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O Cinema Épico

Este artigo procura identificar e conceituar o gênero épico no cinema a partir da análise de suas prerrogativas estéticas e suas manifestações nas artes visuais, dramáticas e literárias, notadamente no filme Ben-Hur (1959) de William Wyler.

Abstratct

This article is about the concept of the epic genre on cinema, after the analysis of their esthetics prerrogatives, and their manifestations on visual, dramatic and literary arts, specially on the movie Ben-Hur (1959) directed by William Wyler.

 

I. Introdução: o gênero épico

Seria preciso um tratado de estética para situar correta e coerentemente a evolução de um estilo épico até o advento tecnológico do cinema, incluindo aí o uso próprio que a sétima arte faz deste gênero. Antes, talvez essa árdua tarefa possa ser abreviada se considerarmos não sua evolução enquanto linguagem, mas sim seus efeitos e sua catarse, o que esclareceria o fato do épico no cinema ser um dos mais contundentes e visitados estilos da indústria cinematográfica desde os primeiros anos de sua criação.

Este é de sobremaneira um de seus efeitos mais interessantes, e, sob alguns aspectos, também paradoxal. A arte chamada “épica” já foi explorada na literatura e na dramaturgia, mas em casos relativamente escassos se considerarmos seus primórdios estéticos que remontam há mais de dois mil anos; entretanto, na pintura e no cinema, artes eminentemente visuais (ou audio-visuais, no caso do cinema), seu uso é muito mais recorrente. E tal fato pode estar, muito significativamente, ligado á ideia de catarse aristotélica, em que a dimensão épica ganha forma visual concreta e atinge assim seus fins, seus efeitos catárticos em seu público.

Podemos então analisar aquilo que chamamos de cinema épico por dois aspectos: por aquilo que o constitui e por que seu estilo é tão marcante e explorado na linguagem cinematográfica.

No que diz respeito à própria forma épica, remontemos às suas origens: a primeira citação que procura definir os gêneros narrativos na poesia e na prosa está em Platão (1999), no Livro III da República, em que o filósofo, pela voz de Sócrates, cita um gênero totalmente imitativo, em que o poeta se coloca em 3a. pessoa narrando fatos de outrem, que coincide com o estilo dramático; um gênero em que o poeta é o próprio narrador, que coincide com o estilo lírico; e um gênero em que ambos elementos estão presentes, que coincide com a epopéia, que é justamente o gênero épico.

Se adentrarmos mais na análise por este ponto de vista, veremos que o estilo épico se traduz, em forma, pela mescla de poesia e drama, ou seja, coloca-se como unificador de dois elementos. Poderíamos julgar que não basta apenas mudar o narrador de um personagem para o poeta em certos momentos para caracterizar propriamente o épico, mas sem dúvida é um elemento presente no gênero. Antes, é preciso entender mais como uma simbiose, não necessariamente alternada, mas com ambos elementos presentes simultaneamente, como uma narrativa dramática contada de forma poética por seu autor.

Pouco mais tarde, Aristóteles (1973) também ensaia sua própria concepção destes estilos, tecendo sobre a tragédia as mesmas questões, ainda que de maneira um tanto abrangente. Em sua Poética, praticamente disseca, como um anatomista, os elementos constituintes da tragédia, comparando-os inclusive com outros gêneros, entre eles, e com certo destaque, o épico. A epopeia ou épica não está em evidência nesta obra por acaso, os elementos são os mesmos e competem para levar o troféu de gênero mais completo e profundo, o que talvez tenha sido algum embate típico de sua época. Mas, ao propósito da epopeia, ele diz: “Mas diferem a epopeia e a tragédia pela extensão e pela métrica” (ARISTÓTELES, 1973, p.466). E, mais adiante, continua:

“Na tragédia não é possível representar muitas partes da ação, que se desenvolvem no mesmo tempo, mas tão-somente aquela que na cena se desenrola entre os atores; mas na epopeia, porque narrativa, muitas ações contemporâneas podem ser apresentadas, ações que, sendo conexas com a principal, virão acrescer a majestade da poesia” (idem).

Apesar de ser uma definição estranha para os padrões modernos, surpreende-nos sua precisão na definição de caráter, e então temos aí dois elementos importantes, que caracterizam e constituem o gênero épico: a forma narrativa, mescla de drama e poesia, e a vastidão do assunto, que pode ser interpretado de diferentes maneiras (por exemplo, tanto a extensão da narrativa quanto a quantidade de informações, as ações simultâneas, que por sua própria natureza e necessidade, quase sempre andam juntas). Um outro elemento que Aristóteles destrincha sobre a tragédia é o personagem heroico, e que acaba por ter os mesmos pressupostos na epopeia, a saber, sua missão, seus conflitos, suas peripécias e desenlaces, até a chegada em seu objetivo final. Na tragédia, o cumprimento da missão coincide com a expurgação de seus percalços através da morte; já na épica isso nem sempre acontece, mas o elemento heroico se constitui da mesma maneira.

Sob este aspecto, é forçoso reconhecer que não são muitos os exemplos na história da literatura que poderiam ser enquadrados neste gênero de maneira pura e objetiva. À exceção dos próprios exemplos da literatura grega, como notoriamente o são a Ilíada e a Odisséia, na história ocidental poucas vezes se produziu um livro verdadeiramente épico.

Mas poderíamos nos perguntar se um épico atualmente teria as mesmas características, já que as formas dramáticas modificaram-se bastante desde a antiga Grécia. Entretanto, mesmo Anatol Rosenfeld (1994) em seu Teatro Épico, também coloca o gênero neste mesmo paradigma, conceituando o épico como, justamente, um estilo em que o narrador tem certa distância do objeto narrado, sendo, portanto, mais objetivo que as formas líricas ou poéticas. Isso tem como consequência a possibilidade de explorar um mundo mais amplo, já que o narrador não exprime estados da própria alma, e sim narra a dos outros personagens. “Na Épica pura verifica-se a oposição sujeito-objeto. Ambos não se confundem.” (ROSENFELD, 1994, p.27)

Walter Benjamin (1997) também faz menção ao gênero em um texto de análise do teatro brechtiniano, e que se intitula justamente Que é o teatro Épico? . Apesar do título, é um ensaio específico sobre aspectos particulares do teatro de Brecht, e não abarca senão a análise da concepção épica do autor alemão. Mas, ao contrapor certos exemplos brechtinianos a outros autores, incluindo a própria tragédia grega, Benjamin enfatiza que o teatro de Brecht, ao trazer a dimensão de que o teatro é uma representação e não uma ilusão fantasiosa, reconhece as condições de realidade “não com arrogância, como no teatro naturalista, mas com assombro.” (BENJAMIN, 1997, p.81) E continua, citando ideais socráticos em que “É no indivíduo que se assombra que o interesse desperta.” (Idem, p.81) O assombro citado, apesar da utilização neste caso em contexto específico, nos remete diretamente à mesma ideia quando o épico contrapõe universos gerais e particulares, como já percorridos, e que no cinema se traduzem pelo uso de imagens grandiosas contrapostas a imagens cotidianas.

É evidente a confluência dos conceitos, poderíamos até dizer coincidentes, da vastidão do assunto e o tipo de narração, conceitos estes ainda válidos, apesar de separados por um intervalo de mais de dois mil anos.

II. o épico no cinema

Podemos concluir então que o estilo épico, por se valer de uma narrativa em que o autor conta a história de outrem, e esta sendo uma história de grande extensão, abarcando a própria lírica intrínseca e a dramática das ações, é o gênero mais apropriado para grandes narrativas heroicas. Esta oposição marcante entre o sujeito e objeto é ideal para construir esta dimensão vasta em que se distingue um universo microscópico (o personagem ou herói) e um macroscópico (o objeto, o feito, os percalços, sua aventuras e seu desfecho). Ora, se na literatura e no teatro o épico não é um gênero abundante, o mesmo não pode ser dito do cinema: ao que parece, a arte cinematográfica é o mais adequado meio na difusão deste gênero, e em muitos casos em sua forma mais pura. Jean-Loup Bourget (1992) faz uma interessante comparação falando a este propósito que “Mesmo o talento de Flaubert, nas páginas de Salammbô, abundantes até a saturação, não conseguem nos fazer ver Carthage como o cinema nos faz ver Roma ou a Babilônia” (BOURGET, 1992, p.14)

O cinema, por conta de sua dimensão visual intrínseca, consegue dar forma concreta aos ambientes prescindindo de uma descrição literária, o que facilita a assimilação de certos contextos, principalmente os históricos. E sobre isso, também há aspectos interessantes a comentar: o cinema histórico foi um dos primeiros gêneros a ganhar forma e linguagem próprias no cinema, e sua própria denominação representa uma confluência das definições características do gênero épico, uma vez que, ao que se denomina em francês ‘Film historique’, em inglês a tradução é justamente ‘Epic film’.

Ao contrário da literatura, os exemplos são realmente abundantes; descontando-se filmes históricos curtos feitos na primeira década do século XX, a saga do épico de longa duração inicia-se pelo clássico italiano Cabíria (1914) de Pastrone, seguido de perto por The Birth of a Nation (1915) e Intolerance (1916) de Griffith. O imenso sucesso que estes filmes surtiram para os padrões de público da época, encorajaram os estúdios e os produtores a apostar alto em empreitadas similares, mas logo perceberam que os custos deste tipo de produção demandavam uma dose de risco financeiro por vezes limítrofe. Por este motivo, os temas mais explorados foram os bíblicos, por se tratar de histórias consagradas e de fácil assimilação por uma grande quantidade de pessoas, independente do grau de cultura ou posição social. Assim, era mais fácil garantir público e o retorno ao investimento da produção. Da grande quantidade de filmes épicos produzidos nesta época, podemos citar, dentre os mais relevantes, Leaves Out of Satan´s Book (1920) de Carl Dreyer, Sodoma e Gomorra (1922) de Michael Curtiz (ainda quando utilizava seu nome verdadeiro na Hungria, Kértész), o austríaco Samson and Delilah (1922) de Alexander Korda, as primeiras versões dos Dez Mandamentos (1923) e de Rei dos Reis (1927), ambos por Cecil B. DeMille, a primeira versão em longa-metragem (pois foi feito um curta em 1907) de Ben-Hur (1925), de Fred Niblo, e A Arca de Noé (1928) também de Michael Curtiz; e isso sem contar os que não tinham temática bíblica: Die Nibelungen (1924) de Fritz Lang e Napoléon (1927) de Abel Gance, que teve o mérito de experimentar pela primeira vez a tela panorâmica através de 3 projeções simultâneas, como uma antecipação do sistema Cinerama.

 Intolerance (1916) de D.W. Griffith

É bastante curioso que nos EUA, a onda de filmes épicos a partir do final da década de 50 tenha marcado o gênero segundo as dimensões da projeção, ao ponto em que até mesmo a sua definição leva em conta tal fator: além da grande extensão de tempo e da narrativa histórica de um herói, ainda é imprescindível, para que seja um épico, a tela panorâmica do cinemascope ou do 70mm. Essa característica é bem mais circunstancial que essencial, já que todos esses filmes anteriormente citado foram feitos em 35mm convencional, cujo formato de tela ainda é o 4x3 ou 1:1,33. Mas sem dúvida, a experiência do grandioso que o épico se propõe tem melhores resultados em telas maiores, mas que não basta para caracterizar o gênero em si. Convém neste caso lembrar de ...Gone with the wind, feito originalmente em 35mm na proporção quadrada do 1:1,37. Não deixa de ser um épico só porque não foi feito em tela panorâmica, mas é também conveniente citar que ele foi modernamente re-enquadrado na proporção 1:2,20 numa cópia restaurada e ampliada para 70mm, talvez na tentativa de ganhar esta força espacial de que carece o original. Considerando, entretanto, a questão do cinema como espetáculo, nada mais convincente que um épico em 70mm, razão pela qual este formato foi o preferido do gênero, pelo tamanho da imagem original que permite uma projeção gigantesca, em telas de mais de 70 metros de largura (houve até projeções de 100 metros!) com uma qualidade inacreditável. E acrescenta-se ainda o aumento gradual das proporções da tela, que saíram do 1:2,20 do 70mm convencional para o 1:2,35, mais panorâmico, e com a utilização de lentes anamórficas do cinemascope, chegaram a até 1:2,76, na tentativa de fornecer imagem em quase todo o campo de visão do espectador, uma imersão total na imagem. Os resultados foram, conforme o esperado, arrebatadores, cujo impacto dificilmente pode ser reproduzido em projeções caseiras de vídeo, mesmo com toda a tecnologia do home theater.

O único inconveniente do 70mm, que foi suficiente para descartá-lo, é seu elevadíssimo custo. Mas muitos épicos também foram feitos numa versão mais econômica, o cinemascope, que simula a mesma proporção de tela em negativo 35mm, com perda de qualidade ótica, mas ainda assim válido e largamente utilizado; é o formato mais usado atualmente para tela panorâmica no cinema.

O épico sempre esteve presente na história do cinema, desenvolvendo-se nas mais diferentes vertentes; ora personagens políticos e patrióticos (Julio César, Alexander Nevski, Napoleão, Cleópatra), ora personagens mitológicos ou literários (Hércules, Ulysses, Os três Mosqueteiros, Robin Hood, Ben-Hur, Jivago), ou ainda personagens carismáticos que promoveram mudanças profundas em seus tempos (Gandhi, Excalibur, Amadeus, Lawrence da Arábia, El Cid). Somente de Joana D´Arc há pelo menos 10 versões até a década de 70 (Méliès em 1900, DeMille em 1917, Gastine e Dreyer ambos em 1928, Ucicky em 1935, Fleming em 1948, Rossellini em 1954, Preminger em 1957, e Bresson em 1962, sem contar as versões modernas).

É também digno de nota, e não sem uma dose de curiosidade, que o cinema moderno se valha dos mesmos elementos, caracterizando, portanto, o épico, para contar histórias e sagas de ficção científica, de fontes as mais diversas, literárias, quadrinhos e até da própria televisão, os desenhos animados. Tal fato é interessante por ter sido o gênero ficção científica considerado com certo desdém durante quase toda a história do cinema, um tipo de cinema puramente voltado ao entretenimento e não sendo digno de figurar entre grandes obras cinematográficas. Eram inclusive taxados de ‘Filmes B’. Ao que parece, o clássico de Stanley Kubrick de 1968, 2001 – A space Odyssey, foi o filme que elevou o gênero ao posto de cinema ‘sério’, ele próprio talvez o primeiro épico de ficção científica do cinema, e a ele seguiu-se uma grande quantidade de sagas como as de Star Wars, Star Trek, Duna, Superman, chegando até aos atuais Lord of the Rings, Harry Potter e Chronicles of Narnia. Acrescenta-se a esta lista também os heróis de quadrinhos, que modernamente tiveram um ‘boom’ de produção e uma incrível variedade de heróis ganharam as telas num curto espaço de tempo: Batman, Spider Man, Hulk, X-men, etc. Apesar de não se constituírem épicos puros no mesmo sentido que um El Cid por exemplo, os elementos do gênero estão presentes de maneira evidente.

à direita: Cena de 2001: A Space Odyssey (1968) de Stanley Kubrick

Mas que elementos são estes? Formalmente, bastam os elementos anteriormente citados: uma narrativa sobre um herói individual ou coletivo, que tenha o caráter histórico da prosa em 3a. pessoa, mas que tenha elementos subjetivos poéticos, e ao mesmo tempo narre sua saga de maneira grandiosa tanto no tempo (extensão) como no espaço (tamanho da proporção e da tela). Entretanto, do ponto de vista subjetivo do conteúdo de uma obra, a simples colocação de elementos específicos delineados não garante nem a qualidade nem a classificação do gênero, pois não se trata de mera receita culinária. Como diz mesmo Aristóteles, se alguém colocar em verso um tratado de medicina, nem por isso será considerado poesia. Portanto, que elementos animam o épico por dentro de sua estrutura formal, qual é a alma do gênero que lhe constitui, e que permite que até vejamos filmes como Ben-Hur na televisão (obviamente uma perda significativa do impacto visual) e mesmo assim não termos dúvidas de que estamos diante de um épico?

Talvez possamos pensar justamente nas qualidades intrínsecas que nos geram em nível subliminar ou mesmo sensível os elementos formais que citamos. Claro está, a ideia de narrar um episódio heroico já está embutido na própria concepção da tragédia e seus pormenores, razão pela qual a análise de Aristóteles ainda pode ser considerada válida, no que diz respeito à catarse que nos gera pela piedade e comoção das nobres ações do herói, caso que em nossos dias é muitas vezes explicado por fenômenos de identificação arquetípica. Mas o aspecto dimensional, ou seja, o tamanho físico da narrativa e, no caso do cinema, o tamanho de sua projeção, também são forças evidentes (nem entrando no mérito da trilha sonora, sem a qual vários épicos cairiam por terra) e que merecem ser destacadas, mas sob o aspecto subjetivo do sentimento que tal experiência pode suscitar.

E neste caso, também entram elementos arquetípicos, pois estamos diante de uma tela cinematográfica de grandes proporções e somos levados a assistir imagens que traduzem a ideia de grandiosidade. Isso é particularmente mais evidente em casos como a batalha no gelo do Alexander Nevsky de Eisenstein, na corrida de bigas de Ben-Hur de Wyler, a abertura do Mar Vermelho nos Dez Mandamentos de DeMille, na batalha final do El Cid de Mann, ou mesmo quando apenas vislumbramos a quantidade exorbitante de exércitos de orks no Lord of the Rings de Jackson. Essa noção de grandiosidade que nos passa tais imagens só se torna inteiramente funcional quando ela é contraposta ao imediatamente menor, individual, ao pequeno ou ao insignificante. Deste confronto entre qualidades de tamanho, o espectador retira a catarse. Funcionaria como duas forças motrizes, uma impulsionando a outra, donde o resultado é retirado da diferença do potencial de ambas, sobressaindo sempre o maior. O público trava contato com duas naturezas, uma microscópica em que as pequenas coisas, os conflitos pessoais, o cotidiano, se tornam relevantes; e outra macroscópica, em que um grande objetivo, uma grande missão, um conflito íntimo de toda uma geração ou de toda a humanidade é posto em evidência, sempre através de imagens concomitantemente grandiosas (acentuado sem dúvida pela escolha da tela panorâmica), e assim confrontando ambas, fazendo reconhecer a necessidade das grandes obras em detrimento das pequenas, voltando então à Aristóteles e sua noção de catarse, tirando daí o valor supratemporal e arquetípico da epopeia.

 

À direita: Estudo de Eisenstein para a cena da Batalha no Gelo de Alexander Nevsky (1937)

Agora, a pergunta feita ao início deste ensaio agora já pode novamente ser formulada: por quais razões o épico é tão cultivado no cinema, como nunca o foi em outras artes na mesma proporção?

Dois motivos se entrelaçam, de tal maneira que não se pode isolá-los, a não ser para fins descritivos como este. O primeiro deles é que o cinema possibilita a obtenção destas imagens grandiosas como nenhuma outra arte narrativa (ou não-estática), já que se trata do princípio fotográfico, mas em que é possível passar de uma imagem de plano geral para um close imediatamente, criando tal sensação de confronto entre o macro e o micro. Na literatura isso demanda um certo número de páginas descritivas; no teatro demanda uma super-produção cenográfica, por vezes possível, mas também com muitos limites. No cinema, uma cena de batalha com centenas de figurantes não precisa ser realizada várias vezes, além do que não caberiam num palco, e para isso o teatro reúne artifícios próprios de sua linguagem para conotar tal ambiente. O cinema pode fazer isso diretamente, e seu efeito é irresistivelmente mais imponente. Por essa facilidade em lidar com imagens, o cinema talvez seja o melhor suporte para a experiência do épico.

Um segundo motivo seria o apelo comercial: se descontarmos a experiência de Thomas Edison com o kinetoscópio, cuja exibição era limitada a uma pessoa apenas, o cinema tal qual conhecemos pelo aparato dos irmãos Lumière, sempre foi destinado à projeção pública, e, para efeitos comerciais, quanto mais gente assistindo ao filme, melhor.

Em se tratando de público, o próprio cinema descobriu, já em seus primórdios, diferenças significativas em tipos de espectadores. Filmes de temática hermética, de caráter subjetivo, de características muito pessoais, sempre tiveram nichos específicos e limitados em termos de público, ao passo que temáticas consagradas, objetividade narrativa e abrangência de propósitos sempre atraíram mais público; uma vez que o repertório e a sensibilidade das pessoas é sempre muito diferente, e reuni-los sob uma única obra é tarefa difícil. Eis então que o épico, quer seja plenamente explorado, quer sejam alguns de seus elementos específicos em obras não-épicas, foi e tem sido até hoje um dos trunfos do sucesso da arte cinematográfica, o que explica também, em parte, a sobrevivência de salas de cinema numa época em que a televisão e as tecnologias digitais poderiam ter feito sucumbir com grande facilidade este ritual moderno que é ir ao cinema. Mas a experiência épica só é possível plenamente na tela grande.

III. a psicologia do cinema épico

Entram aí aspectos curiosos que podem ser destrinchados por efeitos psicológicos, e que se traduzem em última análise pelo fascínio que tal experiência engendra nos espectadores. Alguma explicação para o fato pode ser encontrada na literatura psicológica de Freud e de Jung com certa facilidade, mas não sem uma dose de interpretações específicas de suas descobertas.

É até conhecido de maneira anedótica o pouco caso que Freud fazia do cinema, nunca tendo se interessado por ele e tendo assistido a uma projeção apenas por insistência de amigos e tendo achado uma experiência absolutamente sem graça (segundo BARRO, 2008). Mas seu ensaio Psicologia das massas e análise do eu (1976) ele esmiúça facetas da psicologia de grupos, e que no mais das vezes podem constituir-se circunstancialmente num grupo colocado numa sala de cinema, cuja apreciação comum é o filme. Para tentar descrever aspectos relevantes das razões pelas quais os grupos se formam e as empatias que ocorrem em diferentes níveis psicológicos, Freud se utiliza de algumas ferramentas, que aqui também serão úteis, a saber, a identificação e a idealização. Na questão da identificação, Freud postula que há a formação de um laço emocional com um objeto na medida em que o ego se identifica com ele, e que, conforme este laço se torna mais forte, as características deste objeto são introjetadas para o ego, de tal forma que o ego baseia-se nesta identificação como um modelo até ao ponto de segui-lo (FREUD, 1976, p.23). Claro que no contexto psicológico, isso favorece a formação de grupos sob determinadas lideranças, mas no caso do cinema, é evidente que há também uma porção de identificação com um personagem ou herói. Sabemos que o cinema é uma sucessão de imagens obtidas por princípios fotográficos, cuja constituição física se processa de maneira análoga ao do olho humano, razão pela qual quando assistimos a um filme e existe um laço emocional de identificação, a projeção tende a ser, inconscientemente, encarada como uma realidade. Apenas quando o filme traduz aspectos incoerentes é que nos distanciamos, pensamos em algo como ‘isso não pode ser assim’, ou ‘isso não é real’. Entretanto, como já havia nos falado Aristóteles, o aspecto da verossimilhança é fundamental para despertar os sentimentos e emoções na tragédia, coisa que o cinema faz da mesma maneira com as imagens fotográficas em sucessão, dando-nos a ilusão de algo verdadeiro. Assim, a identificação ocorre em qualquer estilo de filme, algum personagem, quer seja de uma comédia, drama, terror ou ficção nos impele à identificação e empatia. Agora, em se tratando de épicos, essa identificação está baseada em figuras históricas ou mitológicas, que por um ou outro lado, proporcionam ações baseadas na virtude, no ideal, cuja consequência é que tal identificação se apresenta de maneira muito mais profunda, chegando ao aspecto da idealização.

A idealização advém do reconhecimento (por vezes até inconscientes) de certas impotências de nosso ego frente aprincípios, ações e virtudes, que podem ser consideradas inatingíveis, daí decorrendo que um determinado objeto ou personagem, que as possua, seja visto de maneira quase sublime, passando da identificação para a idealização (FREUD, op.cit. p.27). O épico entra aí justamente como uma tradução de virtudes e ações nobres (novamente Aristóteles), que nos despertam a piedade e o terror na intenção de purificar os sentimentos (ARISTÓTELES, op.cit. p.447). Acrescentamos também a citação de que o mito é a alma da tragédia. Pois é justamente no mito que existe uma identificação profunda com ideais que o ego reconhece necessários, mas que também reconhece ser incapaz de reproduzir. São as ações elevadas que também nos fala Aristóteles, e que distinguem a imitação poética trágica e epopéica das demais.

Ora, ao estabelecer uma ponte de diálogo entre conhecimentos separados por dois mil anos, não fazemos senão uma reflexão sobre a própria natureza humana, sobre a maneira como a humanidade reage a certos estímulos inalteradamente por todos esses séculos. Tanto que a própria tragédia mantém-se até hoje no repertório das companhias de teatro com grande sucesso não obstante a avançada idade delas.

Soa no mínimo curioso que aspectos tão distantes de nossa vida cotidiana continuem a cativar o público, enchendo salas de cinema, palcos de teatro e nossas estantes com literatura tão arcaica, principalmente levando-se em conta as enormes diferenças culturais entre aquela época e a nossa. Os conceitos de identificação e idealização segundo Freud nos bastam para explicar o comportamento do público frente a estas representações cinematográficas, mas não nos explica por que elas continuam atuais. E aí complementa-se a tese com a contribuição de Carl G. Jung neste ponto, a questão do arquétipo. Segundo Jung, existem dois tipos de inconsciente, um pessoal e um coletivo. Este coletivo, que aqui nos interessa por sua base filosófica, é definido assim: “Do mesmo modo que o corpo humano apresenta uma anatomia comum, sempre a mesma, apesar de todas as diferenças raciais, assim também a psique possui um substrato comum. Chamei a este substrato inconsciente coletivo” (SILVEIRA, 1978, p.72).

Considerando o cinema épico e suas implicações, ou seja, a narrativa heroica, de grande extensão e impacto visual, aliada ao tema mítico ou histórico, é forçoso notar que, se existe uma identificação com um mito por vezes tão distante, é porque existem mecanismos que permitem o reconhecimento destes mitos como representantes de uma virtude superior, e que não está nas diferenças culturais, visto que é um fenômeno de massa.

O reconhecimento de tais ações deve ter por base este substrato, que permite à maioria das pessoas uma identificação e eventual idealização, que se manifestam no entusiasmo por um filme, por um personagem, por um efeito, por um feito. As “matrizes arcaicas, onde configurações análogas ou semelhantes tomam forma” (idem, p.77), ou seja, os arquétipos seriam justamente os receptáculos ou depositários da informação resultante de impressões de vivências fundamentais e que tomam forma visual quando acessados, ou, se estimulados, permitem reconhecer tais impressões. Análises da literatura e da própria cinematografia por este ângulo junguiano já foram, inclusive, objeto da atenção de Joseph Campbell, nos festejados A Jornada do Herói e O Poder do Mito.

Apesar de extremamente abstrato, o conceito de arquétipo facilita enormemente a compreensão da origem do fenômeno cinematográfico, não apenas épico, mas em todos os seus gêneros. No caso do épico, essas impressões são visivelmente potencializadas, ao ponto em que temos a mesma história, revestida de diferentes circunstâncias, narrada várias vezes em diferentes filmes, sem nos darmos conta.

Exemplos típicos são os filmes bíblicos que tratam da vida de Jesus Cristo. Se tirarmos fora o contexto temporal e espacial, e mantivermos a essência da narrativa, teremos, por exemplo, a mesma história recontada na criação dos quadrinhos do Superman: um ser extraterrestre, que aqui desenvolve poderes sobre-humanos, e que foi dado à Terra por piedade a ela. Nada mais natural, que, frente a esta premissa, transformar a narrativa da arte sequencial dos quadrinhos em arte cinematográfica. Na primeira versão de 1977, a voz de Marlon Brando, o personagem Jor-El, pai do Superman, enfatiza que enviou seu único filho por amor aos terráqueos, para que salvasse a humanidade. As coincidências são evidentes. Quando se torna muito difícil, abstrato e intangível tentar reconhecer que a salvação se dá numa esfera espiritual, o salvador ganha forma e força físicas, forças estas maispróximas do entendimento comum. O mito se manifesta, então, sob outra forma.

Outro exemplo na saga Star Wars, em que há um clássico conflito entre o bem e o mal, a luta entre poderes, e que estão presentes os elementos místicos (a força) e proféticos (a profecia de que um ser especial traria equilíbrio à força e ao universo), mito que encontra semelhanças não apenas no contexto judaico-cristão do apocalipse de nossa sociedade, mas em diversas outras culturas em torno do mundo, como na hindu e na chinesa. Contexto semelhante pode ser verificado na saga Lord of the Rings, Matrix e em Duna, só para citar os mais modernos. Ou ainda, o medo arquetípico do grandioso, quando situações como as descritas anteriormente, em que grandes cenas se contrapõe a pequenas ações, criando a antítese necessária para criar a imagem do quão grandioso foi tal feito de determinado herói. O herói vence seus próprios medos, não teme a morte, sabe de onde veio e para onde vai, e isso constitui-se também numa forma inconsciente de idealização. O substrato inconsciente de que nos fala Jung é talvez a única maneira de entender como virtudes tão distantes podem encontrar formas ressonantes no ego e promover a idealização e a catarse. Mesmo quando pensamos na identificação, é mais razoável entender que certas virtudes, por mais que queiramos nos tornar parte dela, estão um tanto distantes de nossa realidade comum e mesquinha, e por isso é mais provável que simplesmente a admiremos, e dessa admiração advém o carisma de um herói representado no cinema (Vê-se aí a importância de se achar o ator adequado para cada papel).

 Cartaz de lançamento de Star Wars (1977)

IV. Análise do épico Ben-Hur

Aristóteles em sua Poética cita por diversas vezes o Édipo Rei de Sófocles por considerar esta obra um exemplo de perfeição trágica.Da mesma maneira, poderíamos eleger um modelo de épico, que o represente com perfeição. Neste caso, o mais completo exemplo é o de Ben-Hur, de Wyler, filme de 1959 que teve duas versões anteriores, uma curta e outra longa, em 1907 e 1925 respectivamente. Baseado na obra de Lew Wallace, Ben-Hur é um conto de ficção, passado nos tempos de Cristo, quase em sincronia com este. Judah Ben-Hur é um príncipe judeu abastado, que na infância teve por melhor amigo um romano chamado Messala. Depois de adultos, Messala retorna à Judéia, agora conquistada por Roma, como oficial das forças do exército romano, e apesar das manifestações nostálgicas de amizade que vivenciam, é evidente o conflito político com que em seguida irão se deparar. Judah é fiel a seu povo, e não recebe com bons olhos a dominação romana, ao passo que Messala é um leal servidor do divino imperador da capital do mundo. Resultado: Messala trai a amizade de Judah pondo sua família na cadeia e mandando-o às galés, em que seria forçado a remar para os navios romanos até a morte. Mas Judah é um homem de índole nobre, de caráter firme e virtuoso, e acaba por cair nas graças do governador, que comandava o navio em que servia, salvando-o de um naufrágio. Com isso, Judah é adotado como filho do governador, tornando-se cidadão romano. Em sua mente nada mais lhe ocorre senão voltar à judéia e libertar sua mãe e sua irmã, presas injustamente. Como romano, invoca seus direitos na intenção de libertá-las, coisa que acontece, mas quando Messala vai vê-las na prisão, estão leprosas. Por isso, elas próprias pedem a Esther (filha de um empregado da casa de Hur com quem Judah ensaia um namoro) que informe a ele que estão mortas. No caminho de volta, com diversos contratempos, acaba conhecendo um pródigo comerciante árabe de cavalos, que o convida para correr nas bigas, nas famosas corridas romana. Judah a princípio recusa, mas, ao saber da notícia da morte de sua mãe e irmã, resolve aceitar, procurando a vingança contra tão injusto fardo. Entra em cena então uma das mais impressionantes cenas da história do cinema, a lendária corrida de bigas, em que Judah corre contra Messala.

 Corrida de Bigas de Ben-Hur (1959)

Curiosidades à parte, esta sequencia de 11 minutos, rodada na Cinecittà na Itália, foi uma das mais caras da história do cinema, tendo custado, só ela, por volta de 1 milhão de dólares (em valores atuais, algo em torno de 13 milhões de dólares): em uma área de 70 km2 foram erguidos os cenários com mais de 1.100 m3 de madeira, 400km de tubos de metal e 450 toneladas de gesso, fora a tinta; 5 câmeras MGM-65 de 100.000 dólares cada (uma delas foi pisoteada pelos cavalos), com uma grua de 30 metros de altura; ademais, 78 cavalos foram utilizados, e mais de 8000 figurantes fizeram parte da cena. O impacto visual é realmente digno de nota. Messala perde, sendo atropelado por seus próprios cavalos. Judah vai vê-lo, sabedor de que aquele momento é decisivo na história de suas vidas, o fim de uma querela mortal. Mas no leito de morte, já moribundo, Messala revela a Judah que sua mãe e irmã não estão mortas, e sim vivendo isoladamente no vale dos leprosos. Judah vai até elas, na intenção de vê-las e resgatá-las, mas é impedido, já que elas mesmas preferem que ele não as veja assim. Tomado de intensa dor e sofrimento pela situação tão amarga, e nutrindo um desejo intenso de mais vingança, vai ter com Pilatos e renega sua cidadania romana, lamentando-se de tamanha tragédia. No caminho, porém, depara-se com a figura de Cristo em seus últimos dias. Em diversos momentos do filme, Cristo aparece em cenas fugazes, como pano de fundo, mas deixando claro que a história de ambos é concomitante. Judah, entretanto, cego pelo ódio, fica indiferente a Cristo, e continua sua caminhada. Quando volta, um diálogo com Esther, igualmente decisivo, muda o rumo de suas atitudes. Esther ouviu as palavras de Cristo, e sensibilizou-se com elas; Judah só pensa no seu trágico destino, e o ódio toma conta de sua alma. Eis que Esther o compara a Messala, frio e vingativo. Ele toma então consciência de quanto o ódio o consome, e então resolve ir, contra a vontade de todos, resgatar sua família, e levá-las de volta à sua casa. Ao entrar no vale, descobre que sua irmã está para morrer, e isso é um ponto crucial, que confere permissão a ele de retirá-las de lá. E vai, conforme desejo de Esther, com elas ver o Cristo. Mas, ao chegar a Jerusalém, tudo o que conseguem é acompanhar sua via crucis. Quando Judah o vê, lembra-se dele, e o acompanha durante sua paixão. Ele torna-se novamente um homem sensível, vendo que um homem justo estava sendo tratado daquela maneira tão desumana. Deixa sua família ao longe e o acompanha, resignado e profundamente impressionado. Sua própria revolta some diante da crucificação. E eis que, à morte de Cristo, a mãe e a irmã de Judah são milagrosamente curadas, e ao encontrá-las novamente em casa, curadas, regojiza-se plenamente. Assim, em estado de júbilo, em que todas as forças novamente se equilibram, o filme termina.

Ben-Hur é um filme que exemplifica todos os elementos do caráter épico de maneira evidente: apenas num resumo da história conclui-se que se trata de uma longa narrativa, cujos contratempos e peripécias necessitam de um certo tempo de maturação para que um evento se encadeie com outro e a corrente narrativa faça algum sentido, ou que pelo menos ocorra com verossimilhança. E isto é facilmente verificável através do tempo de filme: as versões oficiais ficam em 212 ou 214 minutos (DVD), mas há versões maiores, de até 224 minutos. A quantidade de situações é enorme, mas não obstante, a linha narrativa é extremamente sólida e não se perde em momento algum. É um filme que, se vamos ao banheiro durante a exibição, podemos não entender a ação seguinte, pois perde-se o fio da meada. Além do aspecto temporal, da longa narração com uma grande quantidade de eventos, bastante próximo da epopeia grega, a questão do espaço também é notória. Foi o primeiro filme a utilizar gigantescas câmeras chamadas “MGM camera 65”, que anamorfizavam o 70mm produzindo uma proporção de tela de 1:2,76, extremamente panorâmica, (quase 3 vezes uma tela quadrada de tv), e que tinha uma área útil de negativo 4 vezes maior que um 35mm convencional. O resultado é uma imagem de qualidade extrema, poucas vezes igualado, além de uma imersão total na projeção, já que a extensão da tela podia chegar até a cobrir a visão periférica caso o espectador sentasse mais próximo à tela.
Acrescenta-se ainda a estonteante trilha sonora de Miklos Rozsa, que, tanto por seu caráter como pela onipresença da música no filme, evocam a grandiloquencia épica dos dramas musicais wagnerianos, ou mesmo das grandes sinfonias de Mahler. O impacto da música para coroar o sucesso do filme foi tamanho que alguns críticos reconheceram um "fator Rozsa", apontando como um dos responsáveis pela catarse gerada na projeção.

Já que os aspectos formais contemplam plenamente os ideais épicos, falta revesti-los de um conteúdo à altura. E aí entram todos os pormenores psicológicos antes mencionados, decorrentes de processos de identificação e idealização arquetípicos.

Resumidamente, é um filme que explora ideais de justiça, evidenciados na relação entre Judah e Messala, em que existe uma corrupção de valores de amizade em prol de uma sede de poder por parte de Messala. Seja como for, é notório o caráter de injustiça cometido, e quanto Judah tem que se controlar para, pacientemente, buscar a justiça. Ele personifica o homem bom e virtuoso que não trai seus ideais e nem os de seu povo, é fiel mesmo pressionado pelo persuasivo discurso de Messala. Dois princípios em jogo, a amizade e a fidelidade; personificadona relação dos dois, revela seus caráteres, em que, sendo ambos fiéis a princípios diferentes (Messala, romano, Judah, hebreu), percebem que a antiga amizade não mais poderá existir. Apesar disso, Judah deixa claro que mantém a mesma estima por seu antigo companheiro de infância. Nesse ponto Messala representa o papel do facínora traidor, capaz de passar por cima de todo o sentimento, que outrora uniu os amigos, para alcançar seus mesquinhos propósitos. Está aí exposta a primeira empatia com o herói, advinda da identificação com o injustiçado. Todos em algum momento já se sentiram injustiçados por um opressor, e lidando com uma injustiça tão grave quanto a traição de uma amizade, é bastante razoável, se não até óbvio, que haja uma imediata identificação, separando claramente o bom e o mal, ainda que não de maneira totalmente maniqueísta, já que Judah alimentará um ódio vingativo no decorrer do filme.

Se tomarmos o modelo da tragédia grega como exemplo, este seria seu grande conflito. Sua missão, reconhecida e auto-imposta, é a de fazer justiça, libertando sua mãe e irmã da tirania romana. E, tal qual a tragédia grega, a intervenção divina também ocorre, mas não mais sob o signo de deuses-homens, e sim sob uma nova razão que prega o amor entre os homens, personificando a justiça divina através do Cristo. Essa intervenção se dá de forma tanto física (Cristo dá de beber a Judah quando prisioneiro à caminho das galés) como psíquica (Judah está convencido de que se Deus não quisesse que eleprocurasse a justiça, já o teria matado). Outro aspecto importante, característico dos heróis épicos, é a coragem: nesse ponto, Judah novamente personifica ideais arquetípicos não apenas caros, mas até certo ponto lugares-comuns da narrativa épica. Um herói sempre precisa vencer suas limitações e seus medos para alcançar certo objetivo. O que torna Judah um personagem um pouco menos clichê que os demais heróis epopeicos é o fato de que, em certas passagens, seu heroísmo é ambíguo, movido por motivos puramente vingativos, tornando seu personagem mais humano, mais mortal. Essa ambiguidade de valores, a motivação mesquinha da vingança, será sublimada pelo reconhecimento de uma razão superior, o amor do Cristo. E, neste ponto, o filme desvia-se do esquema tradicional da tragédia clássica transportando a tragicidade à paixão do Cristo, e colocando Judah e sua família como espectadores do evento, passando a um segundo plano de ação. Essa metáfora reforça, talvez até a nível subliminar, o próprio arquétipo crístico, do homem-deus que se sacrifica para trazer a luz à humanidade. E o filme termina com a vitória do herói através da redenção cristã (É curioso pensar que este filme, uma história cristã, tenha sido produzida pelos estúdios MGM, de propriedade dos judeus Louis B. Meyer e Samuel Goldwin. O apelo comercial sempre falou mais alto na indústria cinematográfica).

A força e o poder do mito já foram interpretados pelo viés junguiano por Joseph Campbell e outros, mas é claro que a simples constatação da existência de elementos arquetípicos não seria suficiente para entender a razão do sucesso do cinema sem os aspectos freudianos de identificação e idealização, que se complementam no intrincado quebra-cabeças que é a psiquê humana. Antes, temos uma harmônica reunião de forma e conteúdo, a narrativa mítica ou heroica e a grandiosidade das imagens, em grande extensão. Resultado: o épico.

Por este motivo, o apelo comercial que o cinema busca como indústria é plenamente justificado no épico, em que altíssimos custos de produção (os maiores já registrados) são compensados por um número exorbitante de espectadores, sem os quais não seria possível não apenas o gênero, mas talvez toda a indústria cinematográfica. Que o cinema comercial se utiliza do aspecto emocional gerado pela identificação arquetípica não é nem novidade nem demérito; caberia, antes, nos perguntar por que gostamos de ir ao cinema.


*Filipe Salles é cineasta, fotógrafo, Mestre e doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP, professor e coordenador do curso de Fotografia na FCAD / CEUNSP-Salto. Mas gosta mesmo é de música. Consulte www.mnemocine.com.br/filipe

 

BIBLIOGRAFIA

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BARRO, Máximo. O dia em que Freud foi ao cinema. Acesso: 05/10/2010 em http://mnemocine.art.br/index.php/cinema-categoria/27-psique-e-mnemosine/135-o-dia-em-que-freud-foi-ao-cinema

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BOURGET, Jean-Loup. L´histoire au Cinéma – Le passé retrouvé. Paris: Éditions Gallimard, 1992

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