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Producing and consuming the woman's film. Discursive Struggle

 

 

LAPLACE, Maria - PRODUCING AND CONSUMING THE WOMAN´S FILME. Discursive Struggle IN Now, Voyager In Home is where the heart is. Edited by Christine Gledhill, British Film Institute, London, 1987.

Traduzido por Carla Miucci Ferraresi

Para se entender como o cinema constrói os desejos e as subjetividades femininas, é necessário ir além da análise pura e formal dos trabalhos internos que compõe a realização do roteiro do filme para uma análise histórica mais específica das relações do texto com o contexto, isto é, examinar o filme como um processo histórico de intertextualidade. Somente então é que as complexidades de uma ideologia patriarcal e as resistências femininas serão entendidas.

Um caminho,para se começar uma análise deste tipo, seria explorar como um filme articula o conjunto dos discursos com suas estruturas narrativas, mise en scène e modo de transmissão. Este enfoque supõe espectadores já conhecedores de uma variedade de discursos culturais e sociais, expectadores generosos, expectadores que tenham uma história de sua própria existência no momento da produção do filme. A análise então se tornará uma parte, um projeto histórico do filme. Análises históricas oferecem uma teoria feminista do filme, onde se complicam questões sobre o posicionamento dos expectadores e sobre a construção da feminilidade nos clássicos filmes de Hollywood.  

Como uma categoria do filme, os filmes sobre mulheres ocupam um importante espaço no sistema de estúdio ( star system) hollywoodiano, em virtude de sua imensa popularidade e lucros abundantes - nos anos 30 e 40 esses filmes eram produzidos em série, a preços fantásticos, tanto os de alto custo (A) quanto os produzidos com baixo orçamento (B). De acordo com Hollywood Looks at Its Audience (Handel,1950), um resumo, resultado de 20 anos de pesquisas independentes, feitas por Hollywood, executivos dos estúdios foram convencidos, em qualquer época, de que as mulheres constituem a maioria da audiência dos filmes. Os estúdios organizavam levantamentos de gêneros diferenciados, para descobrirem o que é que as mulheres, supostamente, queriam ver. Baseado nos resultados, critérios foram fixados e políticas foram desenvolvidas para atrair as mulheres para o cinema; foi concluído que as estrelas femininas são preferidas às estrelas masculinas e que os gêneros mais esperado pelas mulheres- em ordem de preferência - eram os dramas, as histórias de amor e os musicais.

Mais adiante, as mulheres disseram que queriam “bons personagens desenvolvidos” e histórias com interesse humano. Em resumo, os filmes para mulheres podem ser vistos como tentativas de cobrir o máximo possível esse território.

O filme feminino é distinguido pela personagem principal - protagonista - pelo seu ponto de vista feminino e pela sua narrativa que na maioria das vezes gira em torno do tradicional domínio das experiências femininas: o familiar, o doméstico, o romântico - essas áreas de amor, emoção e relacionamentos que precedem a ação e os eventos. Um dos aspectos mais importantes do gênero é a notória posição do relacionamento entre as mulheres. O tema central, é então, em qualquer investigação do filme de mulher no cinema hollywoodiano, a problemática da subjetividade, do desejo e de problemas femininos. O argumento dominante é que os discursos machistas inevitáveis reduzem/(re)posicionam os filmes de mulher a um caráter patriarcal. No entanto, olhando para o gênero como uma intersecção de diferentes discursos sobre as mulheres nos anos 20 e 30, também é possível levar em conta a existência , às margens da cultura dominante patriarcal, um circuito de discurso feminista, que mesmo sendo mediado pela instituição patriarcal ( como por exemplo as campanhas publicitárias) é largamente feito para e por mulheres.

Este circuito consiste na audiência em massa (feminina) das novelas e livros de não-ficção, histórias e artigos de revistas e até associações de mulheres, que eram grandes fontes e contextualizavam os filmes de mulher, enquanto que a literatura era freqüentemente a base para os roteiros.

O lucro dessa instituição patriarcal é inquestionável, o que é aberto para discussão, é como este circuito, quase que completamente ignorado pela instituição escolar patriarcal, funcionou para as mulheres. Será que esta cultura subordinada “das mulheres”, de algum modo promoveu discursos subversivos aos patriarcas? Eu argumentaria que pode ter promovido, como costumo demonstrar em minhas análises de Now, Voyager, mais só pode ser claramente notado se voltarmos estes textos para o lado histórico, social, cultural e específico das considerações metafóricas femininas.

 

Consumismo

Consumismo pode ser amplamente definido como uma ideologia do consumismo cômodo fetichista (fetiche) do capitalismo do século XX. Particularmente, com relação aos filmes, o consumismo pode ser visto do ponto de vistade um capitalismo que tenta cooptar as novas demandas do feminismo e as necessidades de expandir a força de trabalho feminina, com a criação de um novo “mercado feminino”, o desejo de mulheres pela sexualidade, poder, liberdade e prazer que poderia ser canalizado para uma compra passiva e para comodidades consumidas pela massa.

O discurso sobre consumismo esteve em alta no final dos anos 20. Stewart Ewen argumenta que a indústria da propaganda dos anos 10 e 20 desenvolveu uma nova estratégia para esta nova fase do capitalismo baseado no excedente dos bens produzidos  em massa. A medida que a produção em massa se tornou manufaturada, muitos dos bens que uma vez eram produzidos por mulheres em suas casas (individual ou coletivamente), passaram a ser produzidos em larga escala nas fábricas. As mulheres eram vistas como o alvo ideal dessa produção escalar, além de se veicular a idéia de que estas atividades eram finalmente gratificantes para suas vidas.

Ewen descreve dois esquemas de ataque dirigidos para as mulheres. Uma das estratégias era de continuar a dizer que as mulheres eram donas de casa e mãe ( no lugar da profissão), mesmo sabendo que a grande maioria delas estivessem trabalhando fora desde a 1a.Guerra Mundial. As propagandas tentavam fazer com que as mulheres se identificassem com seus lares, mas redefiniam o “lar” para que o consumo capitalista não se perdesse, criando um novo papel para as mulheres, o de “administradoras do lar... dirigindo-o..., deixando com que ela selecionasse e consumisse todos os bens e serviços que a sociedade estava produzindo” (EWEN, p.168).

A idéias de liberdade e igualdade para as mulheres foram rapidamente disseminadas pelas feministas da época de 1900-1929 e foram conscientemente incorporadas na retórica da propaganda, como uma arma adicional de seu arsenal(EWEN, p.169).

Pesquisas feitas com as propagandas de jornais comerciais mostram que, por exemplo, os publicitários estavam cientes de que fumar cigarros era um símbolo da emancipação feminina e usavam esta associação em suas propagandas. Cigarros eram oferecidos como símbolo de liberdade - e assim construiu-se um novo mercado para as indústrias tabagistas. Escolha e liberdade para as mulheres, tornou-se sinônimo da produção em massa de bens de consumo, despojando-os de suas conotações e alterando a estrutura da sociedade. Entretanto, os efeitos da idéia de que a liberdade e a escolha eram legitimadamente desejados pelas mulheres, não eram inteiramente aceitos pela Big Business. Este aspecto contraditório do consumismo capitalista, em suas incessantes pesquisas por matérias-primas e novos mercados, recruta ideologias potencialmente subversivas e que tem relação em cada discurso relativo ao filme para mulheres.

A outra estratégia de propaganda dirigida para as mulheres com gosto similar por seus objetivos e temas, concentra-se mais em um tipo diferente de “feminilidade”, mulheres fisicamente parecidas e usando a retórica e a técnica dos então emergentes campos do ego e da filosofia social.

Enquanto a ideologia da beleza, não era novidade, a propaganda do século XX introduzia a idéia de que a beleza não era um bem dado, era ao contrário um bem que poderia ser conquistado por qualquer mulher - apenas usando os bens corretos: cosméticos, moda e tratamentos de beleza. A propaganda reiterava continuamente às mulheres que suas habilidades para manter um marido deriva da aceitação de seu look (depende de sua aparência). Valendo-se do conceito de “ser social” desenvolvido pela psicologia social ( a idéia de que a identidade era baseada na reação aos outros), representava-se mulheres como rodeadas por vigilantes, hostilidades, olhos críticos que buscavam defeitos que poderiam causar-lhes um ostracismo social.

Apenas com o uso dos produtos designados poderia se prevenir um desastre:  “as mulheres eram educadas para se virem como coisas, a serem criadas para competirem umas contra as outras, pintadas e esculpidas pelas propagandas do mercado moderno... as técnicas de tentativa de sobrevivência tornaram-se sua mais conspícua forma de auto definirem” (EWEN, p.172).

O modo como esta ideologia foi tomada pelo cinema hollywoodiano e a atual conexão entre os filmes e as indústrias de propaganda é discutida por Charles Eckert. O cinema hollywoodiano, especialmente das décadas de 20-30, era estruturado em parte, sobre a apresentação da mulher como um objeto glamoroso, disputado e consumido, e parte sobre a criação de um mise en scène cujo fetiche são objetos consumidos e um estilo de vida consumista. Eckert liga estes modos de representação com a prática da propagando dos produtos, amarrados entre manufaturas e o cinema hollywoodiano. Significativamente, as principais indústrias envolvidas - a exposição de produtos em filmes e de estrelas em propagandas - estão almejando principalmente serem alvos de consumo feminino: modas, cosméticos, móveis e utensílios para casa.

O discurso consumista, bem como sua mensagem de que a felicidade das mulheres depende de suas criações próprias e objetos desejáveis, através do consumo dos produtos de massa era, no final dos anos 30, em grande parte, do fluxo de idéias e imagens contemporâneas.

 

´Now, Voyager´ e consumismo

A história de Now, Voyager  é sobre o tratamento de Charlotte Vale, uma jovem mulher inteligente mas altamente neurótica e reprimida. Para descrever suas neuroses, o filme mostra claramente vários tipos de consumismo, principalmente na primeira meia hora (até quando Charlotte volta para casa convalescendo de uma crise). O primeiro sinal de que ela está doente é a sua aparência: cansaço, excesso de peso, desfocada, desleixada, é uma fonte bem como os sintomas de suas neuroses. E a primeira fase de seu tratamento (cura) aparece um tanto quanto figurado e como resultado de uma glamourosa transformação de sua aparência que traz o próximo passo adiante, o amor de um homem. É nesta hora que o estúdio aproveita e dá lugar ao marketing. A tentativa de reescrever outras estruturas discursivas - a imagem de Bete Davis e o gênero de mulher irreal - em termos de consumismo fica evidente em Now, Voyager Press Book[1] a coleção de longa-metragens, fotos, propagandas e sugestões para uma propaganda local usados por exibidores (homens). As manchetes principais do longa diz: “Bette Davis, mostra como não ser glamourosa em seu novo filme”, “Clássicos da Costura são apontados como favoritos em Now, Voyager , para o guarda-roupa de B.Davis”. Foto de Davis adorna “Cabelos apropriados são a chave para o sucesso da beleza” e “A hora, o lugar e o clima determinam as vestimentas apropriadas”.

A estratégia central de promoção do filme é o guia de como se tornar bonita, tendo Davis como instrutora. Isto será conseguido com as campanhas tie-in , que são um negócio local e nacional: “Tabelas de cosméticos dão- a sua mensagem às garotas, um modo fácil de se vender para as mulheres: imprimir localmente e distribuir em lojas de beleza e em balcões de cosméticos”.

O título do filme é para relacionar as atividades consumistas com os negócios:

A exposição das vitrines nas lojas fornecida para as clientes femininas deveriam ser o must das campanhas: lojas de roupas: vitrines especiais que mostram roupas para viagem e acessórios - Banner line, ´Now Voyager, compre sabiamente, ... agora! Lojas de cosméticos: para vitrines e propagandas em jornal ´Now Voyager, velege adiante para buscar e encontrar....a beleza´.

O livro publicado propõe inundar a comunidade com uma orla de materiais que visam induzir mulheres a não apenas ver o filme - por causa de suas belas roupas, seu glamour, suas estrelas e seus locais românticos - mas também para realizar suas funções consumistas.

No começo dofilme, Charlotte está doente, neurótica, às margens de um colapso de nervos. Isto porque ela está afastada de sua feminilidade - ela é “feia”, ela é uma “solteirona” - os outros a tornaram o objeto de suas explicações, suas escrutinações. Sua mãe a descreve para o Dr. Jacquith antes que os expectadores a vejam como “meu patinho feio... uma criança atrasada. Claro que é verdade que esses tipos de crianças são marcantes”. Dr. Jacquith é o psiquiatra mais importante e famoso do país, trazido por Lisa, sua irmão de criação, para observar Charlotte. Mas as suas - e as nossas - observações sobre Charlotte são demoradas, criando assim um suspense sobre a questão de “quão horrível ela deve ser (na aparência)?” Ela não é apenas Charlotte, mas também Davis: será que a nossa prazerosa identificação com ela se manterá?

As primeiras cenas dela aborrecem com esse suspense: são cenas de partes de seu corpo fragmentadas: mãos esculpindo uma caixa de marfim onde ferramentas são guardadas, pegam e largam cigarros, escondendo cuidadosamente os pitocos e as cinzas. Pernas grossas com meias escuras, sapatos ortopédicos descendo lentamente as escadas, e logo e seguir subindo as mesmas. Alguma coisa está claramente errada com este corpo, é furtivo, sem rosto, sem junção. O corpo de Charlotte é finalmente visto por inteiro, em uma longa cena, visto pelo ponto de vista do psicólogo. Nós (espectadores) compartilhamos com ele do choque de sua aparência: o horror de sua figura acabada, ridiculamente fora de moda, vestida e penteada como velha diretora de colégio, com sua armação (do óculos) e seus sapatos. As suas vestimentas inadequadas, sobressaem quando Lisa entre em cena para receber Charlotte. Lisa é o ideal da feminilidade: chique, elegante, atual, em contraste com Charlotte, é secretamente vitoriana. Esta cena é rapidamente seguida pelo segundo choque de um close up: o rosto de Davis, duro, amargo, vulgarmente iluminado, com sobrancelhas exageradamente cheias, pálida e cansada. Este se acopla com suas maneira patologicamente tímidas, adicionado com uma feiura espetacular, induzindo no espectador um sentimento de horror e piedade.

Charlotte quase não fala: outros falam por ela e para ela, ela apenas reage. Não ser atraente quer dizer não ter voz, quer dizer ser objeto de zombaria, ridicularização, o objeto de um olhar médico e controlador prolongado. A sobrinha de Charlotte, June, insulta-s continuamente: “Você está encantadora! Vestido novo?”, “O que há com você - começou um romance? “.

Este tipo de interação é remanescente do “eu social” usado nas propagandas - cuja idéia é de que a identidade é definida pela opinião dos outros, cuja aprovação e desaprovação criam o seu eu, e que estes julgamentos se baseiam primeiramente na aparência e no comportamento da mulher, prontos para rejeitar e deixar no ostracismo os tipos que estão fora do padrão convencional. A primeira metade do filme é sobre as auto-críticas de Charlotte, indicando assim que ela se auto-critica, auto-examina, encorajada pelo consumismo.

Mas mantendo sua lógica “feiúra”, é somente a condição de não estar cuidando do corpo de maneira correta, exercícios, dietas, maquiagem e modo podem deixar qualquer mulher bela, atraente. E ser atraente (se não se é bonita) é o pré-requisito para a auto-estima, que é baseada no desejo incitado em outras pessoas, mulheres e homens. Popularidade significa felicidade.

Now, Voyager enfatiza as relações entre beleza e comodidade, num flashback para a juventude de Charlotte. Em termos de narrativa, é em um sentido, irregular, anormal. Isto ocorre muito cedo no filme, estourando  no texto como um momento privilegiado de manifestação narrada por Charlotte e visto por seu ponto de vista, e desaparece. É o único flashback verdadeiro do filme. Mas em termos de discurso consumista isto contém informações importantes. No flashback, Charlotte não é um patinho feito, nem rejeitada pelos homens, nem reprimida nem completamente dominada pela mãe. Ao invés disso, ela é bonita, bem vestida, charmosa, apaixonante, desafiando sua mãe. O flashback simboliza o que o diálogo de Charlotte irá reiterar mias tarde: ela é “naturalmente’ atraente (e apaixonante) - foi sua mãe que a forçou a ser feia, quando não a deixava seguir as ordens do consumismo como dieta, sapatos, óculos.

Quando o flashback acaba, Charlotte lamenta a Jacquith “Que homem olhará para mim e dirá eu te quero? Eu sou gorda - minha mãe não admite que eu faça dieta. Olhe para os meus sapatos - minha mãe não aprova sapatos sensuais... minha mãe, minha mãe...!” Charlotte sabe o que é preciso fazer para conquistar a aparência certa, e qual o ponto para ser atraente e quando se é desejada pelos homens - ela foi educada pelo discurso consumista. O filme diz que nenhum homem a desejaria do jeito que ela é. A sua única auto denominação, “a senhorita Charlotte, solteirona”, diz o impronunciável. De ser uma mulher rejeitada pelos homens, incapaz de se casar e assumir o próprio papel de esposa, é ser sem valor, amaldiçoada, levada a loucura. Charlotte é um objeto de lição para as mulheres. ( Isto está explícito no Press Book, em que Davis é citada por dizer “Que tipo de objeto para lição sou eu. Deveria fazer com que todas as mulheres levantassem e corressem para o seus salões de beleza”).

O flashback serve para um futuro propósito de interagir a imagem de Bette Davis com o discurso do filme. O espectador é solto no reconhecimento para se familiarizar com a aparência de Davis, estrela de cinema, glamorosa, com uma aparência jovial bem natural. Deste modo, nos preparando para a metamorfose que está por vir.

Quando isto acontece, é exatamente como Charlotte aparece pela primeira vez: falam dela, outros esperam para vê-la, ela é um enigma cujo significado não pode ser compreendido apenas olhando. Os outros passageiros do cruzeiro comentam, enquanto esperam por ela, assim podem começar suas primeiras viagens à praia, “Eu acho que ela estava doente”, “Ela parece pálida mas interessante”, “Shh, aí vem ela”. Mais uma vez a cena de corpo inteiro é aberta e vê-se então suas pernas andando hesitante pela prancha de embarque. Esta cena é seguida por um lento giro panorâmico até seu rosto - nesse momento o corpo é conectado como um todo.

Os sapatos são os da moda, as pernas finas, a roupa combinando perfeitamente com a bolsa, luvas, chapéu. O rosto de Charlotte está elegantemente maquiado ( e fotografado como todas as fotografias glamorosas e convencionais). Ela não se parede apenas com Bette Davis de novo, ela se parece com uma versão extremamente elegante, chique da imagem de Davis. No lugar do espetáculo de feiúra, aqui está o espetáculo da metamorfose - a excitação, a emoção do antes e do depois, tão amado pela publicidade direcionada às mulheres. Ao espectador é oferecida uma visão mediadora deste espetáculo, convidado a habitar este corpo, e lá está uma agradável carga erótica para o momento.

A seqüência do cruzeiro representa a apoteose do discurso consumista no filme. A transformação física de Charlotte é continuamente enfatizada nas narrativas e no mise en scène. Ela é projetada para “estar sendo vista”, centrada, radiantemente leve e está vestida diferentemente a cada cena. As roupas de noite (gala) são de pedrarias, pérolas, para captar a luz e para revelar e favorecer seu corpo. Suas roupas diurnas são eye-catching - chapéus com véus, acessórios combinando, jóias e corpetes. As muitas trocas e riqueza de detalhes mantém o espectador concentrado e fascinado pelo corpo de Charlotte, sua beleza, suas aparência exterior.

Em termos da narrativa, a metamorfose é parte da sua cura. Ela está com uma aparência melhor, o que quer dizer que ela está melhor (mesmo que ela ainda não esteja curada). É o que também faz o próximo passo da cura ser possível, abrem-se as portas do amor, romance, admiração e popularidade.

O filme deixa claro que a aparência de Charlotte é uma parte necessária para a paixão de Jerry. Ele sempre elogia sua aparência e suas roupas, e quando ele vê uma foto da “antiga” Charlotte, ele não a reconhece: “Quem é esta senhora gorda, como estas sobrancelhas grossas e todo este cabelo? “ Evidentemente, ela nunca o poderia ter conquistado do jeito que ela era. Mesmo sendo agradecida e estimulada pelo amor e atenção de Jerry é Jerry quem mostra seu amor para Charlotte e não vice-versa.

Jerry se apaixona perdidamente por Charlotte, sem realização por parte dela, ela nunca se deixa seduzir ou flertar; ele faz todos os avanços, todos os pedidos para passarem o tempo juntos, são ditas com extravagantes palavras de amor para ela: “Estou louco de amor por você”, “Eu não consigo tirar você da minha cabeça, nem do coração”. Charlotte nunca diz ao menos que o ama.

Isto se deve a um importante propósito. O estresse desta parte da narrativa é que ele a ama - isto é a coisa mais significativa. Charlotte não consegue melhorar/progredir sua sanidade sob o olhar da aprovação masculina, ela precisa ser vista, desejada, e procura como uma mulher sexy, atraente e viável. Quando Charlotte volta para Boston, ela retorna triunfante, mesmo que ela e Jerry tiveram que partir no meio do cruzeiro. Nas docas, Charlotte é rodeada por admiradores (homens principalmente) e mulheres. “Não havia nenhuma lady mais popular que você neste cruzeiro”, dizia o capitão para ela. Lise e June estão abobadas com a mudança, não apenas no seu visual mas por seu status de objeto desejável. June está completamente cativada: “Você está maravilhosa tia Charlotte” “Eu amei seu vestido novo”, “e você poderia me perdoar algum dia?”

Se o filme tivesse considerado Charlotte curada por sua transformação física e pelo encontro do verdadeiro amor heterossexual, mal se podia sustentar, clamar que o filme fala sobre o discurso de uma mulher. Todavia, este não é o caso. Nou Voyager se endereça, em um nível, aos poderes das mulheres, para o apelo do próprio desejo feminino, de querer e desejar prazer libidinal, sexualidade e erotismo, e uma espécie de decisão e escolha econômica.

O que o consumo pretende é liberar estas forças pela criação de um mercado feminino, apenas para mantê-las nos serviços patriarcais e do capitalismo. Em Now Voyager, estes aspectos mais subversivos de consumismo vem à tona através de suas interações com outros dois discursos principais - os da estrela, Bette Davis, e da ficção da mulheres - que envolvem mais de perto o circuito da “cultura das mulheres”. Estas estruturas são impostas igualmente, colocando em questão a colocação do consumismo nas mulheres, causando uma tensão mal resolvida no texto.

 

Estrelas e o Star-system

Nos woman s film, o star-system e as estrelas que estão associadas a este gênero cinematográfico tem uma função especialmente importante nas articulações das dicotomias do patriarcal, da privacidade/público e do doméstico/social que a convenção do sistema de estrelas forma; aqueles de ficção consumista para mulheres e com os filmes de mulher que tentam formar uma poderosa constelação de forças endereçadas e engajadas para o público feminino em diferentes níveis.

O sistema de estrelas existe tanto como uma ferramenta de marketing para vender o filme como uma instituição que solicita de mecanismos psíquicos e identificação (com o público). Ele é feito assim de diferentes modos, um dos jeitos mais importantes é a “dramatização do campo privado”, com ênfase particular na “demonstração do consumo” (de Cordova, 1982 and Dyer,1979)[2]

Mais precisamente, a estrela é uma atriz ou um ator os quais suas vidas privadas são mais significativas que seus personagens. O discurso sobre as estrelas, vai além das considerações profissionais de competência artística, carreira etc. A vida privada das estrelas é a área mais importante para ser discutida. Quem a estrela realmente é como uma “pessoas normal”, tem um grande papel nos textos relacionados com o circuito do cinema: revistas de fãs, colunas de fofocas, artigos nas revistas mais importantes e influentes e a nova “sessão” dos jornais, biografia das estrelas e livros em geral sobre Hollywood, além de programas de rádio.

Deste modo, portanto, qualquer olhada para uma estrela em um filme nos imbui de uma acumulação de significados, que surgiram não apenas dos seus papéis mas sobretudo pelo que o espectador sabe sobre a estrela como sendo uma “pessoa real”. Este “conhecimento do seu eu” das estrelas, torna-se  um sentido e um modo de identificação com ele/ela e possivelmente compete e rivaliza com seu estilo de vida e personalidade.

O que é particularmente interessante neste material é que este não é somente direcionado para as mulheres, mas foi escrito por elas: a maioria dos artigos das revistas de fãs que eu vi tem mulheres como editoras, e as três colunistas de fofocas de Hollywood são mulheres: Hedda Hopper, Louella Parsons e Sheilah Graham. As revistas para fãs sempre tiveram artigos sobre estrelas (mulheres), dando descrições dos interiores de suas casas, suas vidas no lar, suas roupas, seus entretenimentos e suas relações amorosas. Adicionando a isto, conselhos de beleza, dicas para decorar suas casas, difundem moda, dicas para namorar ( muitas vezes escrito por uma estrela) e até mesmo receitas. Este é um campo de discurso claramente feminino, mesmo quando se discute sobre as estrelas masculinas (astros), seus temas e preocupações são muito semelhante aos contidos nos filmes de mulher e da mulher ficção.

De um lado, o sistema de estrelas, é colocado como parte do grande esforço criado pelo consumismo capitalista a fim de ganhar a audiência e o mercado feminino, por outro lado, esta construção não pode controlar completamente seus efeitos; somente o consumismo e a propaganda não podem. Certas idéias e prazeres são introduzidos ao domínio público e legitimados como conseqüência imprevisível. O discurso do sistema de estrelas pode oferecer uma validade convincente dos valores pessoais e domésticos (amor, sentimentos, relacionamentos), que estão em contraste com os valores masculinos de domínio, de “honra” e competição, e oferece uma representação do poder feminino no mundo social que contesta o confinamento de mulheres na família; a estrela (mulher) é visivelmente uma mulher que pelo trabalho ganha muito dinheiro e é aclamada socialmente.  Esta última é especialmente poderosa nos filmes cuja significativa narrativa fala da subversidade das estrelas, em que há uma particular intensificação dos discursos contraditórios, como no caso de B.Davis em Now Voyager.

De 1938 a 1943, Bette Davis era uma das dez mais bem pagas estrelas de Hollywood e a mais popular e aclamada pela crítica. Ela aparecia quase que exclusivamente em filmes de mulher e aparecia satisfatoriamente popular para a maioria das espectadoras femininas. Qual era a fascinação de Davis para o público feminino?

No Stars (BFI,1979), Richard Dyer declara que as estrelas se tornaram identificadas e foram construídas ao longo da linha dos diferentes tipos de estereótipos sociais e culturais. Isso posto, pode funcionar para os grupos que elas representam, especialmente no caso de grupos sociais fora de padrão (mulheres, gays, outras raças e minorias étnicas) e tem potencial de serem “subversivos ou contra... a ideologia dominante”(p.38). Para as mulheres um desses estereótipos é a mulher independente. Nos cinemas, a mulher independente se encaixa em duas categorias: uma é a mulher boa e “forte”, nobre, generosa, simpática; a outra é “má”, agressiva, dominadora, sexy, “neurótica” Em ambas, elas são impregnadas de força e ação.

Nos filmes de Bette Davis estão uma, outra ou ambas as categorias de mulheres independentes. Um de seus personagens mais famosos é o último tipo, Dyer chama de (bitche)“vagabunda”: Of Human Bondage(1934), Dangerous(1935 -Davis ganhou o Oscar), Jezebel (1938 - Davis ganhou o Oscar) e The Lettle Foxes (1939). Nesta encarnação, Davis encena uma mulher “teimosa”, egoísta, cheia de vontades, esperta (rude mas muito elegante), obstinada e sexy que quase sempre tem um final ruim (ou se torna nobre e sacrifica a si mesma). Com o passar dos tempos, posteriormente a Now Voyager, há um crescente número de “boas mulheres”: corajosas, inteligentes, competentes e perseverantes, dignas nos momentos de dificuldades: Marked Womam (1937- uma combinação dos dois tipos), The Sisters (1939), Dark Victory (1939), e All This and Heaven, Too (1941).

O que encadeia estas heroínas é o estilo de atuar de Davis. Caracterizado por um estilo com alto nível de intensidade, energia e cheio de emoção, ela carrega uma “personalidade” específica que interage com cada papel. O estilo Davis consiste em uma deliberada inflecção no corte de voz, movimentos de olhos arremessados e olhares penetrantes, um andar com passos largos e com balanço, gestos que se fixam rapidamente e súbitas tragadas nos cigarros; rápidas mudanças de humor e registro dessas conotações de inteligência, afirmação, emoções internas, conflitos e força .

Sua performance é “bravura”- ela chama a atenção pelas suas próprias habilidades de exibir os prazeres. Ë um estilo de performance poderosa e adiciona uma dimensão extra de transgressão aos filmes de mulheres independentes.

A força em construir a imagem de uma estrela, como personagem e performance de estilo é o material publicitário escrito sobre a estrela: comentários, biografias, fofocas. Desde que não pareça construir uma imagem deliberadamente, parece ...”mais autêntico. Assim, até certo ponto o privilégio ao acesso à “pessoa real” da estrela (Dyer, p.69). O drama da vida pessoal das estrelas é a principal caracterísitca do trabalho do star-system, servindo como um tipo de âncora para identificação, mergulhando o espectador  para perto dessa “pessoa” e encorajando a empatia, que pode ser trazida dentro de uma cena na leitura do filme.

Estou olhando para vários artigos sobre Davis, de 1943 a 42, e sou golpeada pela sua incrível similaridade para com os temas e para com as formas das mulheres de ficção, especialmente as revistas de fãs, e como eles se diferenciam do que Dyer descreve como o principal motivo do discurso sobre o estrelato - um elaborado estilo de vida caracterizado por mansões, piscinas e limusines; atividade de lazer e esporte, hobbies e festas, especialmente para as estrelas femininas, charmosas, com sex appeal e glamour.

Em contraste, a história de Davis é corajosa, desembaraçada, “feita por si mesma”, cujo sucesso mão se deve a beleza mas por qualidades pessoais como talento, determinação e pé no chão. Produto de apoio paternal, maternal, de uma família da classe média baixa, Davis, como as heroínas dos filmes de mulheres de ficção, encontra e supera as adversidades, pois ela sabe quem ela é e o que ela quer:

Esta garota, Davis, não é a ordinária loira de olhos azuis de vocês. Ela é ambiciosa, corajosa, sem compaixão e com a mente precisa... trabalhando com aquilo que ela tira da vida, o mundo está cheio de mulheres  - e homens - que pensam que ele lhes devem algo para viver (´Bette from Boston´, Silver Screen, in Martin Levin (ed.), Hollywood and the Great Fan Magazines).

Portanto, a imagem é fortemente associada aos atributos de força, independência, construída por um outro jeito, pela descrição de Davis como antiglamourosa e ante consumista, negando todos os ornamentos do estrelato:

Davis não gosta de semelhança com as camisetas glamourosas e apertadas de Hollywood e não faz nenhum esforço para lhes agradar... Seu círculo social é feito de pessoas não profissionais, incluindo sua irmã, seu interesse por cachorros que a aproxima mais do lazer. Sua marca principal é a informalidade... ela não tinge mais os cabelos nem faz mais dietas ( ´Bette Davis´, Life, 8 January, 1939)    

O aspecto mais privilegiado de Davis é o trabalho. Ela é retratada como sendo completamente devotada ao trabalho. Suas qualidades de força, independência e devoção para com a carreira encontram maior força de representação com as extensas reportagens sobre histórias de Davis em 1936 processando judicialmente a Warner Bros. Foi a primeira estrela a querer romper o infame contrato de sete anos. Davis declarou que ela queria ter controle sobre seu trabalho, alegando que os materiais escolhidos pelos estúdios punham em risco sua carreira. A imprensa era solidária com sua posição. Life cobriu a história de Davis, escrita três anos depois do julgamento, começando com um comentário sobre o processo - um índice de sua centralização em relação a sua imagem - e afirma que ela fora melhor julgada pelo material que seus empregados , e que mesmo tendo perdido o caso na corte, ela ganhou a batalha por melhores personagens. Eles adicionaram que “se Davis tivesse ganho sua causa, outras estrelas também teriam se rebelado e ela teria se tornado a Joana D arc de uma revolução dos cinemas”[3]  Davis significou então uma rebelde contra as autoridade de queria lutar por si, para ser uma artista autônoma.

Esforços foram feitos para conter este “feminismo” relativamente inconvencional. Um  método para explicar suas “excentricidades” em termos de estereótipos regionais naturais da Nova Inglaterra de Davis, os Yankee. Os Yankees tinham idéias de terem um pensamento particular, próprio, auto-confiantes, disciplinados e céticos, devotados aos valores puritanos do trabalho duro. (é interessante que duas outras estrelas similares e inconvencionais mulheres independentes, Katherine Hepburn e Rosalind Russel, também vinham da Nova Inglaterra) 

Outra coisa a se afirmar é que ela é uma ótima artista e não uma mera estrela de cinema. Daí se justifica seu desvio das normas femininas. Ë aceitável que é difícil de encontrar um tempo para ficar com o marido ...“com Bette trabalhando consistentemente a maioria do tempo”[4], ela diz “eu não sou muito caseira”[5] pois ela é “a estrela americana (de nascença) mais capaz”[6], “a atriz dramática número 1”[7] , a atriz mais “fina” das telas. Um outro enfoque põe sua sexualidade em questão e esta estratégia tem um duplo caminho. De um lado, cresceram especulações sobre o desejo de Davis por homens  (e esteriótipo dos Yankees é aqui recrutado como referência à “consciência”da Nova Inglaterra e de Davis), por outro lado, sua imagem transgressora reforça, para as mulheres, uma imagem positiva. Desta maneira, enquanto as dúvidas são se ela é sexualmente apaixonada nos seus casamentos  - Davis se separou e casou de novo durante este período. Uma idéia de que o casamento é mais uma questão de companhia e compaixão (muito parecido com os das mulheres do século XIX) emerge, e a paixão é transferida para o campo do trabalho e da criatividade. Dois exemplos:

Outra indicação de quão satisfeita ela está com sua vida profissional é revelada na sua opinião sobre o casamento: “A vida caseira/doméstica é boa se não  for levada longe demais” Característica era a razão pelo qual Harmon Nelson se divorciou da celebridade que melhor incorporava as vickins nas telas...ela estudava os papéis de seus personagens na cama (´Bette Davis´, Life, 8 January 1939) 

Bette disse que ela não iria sentir falta de um casamento de parceria/sociedade, pois ela era uma movie-star. Eles tinham um plano de convivência, que prevenia  que cada um deles se sentisse dominado ou com suas independências roubadas. Ham pagou seu preço, assim o fez Bette. Eles tinham contas e gastos separados e dividiam as despesas da casa. (´That Marital Vacation´, Modern Screen, 1938, in Martin Levin (ed.), Hollywood and the Great Fan Magazines).

A ênfase na independência econômica e na mutualidade, e a idéia de que uma mulher popularmente dita nem bonita nem sexy pode se tornar a maior estrela do cinema apenas por ser talentosa, resistia e atraía as espectadoras (mulheres), contradizendo os discursos patriarcais dominantes sobre as conquistas femininas ao estrelato - os mitos de que as descobertas passivas de pendia da beleza e que com o teste do sofá se  chegaria ao topo.

Desta maneira, em 1942 a imagem de Davis ofereceu um certo tipo de ego ideal para as mulheres: uma mulher inteligente, articulada, com bens, dedicada à profissão e ao lado artístico, pronta para  lutar por si, uma mulher cuja satisfação e sucesso não se baseia na passividade, no romance ou na aprovação masculina. Uma mulher com um relativo poder. Como uma construção histórica de “mulher”, esta definição entra no circuito do discurso feminista e das lutas discursivas.

Na primeira parte do Now Voyager, é particularmente  na sua promoção que o discurso consumista tenta usar a imagem de Davis como uma comodidade. O filme foi vendido como se fosse um veículo de Davis, explorando os conhecimentos das expectadores sobre seus papéis anteriores e sobre sua vida pessoal, a principal ferramenta de marketing.. Desta maneira, os exibidores são exortados a ´relembrarem, seus fãs, do que Bette Davis lhes deu nas suas mais dramáticas performances em filmes´ .

No entanto, os papéis de vagabunda dão maior ênfase, como em Now Voyager ,que ela representa de maneira imprecisa, como se fosse algo completamente novo: ´Em lançamento recente parece que ela estava alcançando novos níveis de insolência e egoísmo...a mudança do personagem em Now Voyager é repentina, completa e provavelmente saudável´. O Press Book diferencia o personagem deste papel com a verdadeira Bette Davis. Ela não é ´uma neurótica, não é uma jovem mulher com problema de tireóide, com trágica perspectiva de vida´, mas sim ´uma “madame” cujo entusiasmo principal é sua fazenda na Nova Inglaterra ,seus cavalos e seus jogos´. A Bette ´real´ é ´da Nova Inglaterra e portanto sabe o que é inibição´.

O Press Book tenta vincular a representação da ´verdadeira´ Davis com sua personagem em Now Voyager, Charlotte Vale. Como certos elementos da imagem de Davis, Charlotte vem de Boston (Nova Inglaterra), tímida e sem glamour; durante o filme ela se transforma fisicamente e sua sexualidade é libertada. A estratégia do Press Book é a de usar o nome da atriz e a permutação da personagem, dando a entender que é Davis que ficou glamorosa ´Bette não era atraente no começo, e antes do filme era bem suburbana´ Esta diminuição da atriz e seu papel reforça o recrutamento da imagem de Davis para promover um discurso de consumo sobre a beleza feminina e seus tratamentos. As listar os elementos fortes, sensíveis e elegantes da imagem de Davis, na forma de supostos conselhos de beleza para mulheres, com um jogo velado de sua reputação como se não fosse glamourosa e um desinteresse pela moda, a impressão dada é que tanto Davis quanto Charlotte Vale mudaram a aparência e aprenderam a dar valor a essas técnicas.

Entretanto, a medida que o filme progride, as contradições (para o público feminino) do consumismo e da imagem de Davis são ativadas, a medida que eles cruzam com o discurso principal estruturado sobre mulheres na ficção e são deste modo puxados para o circuito da cultura feminina, marcando as contradições dos filmes femininos como gênero.  

Women¢s Fiction and the Woman¢s Film: Literary Sources and Conventions (Mulheres de ficção e Filmes de Mulheres: Fontes Literárias e Convenções). Discussão sobre o melodrama e filmes femininos tentaram consistentemente rever as fontes das convenções e ideologias, que dão forma a estes gêneros. Melodramas franceses (Elsaesser, 1972), Dramas gregos (Mulvey, 1977) e pomposas ficções românticas femininas (Cook, 1938 e Harper, 1983) foram antecipados como principais antecessores. Cada um contribuiu para a fonte das formas e valores da estrutura destes gêneros, mas, na sua enumeração há uma lacuna maior: o corpus dos gêneros literários americano cuja escolaridade feminina se aproximou sobre a rubrica da ficção feminina. Um exame desta larga literatura negligenciada foi anteriormente dispensada no mesmo terreno dos filmes femininos, que ampliam os significados produzidos por esses filmes. Um importante aspecto desta tentativa é a especificação nacional que traz a existente análise. O cinema hollywoodiano, apesar de tudo, um cinema nacional com raízes nas pré-existentes formas de cultura americana e com preocupações e representações nacionais especificamente estabelecidas. Desta maneira a ficção feminina americana é importante, desde quando forneceu não apenas várias representações populares de mulheres mas também foi muitas vezes a fonte de outros filmes por exemplo, novelas de Fannie Hurst, Olive Higgins Prouty e Edna Ferber[8]

O objeto da recente escola da literatura feminsta, do gênero de ficção feminina, originou-se no século XIX, teve seu auge na metade daquele  século e daí se envolveu em vários desdobramentos literários no século XX. Foi uma forma diferente da corrente da massa dos espectadores, os romances pomposos tipo Harlequin ou Gothic e suas prosas cor-de-rosa e narrativas propositalmente irreais, nos cenários e personagens. Este último fio de ficção derivou da tradição gótica exemplificado nas novelas de Brontë como Jane Eyre e Wuthering Heights, e existiu lado a lado com o realismo da ficção feminina que eu gostaria de discutir. 

A Women¢s ficcion do século XIX era baseada no domínio formal e ideológico do realismo burguês. Maiores atenções para detalhes realistas, diferenças regionais e maneiras eram características proeminentes na convenção do gênero. Na narrativa e no cenário, as novelas e estórias foram acometidas por uma interpretação ´realista´ das experiências sociais e subjetivas das mulheres, com intenções claramente didáticas e morais.

O molde básico da narrativa de ficção de mulheres é um ´texto de heroína´, uma estória do triunfo pessoal da mulher sobre as adversidades. A variação dominante, característica da jovem mulher que foi forçada, por causa das circunstâncias, além de assumir seu próprio controle, suportar uma série de privações completamente próprias. Como ela batalha para sobreviver e construir uma vida satisfatória para si mesmo ela encontra recursos em seu interior - vontade, coragem e inteligência - que permitem o seu sucesso. ( Talvez o exemplo mais conhecido hoje é Little Women de Luiza May Alcott).

A forma, então, expõe um nível de quintessência da ideologia burguesa Americana, mas com uma importante mudança: a noção da mulher que se faz sozinha (self-made woman). Nina Bym (Woman¢s Fiction, 1980,p.3) reivindica pela fase particular do gênero, ela discute o ´limitado pragmatismo feminino´.

Mas a ênfase das novelas está no pessoal e no relacional, não no institucional e no econômico. Mulheres podem mudar muito de suas vidas trocando suas personalidades, cultivando um novo senso de trabalho (self-work) e adquirindo conhecimento. A América oferece oportunidades para as mulheres que tem ‘vontade´ de avançar por si mesma. A chave é ´encontrar a si mesma´, onde está ´sua verdadeira identidade´. Essa é a clássica mensagem do ego da psicologia americana e , como Bays diz, essas novelas estão por trás da ´formação do ego feminino´ (Baym, p.4).

Hoje esse meio é criticado como uma ideologia reacionária, mas isso é importante para dar o contexto do século XIX, a afirmação de um contexto que a mulher tem que se fazer a si mesma, isso é, são sujeitos e completamente humanas enquanto que desconhecidas da alteridade ou dos elementos naturais, é, de alguma forma, subversiva.

Essa narrativa da trajetória é um aspecto da ficção de mulheres que continua no século XX. Muitas novelas e estórias centram no processo de auto - descobrimento de sua heroína, quando ela progride no conhecimento sobre si mesma (e sobre o mundo em geral)e alguns tipos de poderl Now, Voyage, ambos,o filme e a novela (o filme seguiu intimamente o livro, escrito em 1941 por Olive Higgins Prouty ) numa quase dramatização literal do tema. A heroína, Charlotte Vale, começa em um estado de auto -relutância e falta de identidade pessoal, e com a ajuda da psicanálise, sucede a construção de um firme ´ego-identidade´:  em ambos ela observa e encontra a si mesmo.

A ideologia da ficção de mulheres (women¢s fiction) não é limitada, entretanto, tem esse nível de individualismo e identidade. O corpus também subscreve para o “culto da domesticidade” vitoriano. Mais do que um termo para descrever uma posição de envolvimento do enredo, refere-se à tensão da feminilidade no século XIX e a valorização do doméstico - definido pelos valores do amor, suporte e divisão de responsabilidade- sobre os valores brutais da masculinidade do início do capitalismo industrial.

O ideal e último projeto do culto à domesticidade foi a erradicação do capitalismo patriarcal e a distinção entre o social e o doméstico. Aquele último deveria se tornar uma “grande casa”. A família era vista como o agente central na transformação social: contendo valores como - amor, cuidado com os mais frágeis e responsabilidade mútua - que prevalecerão e por conseguinte podem dar à mulher lucro e poder social.

Na ficção de mulheres (women¢s fiction) isto é projetado nas heroínas para criar um lar feliz, transformar o original triste e a família biológica abusiva - um microcosmo simbólico da sociedade contemporânea - dentro da comunidade doméstica composta por pais, amigos, desabrigados e necessitados. O final de Now, Voyager oferece uma visão da exatidão do tipo de utopia, criação do feminino e da domesticidade governada, substituindo a antiga família biológica destrutível.

A questão da representação da sexualidade feminina e sua conexão com a temática do sacrifício feminino, muito debatida por críticas feministas nos filmes de mulher, pode ser contextualizada e historicizada por uma análise do seu tratamento das mulheres nas ficções. Byam argumenta que a forma é estruturada pela visão de mundo vitoriana: ´um opressivo senso de realidade e nisso habita uma expectativa de desapontamento´e a fé no ´dever, disciplina, auto-controle e sacrifício(dentro dos limites) não foi só moral mas também estratégias usadas na configuração do mundo duro´(p.7). A fé no sistema continuou evidenciando muitos exemplos no século XX, como a Stella Dallas, Back Street e Imitation of Life que estava a serviço de textos paradigmáticos para muitos dos filmes de mulher dos anos 30. Um exemplo da popularidade deste tipo de filme é a ressonância da visão de mundo que houve durante a Depressão. A fé no progresso, mobilidade ascendente e oportunidades ilimitadas para o futuro que caracterizam muitos dos discursos da década de 20, estavam profundamente sacudidos. Em vez dos cultos hedonistas e satisfação pessoal daquelas décadas, houve uma volta aos valores do século XIX como as necessidades para sacrifício e seus efeitos potencialmente redentores.

Nos filmes americanos, a depressão coincide com as imposições do Código Hays de censura, que restringia certas formas de representações, principalmente sobre as revoltas sexuais, políticas ou individuais, pela violência se fez cumprir especialmente nas histórias da vida contemporânea. Assim, a procura cultural por uma filosofia de vida adequada aos difíceis tempos de depressão e a busca das indústrias do cinema por materiais aceitáveis pelo rígido código foi parcialmente satisfeito, ao se voltarem  para as enormes fontes da literatura do século XIX e aos seus descendentes do século XX, sua grande expressão de uma moral filosófica que resultou  das condições dos anos 30.

Mas os sacrifícios, com a repressão da sexualidade feminina na ficção feminina do século XIX, precisa ser mais contextualizada. Em um nível, a ficção feminina estava reagindo a uma nova ficção de massificação popular, “o romance de sensibilidade”, no qual a heroína é reduzida, abandonada e destruída. A idéia da fraqueza carnal feminina, em face do poder sexual masculino, considerava como descrição das mulheres como inerentemente boa, pura e racional. Como prova, as womens fiction ofereceram heroínas que resistiam a tentações sexuais e mostravam-se fortes frente as adversidades. No gênero Vitoriano, a sexualidade era uma força que precisava ser transcendida (em parte por conta das tradicionais ideologias cristãs e também presume-se, por causa da falto de contraceptivos e das terríveis conseqüências sociais da gravidez indesejada).

A medida que o movimento entrava no século XX, este se complicou com o aumento da vulgarização freudiana - nos anos 20 havia uma notificação de recebimento ambivalente da existência e mesmo da legitimidade da sexualidade feminina, submetida no entanto às regulações pelas instituições patriarcais: casamento, monogamia etc. A womens fiction começou a representar os anseios e os desejos femininos, mesmo abraçando o “vulgar freudiano”:  idédias de que a sexualidade reprimida leva à neuroses.

As dificuldades, entretanto, de mostrar os desejos femininos no contexto de uma sociedade que veio imediatamente à vitoriana, enfatizou certos moldes de narrativas e circunvoluções. Motivos de relacionamentos adúlteros, amor verdadeiro impossível, maternidade nobre e ilegítima podem ser vistos como estratégias na tentativa de sancionar os desejos femininos e escapar dos regulamentos, quando ao mesmo tempo permanece de algum modo dentro das leis da sociedade.

Talvez, a forma mais pura das representações dos anseios femininos está nos tipos de relacionamento heterosexual ideal com o herói romântico, característico na womens fiction, ideal que continua extraordinariamente constante desde o período Victoriano. Esta estrutura da heterosexualidade, predominantemente na criada ficção feminina, é notadamente ausente em muitas ficções masculinas.

O duradouro apelo dessa fantasia, para as mulheres, tem sido endereçado pelos teóricos feministas como Chodorow[9]. Enquanto os homens sentem uma intensa ambivalência, através de experiências como união e fusão, e para com as emoções e comportamentos maternais “femininos”, uma ambivalência produzida pela sua posição na família tradicional nuclear e patriarcal, as mulheres, por serem colocadas diferentemente deles (dos homens), sentem isto em menor grau. Já que as meninas nunca são forçadas a rejeitar suas identificações com suas mães, elas continuam tentando a re-experimentar e recriar a felicidade da mãe (bem como da maternidade) - fusão de criança e mãe protetora.

Os temas e convenções da womens fiction sobre os quais os filmes de mulher se desenham, mostrava-se extraordinariamente resistentes em atrair mulheres expectadoras ao cinema e a promoção do o Now, Voyager usou a womens fiction como parte de sua extratégia de venda, testemunhando o seu poder como um circuito discursivo feminista. Davis tem ligação com os livros mais vendidos, escritos principalmente por mulheres, com título característico “Bette a garota bestseller” que enumera os títulos e os autores de todos os filmes de Davis, adaptados de um romance bem conhecido. As atuais propagandas usadas em jornais, revistas e nos posters usados nos teatros e nos cinemas também dão ênfase à ligação com a womens fiction.

Em Now, Voyager é descrito como “do bestseller da autora de Stella Dallas, a novela mais vendida que deixou Boston sem palavras”. As propagandas estendem-se sobre o transgressivo e sobre as grandes emoções do filme: “não tenha piedade de mim.... nos nossos momentos juntos, eu achei a alegria com a qual a maioria das mulheres só podem sonhar... Bette Davis como uma mulher que se recusa a aceitar as normas da sociedade... conheceu Paul Henreid, seu amante, que finalmente combina com todas as suas emoções”. Essas referências às estruturas do romance que marcam as womens fiction atestam as tentarivas do estúdio em trazer a audiência de um público feminino por qualquer meio necessário, endossando mulheres que “quebram os códigos da sociedade”e encontram “contentamento”.Entretanto, womens fiction munidas não só de uma rica fonte de matéria-prima para os filmes, mas em adição a um importante em bem estabelecido contexto de recepção.

Romance

A noção de ´romance´ é  uma noção muito significativa para os filmes de mulher e para os womens fiction. Tendo discutido representações da sexualidade feminina e dejesos de modo geral, eu quero retomar agora uma consideração mais específica do romance como um caminho no qual o desejo feminino é figurado nas ficções femininas. Nas novelas de womens fiction, o ideal relacionamento heterossexual é sempre representado em termos de perfeito entendimento, uma transparência mútua entre os amantes, uma relação de ´soulmates´. Carinho e  mutualidade são partes desse relacionamento, assim como uma admiração e respeito por parte do homem pela mulher. O herói romântico é um ´homem maternal´ capaz de cuidar da heroína; terno, expressivo sobre seus sentimentos, ele não hesita em mostrar seu amor e sua admiração, apaixonado e sempre poético. Os filmes de mulher seguem essas convenções. Para isso estão contribuindo em particular o mise en scène dos desejos femininos que focam nas faces dos  amados, e em particular nos olhos e na boca. O olhar, o beijo, a voz  torna-se o locus do erotismo. O romance de Charlotte e Jerry é visualmente construído em torno das séries de olhares de um para o outro e em torno de rituais de iluminação e fumaça de cigarros.

O progresso desses romances e da ativação dos desejos de Charlotte é marcado pela intensidade e duração de seu olhar dentro dos outros olhos. No começo da seqüência do cruzeiro, os olhos de Charlotte são sombreados pela larga aba de seu chapéu e seus olhos estão sempre abatidos. Jerry, ao contrário, mantêm um olhar intenso e interessante para Charlotte que culmina num close up médio e um primeiro plano dele ascendendo o cigarro dela. Charlotte resiste ao olhar, só dando olhadas rápidas e de relance. O que permite Charlotte olhar ativamente para Jerry é a admissão de sua cultura e vulnerabilidade. Com o seu reconhecimento sobre os detalhes de sua infeliz vida familiar, aí é Jerry que tem dificuldade de olhar para Charlotte e é Charlotte que ativa seu olhar para Jerry. Esse conhecimento mútuo, isso é o olhar insinuador que marca o erótico.

Em ambas, visualmente e narrativamente, Charlotte e Jerry estão representados como parecidos, como macho e fêmea gêmeos, espelhos. Formalmente, eles alternam, tomando posições manifestadamente, primeiro um, depois o outro, influenciando o ponto de vista. Isso é  marcado na narrativa pelas confissões pessoais alternadas de infelicidade e pelas posições alternadas de vigor e fraqueza.





[1] Press Book for Now, Voyager, held by the library of the Academy of  Motion Picture Arts and Sciences, Los Angeles.

[2] Richard de Cordova, “The Emergence of the Star System and the Bourgeoisification of the American Cinemas” in Star Signs (British Film Institute., 1979) 

[3] ´Bette Davis´, Life, 8 Jqanuary 1939.

[4] ´Bette from Boston´, Silver Screen, 1935 in Martin Levin (ed.), Hollywood and the Great Fan Magazines(New York: Arbor House, 1970)

[5] Ibid.

[6] ´Bette Davis´, Life 10 January 1939

[7] “The marital vacation”, Modern Screen, 1939 in Hollywood and the Great Fan Magazines, op cit

[8] Fannie Hurst: Lummox (Herbert Brenon, 1930), Backstreet (John Stahl, 1932), Imitation of Life (John Stahl, 1934); Olive Higgins Prouty: Stella Dallas (king Vidor, 1937); Edna Furber; Cimarron (wesley Ruggles, 1931),  So Big (William Wellman, 1932), Come and Get It (Howard Hawks/William Wellman, 1936), Saratoga Trunk (sam Wood, 1946), Giant (George Stevens, 1956), Ice Palace (Vicent Sherman, 1960).

[9] Nancy Chodorow - The Reproduction of Mothering: Psychoanalysis and the Sociology of Gender. Berkeley: University of California Press, 1978, Dorothy Dinnerstein - The Mermaid and teh Minotaur: Sexual Arrangements and Human Malaise. New York: Harper and Row, 1977.