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Screening Out the Past

Tradução do capítulo introdutório do livro: May, Lary. Screening Out the Past: the Birth of Mass Culture and the Motion Picture Industry. The University of Chicago Press. 1980.

Tradução por Carla Miucci Ferraresi 

 

INTRODUÇÃO

"O cinema apresenta nossos costumes e vida cotidiana mais distintamente que qualquer outro meio; além do mais se voltássemos mil anos no tempo para tentar encontrar alguma forma de expressão que mostrasse claramente como vivemos hoje, teria que ser o cinema... Na minha opinião o cinema moderno não viverá para sempre como uma produção artística, porque seu principal traço é a atualidade - o encaixe imediato ao pensamento corrente."

(Irving Thalberg, Chefe de Produção Estúdios Metro Goldwyn Mayer, 1927 - "Lecture at University of Southern California" unpublished Introduction to the Photoplay, Los Angeles, Academy of Motion Pictures Arts and Sciences).

 

 

Dois anos depois que o cabeça de um dos maiores estúdios de cinema da América deu palestra em uma universidade afirmando o acima citado, Helen e Robert Lynd estudaram Muncie, em Indiana, e escreveram seu clássico sociológico Middletown (1).

 

Ao examinar como a vida em Muncie mudou entre 1890 e 1920, estes pioneiros investigadores da vida americana confirmaram mesmo as percepções de Irving Thalberg. Quatro décadas após Thomas Edison ter inventado a câmera, um novo fenômeno cativou a população: o cinema. A frequência semanal às nove salas de Muncie equivaliam a três vezes toda a população da cidade. Aos domingos, antes caracterizado por severos hábitos protestantes e pela ausência de diversões, os cinemas obtinham sua maior platéia, superando o número de fiéis. Certamente houve uma alteração dramática na moral daquela comunidade. Os cidadãos de Muncie ainda viram maiores sinais de mudança.

 

Ao contrário de recreações antigas, os espectadores vinham de todas as classes e grupos étnicos da cidade, um franco testemunho do cinema como mídia de massa. No entanto, ao observar o impacto deste novo entretenimento, os Lynds deram apenas atenção superficial à conexão entre o cinema e suas outras preocupações: as alterações no trabalho, lazer e família que caracterizaram a era moderna (2). Outros perpetuaram esta omissão. Cegos ao profundo impacto do cinema, acadêmicos falharam em perceber que a indústria cinematográfica oferece um ponto focal ideal para se aprofundar o estudo do nascimento de uma nova cultura.

 

Quando inventado em 1889 e ao ser apresentado na Chicago World’s Fair de 1893, o kinetoscópio mostrou pouco de seu futuro. Por quase uma década, o invento permaneceu na obscuridade até que pequenos homens de negócios levaram-no à bairros de imigrantes das cidades, de onde começou a ser difundido. Por volta de 1902, um número de produtores independentes fizeram centenas de filmes curtos que eram exibidos em cinemas baratos de toda zona norte urbana.

 

Ainda demorou outra década para que os produtores ampliassem o público de cinema de forma a incluir as classes médias, sendo que em 1914 ele tornou-se o primeiro divertimento verdadeiramente de massa da vida americana. Apesar das barreiras iniciais de classes e etnia, os pioneiros do cinema transformaram o peep-show tosco em um business de milhões de dólares. De aproximadamente cem pequenas firmas em 1912, oito grandes produtoras emergiram nos anos vinte para centralizar a produção, distribuição e exibição. Com a transição de indústria empreendedora para truste industrial, a organização do cinema gerou o star system, as salas de exibição suntuosas e Hollywood - um símbolo nacional do moderno estilo de vida consumista.

Junto com este desenvolvimento veio a galinha de ovos de ouro: filmes que traziam ao público a sensação de proximidade à ascensão da nova era afluente. Platéias surpresas com a arte de D. W. Griffith, Mary Pickford, Douglas Fairbanks, Charles Chaplin e Cecil B. De Mille assistiram a novas e talentosas formas de expressão. Mas milhões de novos espectadores também apareceram devido a dramatização feita por estes atores e diretores do tema central da época: a transição da vida Victoriana para a vida moderna, que era ao mesmo tempo esperançosa, problemática e temerosa.

 

Os espectadores hoje imersos em um culto à nostalgia ou curiosos sobre filmes mudos, podem imaginar como era aquele mundo de virada de século. Além do mais, ao viver os desdobramentos daqueles dramas do início da modernidade, os espectadores de hoje identificam-se com os personagens, uma vez que seus problemas lhe parecem tão familiares: Mary Pickford saindo das garras de uma família repressora e ingressando na população economicamente ativa sozinha; as belas banhistas se da comédia de Sennett divertindo-se e rebelando-se contra às autoridades; Fairbanks apreciando boxe e ginástica; Chaplin zombando de modernas formas de trabalho e burocracia; Cecil B. de Mille procurando por uma forma de organização familiar que incluísse a emancipação feminina.

 

Estes assuntos, que parecem relevantes hoje, foram certamente importantíssimos para os espectadores da época, quando costumes aparentemente eternos passaram a não parecer mais tão eternos assim.

Vagarosamente esta revolução levou a uma síntese que trouxe novos ideais de sucesso e, mesmo de classes, na América. Por volta dos anos vinte, personalidades do cinema como Gloria Swanson, Rudolph Valentino, Harold Lloyd e Greta Garbo não mais faziam distinções entre o estilo dos ricos e o dos americanos médios, tanto nas telas quanto em suas vidas particulares em Hollywood. Tinha-se a impressão que no mundo do cinema, as mensagens de cultura popular dominantes no século XIX tivessem sido viradas de ponta cabeça.

Nada era mais característico da imprensa urbana da década de 1890 que um desdém pelo opulento, pelo comportamento decadente rondando a Quinta Avenida de Nova York, o Lago Front de Chicago ou os spas de Newport. Conforme os Vanderbilts, Goulds e outros industriais esbanjavam dinheiro, os reformistas buscavam igualdade desordenando a sociedade.

 

Com o avanço das greves e o aumento da riqueza dos ricos, os moralistas conseguiram espalhar descontentamento entre fazendeiros, cooperativas e pequenos negociantes.

Ainda nos anos vinte, esta mesma economia oferecia aos americanos uma visão da opulência e os antigos sentimentos de repulsa aos ricos deram espaço a admiração por grandes negócios. Apesar de os ambientes de trabalho permanecerem rígidos e hierarquizados e de a riqueza continuar distribuída desigualmente, as armadilhas da luxúria chegaram ao alcance do consumidor médio.

 

A tecnologia parecia oferecer em miniatura o que era antes abundante só nos bairros exclusivos de ricos. Não havia dúvida que havia um desnível entre a promessa e a realidade da boa vida. Mas a produção em massa trouxe de fato um melhor padrão de vida , que alterou as concepções de sucesso. Em Muncie, Indiana, os novos desejos de consumo atraíram a atenção dos Lynds.

 

Ao procurar pela influência mais poderosa na formação de sensibilidade de classes, eles não estudaram antigas instituições, mas sim o moderno sistema de comunicação de massa, especialmente o cinema. "Talvez seja impossível," eles escreveram, "superestimar o papel do cinema, da publicidade e de outras formas de divulgação nesta ascensão em padrões subjetivos. Semana após semana, pessoas de todos os tipos de vida entravam, frequentemente tomadas por uma emoção intensa, que é aparentemente o mais potente meio de se recondicionar hábitos, na intimidade das salas de estar da Quinta Avenida e das casas de campo inglesas, assistindo as atividades habituais de um outro nível cultural".

 

Quando nos perguntamos o que causou esta "revolução nos costumes" e seu significado para a produção cinematográfica, uma clara resposta é que ela não aconteceu em um vácuo. O desejo de entender as bases sociais deste fenômeno chegou a mim quando ainda estudante de graduação no final da década de sessenta. Naquela década o ativismo estudantil e a cultura popular pareciam estar intimamente interligados e alienados da sociedade ao redor. Havia críticas à Guerra do Vietnã, à Guerra Fria, às relações interraciais na América, a costumes sexuais e a padrões de trabalho vindos da época anterior.

 

A margem crítica reside sobre os valores, através dos quais pôde-se questionar o status quo por sua repressão psicológica, sua mania de poder e por sua injustiça. A crítica emergiu sob a forma de uma contracultura que prometia amor e harmonia em um mundo malévolo e comercial. A música, o cinema e outras formas de lazer pareciam reforçar esta rebelião, criando um amplamente notável fenômeno de juventude. No entanto, este reino de excitação juntamente com a dinâmica política foram rapidamente domesticados, aparentemente absorvidos por uma sociedade consumista. O que me abalou foi que esta intensa rebelião não teria sido tão facilmente assimilada caso o padrão em voga não tivesse profundas raízes na vida do século XX. Em uma tentativa de encontrar suas origens, eu me voltei ao tempo em que tudo começou a fim de explorar o início da cultura de massas na América da virada do século .

 

Esta tendência tinha várias implicações, tanto políticas quanto familiares e a ascensão da indústria cinematográfica fornece um meio de se compreender este problema histórico. Acima de tudo, isso exige um exame do modo pelo qual os cineastas foram ativos participantes na formação de uma forma de lazer totalmente diferente daquelas do passado. Para desenrolar a complexidade deste processo, examinarei as relações entre artistas, suas platéias e a energia comercial da vida urbana.

 

Tal como o público, os cineastas herdaram as expectativas do Victorianismo e como todos artistas, respondiam em parte a desejos padrão. Agora, entretanto, esta força determinante passou a residir em uma massa de público sem precedentes centrada em cidades em crescimento. Entre 1910 e 1920, os produtores tinham que ter habilidade não só para responder à demanda de mercado, mas também para planejar soluções frente às alterações no trabalho, em papéis sexuais e em consumo. Em outras palavras, só ao entender qual significado a crise social mais ampla tinha para artistas individuais podemos começar a mergulhar no conteúdo e na estética dos filmes por eles criados. Na verdade esta interação mútua determinava a singularidade do que frequentemente chamamos de filmes americanos e seu habitat, Hollywood.

 

Devido à rebelião contra estilos Victorianos e padrões morais ter jorrado tanta criatividade, o pano de fundo à era do cinema é muito importante. Os cineastas não apenas experimentaram pessoalmente a quebra da nova ordem, como também foram sacudidos pelo nascimento de um fenômeno moderno, o nascimento da cultura de massas. Americanos de classe média crescendo na década de 1890 sabiam que em público ou em particular, a formalidade dominava. Especialmente em entretenimentos, distinções de classe, sexo e etnia predominavam.

 

Todos os homens sabiam que poderiam perambular por prostíbulos, salões de bilhar e casas de jogos, mas mantinham seus vícios separados de sua vida respeitável e, especialmente, das moças de fino trato.

Ao redor do país, leis puritanas e códigos de sobriedade ajudavam a reforçar esta moral e para evitar que estas medidas falhassem, eram feitas cruzadas periódicas anti-vícios. Nos anos do nascimento da indústria do cinema, entretanto, a situação lentamente se modificou. Agora homens e mulheres de classe média passaram a emprestar músicas, danças e até mesmo estilos dos negros, católicos mediterrâneos e outros povos pré-industriais. O porquê da vitória deste experimentalismo moral aliado a uma crise nos papéis econômicos, sexuais e políticos abre a seção seguinte. Após uma breve jornada através do mundo antes do cinema, nós passaremos ao épico principal.

 

 

Notas:

(1) Robert S. and Helen Merrel Lynd, Middletown: A Study in American Culture, New York, 1929, pp. 251-315.

(2) Ibid, p. 82.