procedimentos de construção da realidade e, com isso, captasse mais os processos de construção de identidade que a própria identidade, enquanto algo estático e dado a priori.(6)
Ao vermos Deus e o diabo na terra do sol reconhecemos as diferentes referências culturais angariadas por Glauber Rocha nesse procedimento em que a identidade nacional estava sendo colocada como problema.

A princípio três grupos de referências saltam aos olhos. O primeiro é o das representações do sertão advindas de uma tradição literária específica que vai de Euclides a Guimarães Rosa, passando por José Lins do Rego e Graciliano Ramos. O segundo são as referências musicais que incluem o popular (cordel) e o erudito (Villa-Lobos). O terceiro grupo é o das influências teatrais, sobretudo de Brecht, cujo teatro vinha sendo absorvido pelo novos grupos brasileiros na década de 1960.

Mas isto é apenas uma parte da história. Conforme outra conversa registrada também por Alex Viany, envolvendo agora Glauber Rocha, o próprio Alex Viany, Walter Lima Jr., dentre outros, reunidos para debater especificamente Deus e o diabo na terra do sol, referências estrangeiras decisivas não faltam ao filme. As técnicas de Visconti, Eisenstein, Godard, John Ford são indicadas pelo próprio Glauber como suas principais influências.
Ismail Xavier e José Carlos Avellar, dentre outros, apresentam análises fundamentais do filme, dando destaque a essa diversidade de referências populares e eruditas.(7) Quero ressaltar aqui mais propriamente a busca dialética de absorção e reapropriação ativa de influências estrangeiras na gênese do filme. Interessa-me mais a atitude artística espelhada ali.

Penso que ela seria útil ainda hoje, diante do tipo de cinema que se tem feito atualmente no Brasil, de um cinema que, quando se diz autoral, tem dispensado algumas vezes o trabalho de renovação estética, obedecendo mais a tendências que a impulsos criativos, e, quando feito para o grande público, é cinema industrial.(8) É a fim de tentar expressar essa atitude presente na gênese de Deus e o diabo na terra do sol que será indicada nele a presença de um processo de hibridação cultural, no sentido de uma absorção recriadora de influências, por si mesma contrária a uma mera obediência ou transposição automática de tendências.

Por que rever Deus e o diabo na terra do sol?

Hibridação implica, segundo definição de Nestor-Garcia Canlini, "processos socio-culturais nos quais estruturas ou práticas culturais, que existem de forma separada, combinam-se para gerar novas estruturas, objetos e práticas."(9) Se hoje vivemos num mundo em que a globalização econômica força um contato ainda maior entre culturas nacionais, levando a uma quase quebra da cisão rígida entre o que é local e o que é global, o conceito de hibridação se torna proeminente para a compreensão do que acontece nos pontos de contato entre as culturas. Quais as estratégias ainda plausíveis para, diante da avalanche de estruturas e práticas culturais que não originariamente as nossas, adotar ainda uma postura crítica, separar aquilo que nos serve daquilo que nos oprime culturalmente? São questões como essas que figuram dentre as "grandes questões" de nosso tempo; e, enquanto o cinema estiver comprometido com as "grandes questões", a ele deverá interessar uma resposta. Gostaria de mostrar que uma resposta pode ser encontrada mesmo em uma obra situada noutro pano de fundo histórico, quando as "grandes questões" eram outras. Gostaria de indicar algumas estratégias de hibridação presentes na gênese desse clássico que é Deus e o diabo na terra do sol, as quais podem ainda nos ensinar muita coisa, mesmo hoje.

Quando vemos em Deus e o diabo na terra do sol a mescla de referências eruditas e populares, externas e internas ao processo propriamente cinematográfico, estamos a meio caminho de conceber a obra como um objeto artístico híbrido, no sentido indicado na definição acima. Cordel e cancioneiro popular, música erudita, "alta" literatura, cinema moderno são práticas (ou estruturas) culturais que existem em separado e passam a combinar-se no filme. Mas esse reconhecimento de influências diversas não basta como critério para dizermos que ocorre ali uma hibridação que vai além de uma mescla passiva de referências. É preciso ir além do reconhecimento e da descrição dos elementos da mistura e tentar captar o próprio processo de hibridação, a própria estratégia adotada por Glauber na gênese do filme.

Para esclarecer este ponto, parece válido estabelecer uma analogia com aquele processo específico de hibridacão que Angel Rama, num texto relativamente conhecido, aponta em parte da literatura regionalista latino-americana em meados do século XX. Rama fala de um processo de transculturação quando o artista de uma cultura dita "periférica" consegue absorver de forma ativa as influências externas, advindas dos centros culturais "hegemônicos". Transculturação designa uma plasticidade cultural que se opõe tanto a uma vulnerabilidade cultural, marcada pela absorção passiva de influências e aplicação automática de modismos, quanto a uma rigidez cultural, marcada por um fechamento naquilo que seria um elemento "característico", "próprio". Ambas as atitudes fecham a possibilidade de diálogo entre culturas.

Transculturação, por sua vez, esclarece o autor, significa uma "destreza em integrar em um produto a tradição e as novidades", atitude própria daqueles que não se limitam a um sincretismo por mera conjugação de abordagens de uma e de outra cultura, mas, compreendendo que cada uma delas é uma estrutura, entendem que a incorporação de novos elementos de procedência externa deve ser alcançada mediante uma rearticulação total da estrutura cultural própria (…), apelando para novos enfoques dentro de sua herança." (10)

Mas o que seria absorver influências de uma forma ativa? O exemplo dado por Rama, mais do que pertinente para a analogia que estamos buscando, é a literatura de Guimarães Rosa, cujo Grande sertão: veredas é referência fundamental para Deus e o diabo na terra do sol. Enquanto na literatura regionalista anterior havia uma tentativa de retratar o povo desde um ponto de vista "objetivo", isto é, com procedimentos textuais onde a voz do povo e a do escritor apareciam nitidamente separados (um exemplo seria Os sertões de Euclides da Cunha, onde a fala do narrador positivista é claramente separada da do sertanejo), no regionalismo de Guimarães Rosa há uma nítida fusão de perspectivas, algo que já se reconheceu ao se descrever Riobaldo, personagem central do Grande sertão: veredas, como um "jagunço letrado"(11). Aqui o narrador é ao mesmo tempo intelectual e sertanejo, erudito e popular, e as diferentes estruturas de construção da realidade dialogam no texto. O narrador, enquanto jagunço, traz consigo a visão de mundo popular; enquanto letrado, carrega as influências das experiências estético-literárias de vanguarda. Estas não são, portanto, angariadas passivamente: se não pudessem dialogar com a fala e com a visão de mundo sertaneja não teriam valor algum para representar as veredas do Grande Sertão.

Gostaria de indicar um trabalho análogo presente no processo de criação de Deus e o diabo na terra do sol a fim de esclarecer que é justamente na direção de uma hibridação enquanto transculturação ? que entendemos agora como absorção recriadora de influências ? que este processo aponta.

Glauber Rocha indica, dentre as influências estrangeiras decisivas para a gênese de Deus e o diabo na terra do sol, a técnica de montagem presente nos primeiros filmes de Godard, especialmente Acossado (1959) e Uma mulher é uma mulher (1961???).(12) A título de ilustração comparemos duas seqüências, uma de Acossado ? quando o personagem Michel mata um policial ? e outra de Deus e o diabo na terra do sol ? quando o vaqueiro Manuel mata o coronel Morais.

Em Acossado (1959), Michel, após roubar um carro, dirige em alta velocidade numa auto-estrada, nos arredores de Paris. Ao se ver diante de uma blitz policial, não apenas deixa de parar como também acelera ainda mais, no que é perseguido por um policial rodoviário. Após tomar um desvio, Michel pensa ter despistado seu perseguidor e pára o carro. Logo, porém, chega o policial, que ainda continuava em seu encalço. A partir daqui as coisas se precipitam bruscamente. Michel, que já havia saído do carro, volta para perto dele e, estendendo a mão, busca uma arma, que está no porta-luvas. Um corte e o próximo plano já nos mostra a mão de Michel, segurando o revólver. Outro corte e agora ficamos apenas com a imagem da mão ocupando todo o quadro. O próximo corte é ainda mais abrupto: vemos apenas o policial caindo para trás, num barranco, enquanto ouvimos o som ? não sincronizado ? de um tiro. Mais um corte seco e já estamos vendo Michel correndo num descampado. Só então a decupagem volta ao "normal", com uma fusão marcando a transição para a cena em que veremos Michel de volta a Paris, encontrando-se com sua amada Patrícia.

Pois bem, antes de descrever os planos com os quais Glauber Rocha resolve a seqüência do assassinato do coronel Morais e a conseqüente morte da mãe do vaqueiro pelos jagunços, seqüência onde a utilização da mesma técnica de Godard é mais visível, vale aqui reproduzir uma parte da conversa entre Glauber, críticos e outros cineastas, mencionada acima. Trata-se de um "caso" originariamente contado por um certo Pedrinho Dundum, pistoleiro de Cocorobó(13) e recontado Glauber:

Minha terra, Conquista, é uma terra que tem muito crime; e o sujeito que narra histórias de crime costuma dizer que num abrir e fechar de olhos acontece muita coisa. (…) Pedrinho Dundum é um pistoleiro lá de Cocorobó, que o Walter [Lima Jr.], aliás, também conheceu. E ele me contou que estava num bar (…) e entraram dois sujeitos que começaram a aborrecer o pessoal com impropriedades. E ele dizia assim: "Não mexe comigo, me deixa em paz, e tal." E ele disse assim: "Os homens começaram a insistir, começaram a insistir e, aí, quando eu menos esperei, olha o miolo dos homens colado na parede." Quer dizer: ele atirou nos caras e arrancou os miolos deles pra parede. Quer dizer: isso é o tipo da narrativa que eles têm, altamente violenta e em elipse. Portanto, aquela cena da morte do coronel [Morais, em Deus e o diabo na terra do sol], que era uma coisa profundamente dramática, mas uma coisa que se desenvolvia com grande rapidez, quando o vaqueiro nem tem consciência do que acontece, é um lapso de tempo ligado a essa tradição narrativa de num-abrir-e-fechar-de-olhos. (14)

No filme, a seqüência do assassinato do coronel Morais por Manuel começa com um longo plano seqüência, ambientado na feira. Manuel se aproxima vagarosamente pela esquerda. Ao fundo os jagunços; no canto direito do quadro, parado, imponente, o coronel. Tudo se passa a princípio num "tempo real". Manuel conversa de longe, propõe a partilha. O coronel nega. Após objeção de Manuel à recusa do coronel em cumprir o trato da partilha, o coronel volta a impor seu poder: "A lei tá comigo!". Manuel se aproxima, enfrenta o olhar do outro: "Mas que lei é essa que não proteje o que é meu?" ? "Qué discutí?", prossegue o coronel. Manuel se afasta novamente. Há uma lentidão de gestos e uma tensão contida em cada palavra. "Não sinhô...", é a resposta de Manuel. Mas ele insiste em não se resignar: "Dá licença outra vez…". E a resposta: "Tá me chamando de ladrão?"; ao que se segue: "É o senhor quem tá falando...". Em primeiro plano vemos Manuel se virando e se abaixando (como em várias outras vezes se virará e se abaixará, diante do beato e de Corisco). Começa a apanhar do chicote do coronel. Daqui tudo se precipitará rapidamente. O tempo distendido do longo plano-seqüência dá lugar a planos curtos, descontínuos, elípticos. Tudo se passa "num-abrir-fechar-de-olhos": após matar o próprio coronel, Manuel já está perto de sua casa, onde mata também dois jagunços, enquanto um terceiro chicoteia sua mãe até a morte. Rosa desesperada. Manuel mata o terceiro jagunço. Tudo para terminar em Manuel fechando os olhos da mãe. Um conjunto de acontecimentos que, se fossem filmados em "tempo real" demorariam mais que a conversa com o coronel. Por outro lado, há descontinuidades tanto espaço-temporais quanto sonoras.(15)


Eis aqui o ponto. São as mesmas elipses que apareceriam se Pedrinho Dundum estivesse ele próprio nos contando a estória! E a maneira de Glauber mimetizar a fala e a lógica narrativa do sertanejo era aplicando um método já usado por Jean-Luc Godard! Godard e Dundum sentados numa varanda de roça ou num café em Paris batendo um papo. O olhar de Glauber Rocha era, então, por assim dizer, um olhar voltado ao mesmo tempo para "dentro" (a tradição narrativa do sertanejo) e para "fora" (uma técnica de vanguarda do cinema, do primeiro filme de Godard, da Nouvelle Vague). Eis, portanto, como vai aparecer aqui aquela "questão" da busca de uma maneira de fazer cinema que expressasse os próprios procedimentos de construção da realidade e, com isso, captasse os processos de construção de identidade, de uma autocompreensão do sertanejo dentro do que ocorre no mundo, do modo como ele vê que as coisas ocorrem. Não se trata, portanto, de a cultura popular entrar apenas como tema do filme; há um certo modo de ver que é mimetizado pela câmera e sobretudo, nesse caso, pela montagem. Essa ênfase em captar cinematograficamente processos de construção da realidade (no caso, de narrativa) permite apreender os próprios modos de construção de identidade, mais que uma expressão de uma "identidade" dada de antemão, portanto, abstrata e estática. Por outro lado, o fato de a mimesis da narrativa popular entrar na dinâmica de um diálogo com experimentações sofisticadas da vanguarda cinematográfica cria uma relação com essa cultura que não é apenas descritiva, mas também crítica. Podemos, portanto, extrair duas lições importantes a partir desse exemplo.

1. As técnicas e os métodos estrangeiros serviam em Deus e o diabo na terra do sol apenas como meios de expressão de um processo cultural real e vivo e não como fins em si mesmos. Se olhamos para a realização e parte da crítica, sobretudo na mídia não especializada, de cinema brasileiro contemporâneo vemos que se vem em geral adotando como telos a qualidade técnica, cujo padrão advém das grandes produções, sobretudo dos filmes norte-americanos. Em nome da "qualidade", ou melhor, na busca dela como um fim em si mesmo, muito pouco se tem buscado inventar ou reinventar. Como inovar se o parâmetro de qualidade técnica está dado de saída? Nesse contexto, vale lembrar que a atitude de absorção recriadora de influências adotada por Glauber Rocha se opunha àquela de adoção automática de tendências, sejam elas do cinema industrial, sejam até mesmo do cinema de vanguarda. O próprio Glauber criticava a atitude artística de Mário Peixoto espelhada em Limite (1930-1931). Para Glauber, tratava-se ali de uma imitação passiva das técnicas da vanguarda européia, sem uma preocupação em repensá-las a partir de um confronto com nossas cultura e visão do mundo. Em Deus e o diabo na terra do sol, ao contrário, um método como o de Godard servia, como vimos, somente porque havia afinidade entre a estrutura narrativa elíptica que ele permite produzir e as elipses já vigentes na narrativa oral sertaneja. (16)

2. Além disso, o popular não é visto em Deus e o diabo na terra do sol como um lugar privilegiado onde encontramos algo "espontâneo" e, com isso, ou válido a priori, sem demandar reflexão de quem "chega" até ele, ou então representado enquanto algo "exótico", fruto de uma cultura "primitiva".(17) Ora, seria no mínimo uma atitude etnocêntrica pensar que a cultura popular não expressa, a seu modo, uma racionalidade. A imagem do povo elaborando um modo de expressão folclórica "pura" ou "espontânea" não deixa de ser uma visão confortável; enquanto o artesão, o cantador, o sertanejo etc. são pensados como "ingênuos", "puros", "primitivos" ? algo que não se tem evitado em filmes brasileiros mais recentes ambientados no nordeste ?, a atitude em relação a eles revela ? ainda que boas as intenções ? uma pretensa superioridade. Significa dizer que eles não têm uma racionalidade própria; que apenas nós, que lhes damos voz dentro de nossa cultura, a temos (mesmo quando este reconhecimento leva a lamentá-la, em certos casos). Ora, uma relação mais dinâmica com a arte popular seria aceitar que, sim, o artesão, o cantador etc. refletem sobre seu trabalho, pensam sua arte, embora a racionalidade prática presente nessa reflexão siga outros parâmetros valorativos, sendo portanto uma outra forma de racionalidade. Quando reconhecemos que há no popular um modo de pensar, que a cultura popular produz também uma visão de mundo, o diálogo se abre entre nossa racionalidade e a dele. E onde há diálogo há possibilidade de um aprendizado mútuo. Mas, enquanto a representação se dá ou bem segundo nossos parâmetros (vestindo o povo com roupas e falas e trejeitos que são os nossos, como acontecia freqüentemente antes do Cinema Novo e às vezes ainda hoje), ou bem segundo parâmetros de uma pretensa pureza "exótica" e estereotipada, o que não deixa de ser aquela atitude romântica e um tanto paternalista que por vezes ancora o modo de representação do povo no cinema brasileiro contemporâneo, estamos longe de um diálogo cultural e, portanto, de um aprendizado, e mais ainda de uma expressão de nossos diversos modos de ser e pensar.

Para concluir

Sem hibridacão, no sentido que se tentou indicar aqui a partir do exemplo de Deus e o diabo na terra do sol, podemos dizer, utilizando a conhecida frase de Paulo Emílio Salles, que "nada nos é estrangeiro, pois tudo o é".(18) A frase alerta-nos para o fato de que, se tomamos o que é estrangeiro sem olhos próprios, nunca desenvolvemos o nosso olhar; e mesmo quando olharmos o que é nosso (no nível temático), ele nos aparecerá com ares estrangeiros (no nível estético). Por outro lado, fechar os olhos para tudo o que é estrangeiro e sair procurando um olhar "puro", "originário" seria ingenuidade. Hibridar seria, pelo contrário, uma capacidade para absorver o que é estrangeiro com um olhar próprio, capaz de reelaborar criativamente as influências. No caso do cinema, absorver técnicas para dar expressão para um olhar que, se está ausente, precisa ser construído.

Daí a construção de uma identidade cultural passar pela construção de um olhar e não a tentativa de procurar um olhar pronto e "puro". Então, se Glauber Rocha enxergava afinidade entre a maneira de falar do sertanejo, lacônica porém eficaz para formar uma visão da realidade, e a técnica de produzir elipses por meio daqueles jump cuts dos primeiros filmes de Godard, isto permanece hoje um exemplo. Olharmos para esse processo de hibridação em Deus e o diabo na terra do sol é uma forma de revermos esse clássico de modo a ouvir o que ele ainda tem a nos dizer.

E o que o processo de hibridação presente na gênese do filme tem a dizer ao cinema brasileiro atual? Ora, que a "realidade" nacional a ser buscada é algo que não está dado, cenário morto, grátis, pronto para ser filmado; que essa "realidade" nacional se constrói enquanto se filma, que o buscado se acha enquanto se busca. O cinema brasileiro, já se disse(19), tem estado mais voltado para a representação de um Brasil exótico e estático do que para a construção de um Brasil aberto a possibilidades; ocupa-se mais de uma identidade-para-o-outro do que de nossa identidade para nós mesmos. Faz filmes sobre um Brasil que está mais no imaginário estrangeiro que no nosso: o pré-moderno rural nordestino e o favelado urbano das metrópoles; humor e às vezes violência estilizada. O cinema atual brasileiro, com exceções aqui e ali, encontra-se "globalizado". Globalização cultural seria um estado oposto ao estado de hibridação. É o outro lado da moeda maniqueísta que opõe rigidamente cultura nacional e cultura mundial. Se hoje é démodé ou uma atitude fundamentalista falar de nação ou de nacionalismo, quase não há oposição ao globalismo, o que, em termos de cinema, significaria dizer que a palavra final, após um período de brava, mas inócua luta dos chamados "cinemas modernos", dentre eles o Cinema Novo brasileiro, seria mesmo a do modelo industrial e comercial de cinema. No sentido contrário a essa nova versão de entreguismo, o conceito de hibridação e a estratégia de hibridação específica encontrada em Deus e o diabo na terra do sol pode nos ajudar a pensar essas (ou pelo menos uma parte dessas) "grandes questões" de nosso tempo.

Para fechar

Gostaria, finalmente, de indicar, embora deixando-a em aberto, a questão sobre se podemos aplicar a mesma leitura feita acima do filme de Glauber Rocha? Indicando processos de hibridação criativa em sua gênese a filmes específicos do cinema brasileiro recente. Penso que Cidade de Deus (2002) se oferece como um candidato ideal, e isto porque não precisamos sair do plano da montagem para estabelecer um ponto de comparação. Com efeito, o filme flerta com técnicas de "vanguarda" em sua edição, por um lado, e busca uma temática própria ? a vida e a formação do tráfico na Cidade de Deus tais como descritos no livro de Paulo Lins, por outro. Mas as coisas não são tão simples. Se Fernando Meirelles e Daniel Rezende se apropriam de técnicas de montagem hoje possíveis apenas com o uso de recursos sofisticados de edição digital e tal como utilizadas um Guy Ritchie, por exemplo, assim como Glauber havia se aproveitado de técnicas utilizadas primeiro por Jean-Luc Godard, técnicas hoje possíveis apenas com o uso de recursos sofisticados de edição digital, é preciso perguntar se o resultado foi tão bem sucedido como seria de se esperar.

Não penso que seja muito simples uma avaliação. Em Jogos, trapaças e dois canos fumegantes (1998) e em Snatch (2000), por exemplo, os giros, acelarações e desacelerações na imagem, assim como os cortes rápidos, cumprem a função de produzir um certo humor, em cenas que explicitamente comportam esse humor: fracassos em trapaças e falcatruas, situações quasi burlescas etc. Ao transplantar técnicas como as usadas nestes filmes para situações não tão "engraçadas" como o assassinato sistemático de pessoas quando o bando de Zé Pequeno domina a Cidade de Deus ou quando Zé Pequeno se pergunta porque não matou Mané Galinha após ter estuprado sua namorada, o filme de Meirelles acaba arrancando risos em momentos que pediriam antes um pouco mais de reflexão. Isto não é dito aqui com o intuito de denegrir o filme em si, que tem alguns bons momentos de reflexão, como a cena em que Zé Pequeno obriga um pré-adolescente a atirar e matar uma criança, realizado quase todo em plano seqüência; ou quando a cena documental da entrevista de Mané Galinha à Rede Globo aparece no final, após os créditos, como que nos lembrando de que existe uma história real no pano de fundo da ficção.

Mas justamente por isso as técnicas de edição parecem deslocadas no filme, pelo menos em alguns momentos, o que nos leva a pensar que há aí alguma reprodução mais passiva de tendências do que recriação.(20)

 

1. CANCLINI, Nestor-Garcia. Culturas híbridas - estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 1990. Cf. também RAMA, Angel. Los processos de transculturación en la narrativa latinoamericana. In: ??? . La novela en America Latina: panoramas de 1920-1980. Fundación Angel Rama / Universidad Veracruzana, s/d. p. 203-234.

2. CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos? São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 11.

3. Hoje a esquerda elegeu um presidente de esquerda que decepciona a esquerda, mantendo o mesmo modelo político-econômico de seu antecessor. São tempos de decepção, onde a criação de esperanças esteticamente belas pode significar mesmo uma má-fé política, uma ilusão que pode consolar apenas os mais irrealistas.

4. Conversa entre Glauber Rocha, Nélson Pereira dos Santos e Alex Viany. In: VIANY, A. O processo do cinema novo. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999. p. 97.

5. Sobre isto, são inspiradoras algumas reflexões expostas por Walter Benjamin em "O autor como produtor", segundo as quais algumas manifestações artísticas (mais especificamente literárias) que se diziam de esquerda na época (década de 1930) revelavam-se, afinal, bastante conservadoras. Isto acontecia por que aderiam à idéia de transformação da sociedade apenas no nível das convicções e, com isso, dos temas, sem promover uma modificação no próprio "aparelho produtivo" artístico, isto é, o próprio estilo das obras. Sem renovação estética, nenhuma causa declarada no nível temático se sustenta como revolucionária. Se permanecem vivas tais reflexões é porque valem também para o caso do cinema e, mais ainda, para certas "causas declaradas" sem uma busca de renovação propriamente estética no cinema brasileiro contemporâneo.

6. Também Ivana Bentes lê assim a postura cinemanovista frente à questão da identidade nacional: "… os críticos estrangeiros, um certo pensamento de fora sobre o Brasil, é mais zeloso pela nossa identidade do que nós mesmos, no sentido de tentar fixar-nos, quase que congelar-nos num certo estereótipo de identidade nacional brasileira ? freqüentemente de uma maneira improdutiva. São mais zelosos do que nós próprios em relação a uma certa nacionalidade, uma nacionalidade da qual o Cinema Novo se afasta, essa a idéia de uma identidade nacional já pronta e forjada." Cinemais, nº 33, janeiro/março de 2003, p. 105.

7. Xavier, I. Sertão-mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Brasiliense, 1983. AVELLAR, J. Carlos. Deus e o diabo na terra do sol. A linha reta, o melaço de cana e o retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

8. Lembremo-nos que as maiores bilheterias do cinema brasileiro recente são devidas a fitas da principal produtora baseada em moldes industriais, a Globo Filmes.

9. CANCLINI, N.-G. Notas recentes sobre hibridação. Disponível em: <www.cholonautas.edu.pe/pdf/SOBRE%20HIBRIDACION.pdf>. Acessado em 08/02/2004.

10. RAMA, A. op. cit. p. 208.

11. GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso. São Paulo: Perspectiva, 1972.

12. Cf. Viany, A. op. cit. p. 71.

13. Cf. Viany, A. op. cit. p. 225 n.3.

14. Viany, A. op. cit. p. 59.

15. Para uma decupagem detalhada dessa seqüência, cf. os excelentes comentários de Ismail Xavier, na edição em DVD (Versátil Home Vídeo/ Rio Filme, 2003) de Deus e o diabo na terra do sol.

16. Podemos igualmente mencionar a (re)apropriação de Glauber do método de Eisenstein na sequência em que Antônio das Mortes mata os beatos em Monte Santo. Segundo Glauber há uma citação e, ao mesmo tempo, uma releitura da seqüência da escadaria de Odessa de O encouraçado Potenkim (Cf. Viany, Op. cit., p. 70). Mas o método do cineasta russo servia apenas como uma referência que precisava ainda ser repensada dentro do contexto do filme de Glauber para permitir retratar aquilo que fazia parte de sua temática. O transe místico dos personagens de Monte Santo não poderia ser expresso numa montagem racional, como a do assassinato em massa em Odessa. O povo de Odessa sofre opressão ostensiva, mas está consciente da injustiça do que está acontecendo; o povo de Monte Santo não tem essa mesma consciência: morre sem chegar a ela. A montagem de Glauber é ao mesmo tempo uma apropriação da de Eisenstein e uma releitura, por seguir uma linha anárquica, não uma linha lógica, progressiva e dialética.

17. Sobre a atitude crítica adotada frente ao popular, cf. XAVIER, I. op. cit., especialmente p. 114 ss.

18. GOMES, Paulo Emílio Salles. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 90.

19. Sobre isto, BENTES, Ivana. op. cit.

20. A imagem da câmera girando em torno de Buscapé, indicando a volta ao tempo da formação da Cidade de Deus, já indicada como uma cena destinada a se tornar antológica do cinema brasileiro, permanece como um bom exemplo de um uso que escapa a esta crítica.


* Formado em jornalismo pela Facom - UFJF; mestre em Filosofia pela UERJ e doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Atualmente desenvolve pesquisa como recém-doutor vinculado à FACOM-UFJF sobre "Imagem, cidade e identidade no cinema brasileiro moderno e contemporâneo", financiada pela FAPEMIG


Data de publicação: 04/10/04