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Cinema, infância e educação no I Festival Internacional de Cinema

 O I Festival Internacional de Cinema foi realizado em 1954, pela comemoração do IV centenário da cidade de São Paulo. O evento transformou-se num marco da difusão da cultura cinematográfica no Brasil exibindo clássicos do cinema internacional e apresentando ainda, várias mostras paralelas. Neste artigo, duas mostras são objetos da nossa análise: o Festival de Cinema Infantil e Festival de Cinema Científico.

 

Palavras-chave: I Festival Internacional de Cinema, Cinema Infanto-juvenil, Cinema educativo.

O I Festival Internacional de Cinema foi realizado em 1954, pela comemoração do IV centenário da cidade de São Paulo. Morando na França, Paulo Emilio, que anos antes já vinha participando da organização do evento, entrando em contato com os arquivos, convidando os cineastas e organizando os catálogos, chega ao Brasil no final de 1953, a fim de integrar a comissão executiva do Festival. O evento transformou-se num marco da difusão da cultura cinematográfica no país exibindo clássicos do cinema internacional e apresentando ainda, várias mostras paralelas: o Festival de Cinema Científico, o Festival de Cinema Infantil, a II Retrospectiva de Cinema Brasileiro e as Jornadas Nacionais, além da Retrospectiva Eric Von Stroheim com presença do diretor. Dentre a programação do festival, analisaremos o Festival de Cinema Infantil e o Festival de Cinema Científico.

O Festival de Cinema Infantil

 

A sessão de estreia do Festival de Cinema Infantil ocorreu no dia 15 de fevereiro, às 15h30, no Teatro Leopoldo Froes. Organizado por Sonika Bo, fundadora do cineclube infantil Cendrillon de Paris, e pela Comissão Executiva do festival, o local ficou lotado e contou com a presença da primeira dama paulista e do secretário-geral do festival José Gonçalves de Andrade Figueira. A diretora do clube infantil ficou visivelmente comovida e agradeceu a presença de todos. O festival infantil tinha como finalidade exibir para as crianças brasileiras uma seleção de obras de qualidade, que haviam sido pensadas e criadas especialmente para elas. Sonika Bo, que desde 1932 vinha trabalhando o cinema infantil através de seu cineclube, tornara-se, ao lado da inglesa Mary Field[3], uma das referências no assunto. Assim, ao elaborar a mostra para o festival brasileiro, traz uma seleção de filmes de sua cinemateca infantil que possuía em torno de 800 títulos, muitos dos quais doados pela Dinamarca, Inglaterra, Polônia e Tchecoslováquia (STORCK, 1950, p.135). É de notar que estes países, em especial a Inglaterra e a Tchecoslováquia, mantinham produções regulares de filmes para o público juvenil. No caso dos ingleses, os filmes eram produzidos pela Children’s Entertainment Films que fora criada, em 1944, por Arthur Rank da sociedade Gaumont-British. Já os tchecos tinham uma indústria cinematográfica controlada pelo Estado, desde 1945, e tornaram-se especialistas em desenhos animados e filmes de marionetes. Neste sentido, na sessão de abertura foram apresentados os filmes: Le ravin des aigles/O pastor de Renas (Sücksdorff), Palle Alene I Verden/ O menino que ficou sozinho no mundo (Astrid e Bjarne Henning-Jensen, 1949), Zanzabelle à Paris/Zanzabelle, a girafa, em Paris (Ladislas Starewitch,1947), Gazouilly, petit oiseau / Gazouilly, o passarinho (Ladislas Starewitch, 1953) e Le fusil de chasse/ O fuzil de caça.

A programação do Festival de Cinema Infantil foi formada por filmes de animação, marionetes e curtas de ficção. Para Sonika Bo, uma sessão infantil não poderia ultrapassar duas horas de duração e, cada filme apresentado não poderia conter mais de 20 minutos. No que diz respeito à qualidade das películas, a diretora-fundadora do Cendrillon considera que um “filme deveria aliar distração à instrução, isto é, deve-se apresentar um conjunto que desperte todo o interesse social e psicológico da criança. Tais películas devem ter sequência lógica e beleza e não conter cenas impressionantes ou cruéis”[4]. Ainda, atenta que um “programa ideal” deveria ser constituído por um “documentário de natureza com animais; um filme cômico; um filme de imaginação (seja fantástico, seja filme de marionetes ou um conto para crianças); um filme harmonioso, sobre a dança ou sobre a neve, por exemplo; um filme de ação e um desenho animado em cor” (STORCK, 1950, p.127). Em relação às animações da Walt Disney, o jornal O Estado de São Paulo sublinha no artigo “A importância do cinema na educação da criança” a opinião de Bo sobre o tema:

 

                                              Apesar de considerar Walt Disney um verdadeiro mago do desenho animado, não o aceita como produtor de fitas infantis porque seus trabalhos não são feitos com o objetivo de atender aos interesses da criança. Na verdade possuem sutilezas que estão fora do alcance da mentalidade infantil [...] Pensa, entretanto, que as personagens de Disney, como o “Pato Donald”, “Pluto” e outros, agradam aos pequenos espectadores, devendo, porém, ser dosados para não se tornarem cansativos. (O ESTADO DE SP, 14/02/54, p.12)

 

Entre as dez películas escolhidas por Sonika Bo para serem exibidas em São Paulo, dois filmes de marionetes, com direção de Ladislas Starewitch, haviam sido produzidos por ela: Zanzabelle à Paris/Zanzabelle, a girafa, em Paris(1947) e Gazouilly, petit oiseau / Gazouilly, o passarinho (1957). O primeiro recebeu o prêmio de Veneza em 1949. Quanto à origem dos filmes do festival infantil: 5 eram franceses e 5 de outros países sendo 2 dinamarqueses, 1 tcheco, 1 sueco e 1 russo. Em relação à escolha dos filmes e a reação do público mirim brasileiro, Bo afirmaria:

 

                                              os senhores podem constatar como eu que os pequenos brasileiros deliraram diante dos filmes que lhes apresentei e, mesmo não compreendendo língua estrangeira, seguiram perfeitamente o enredo e a reação era semelhante à das crianças francesas” (FOLHA DA MANHÃ, 20/02/54, p.3).

 

 

O Festival de Cinema Infantil percorreu diversos bairros da cidade de São Paulo, com sessões gratuitas todas as manhãs, nos seguintes cinemas: Sabará, Vogue, Braz, Star, São Geraldo, Carlos Gomes, Santo Antônio, Vila Carrão, Brasil e Ipiranga em que foram exibidos os filmes: Les petits de la ferme/ Os animaizinhos da fazenda; La flûte magique/ A flauta mágica (Paul Grimault, 1946); L’École des facteurs/A escola de carteiros (Jacques Tati, 1947); Zanzabelle à Paris/Zanzabelle, a girafa, em Paris(Ladislas Starewitch,1947), Gazouilly, petit oiseau / Gazouilly, o passarinho (Ladislas Starewitch, 1953), Palle Alene I Verden/ O menino que ficou sozinho no mundo (Astrid e Bjarne Henning-Jensen,1949), Qui aime pardonne/Quem quer bem perdoa, Ukolébavka/Acalanto (H. Tyrlova,1948), Le ravin des aigles/O pastor de Renas (Sücksdorff) e Le fusil de chasse/ O fuzil de caça. Por sua temática itinerante, o festival alcançou um público de 50 mil espectadores que lotaram as salas de cinemas. O encerramento do Festival Infantil ocorreu no dia 26 de fevereiro, às 14h no Cine Marrocos com a presença do diretor Rodolfo Nanni e a exibição do seu filme O Saci (1951). Sobre as exibições infantis, Sonika Bo, em sua entrevista de agradecimento ao jornal Folha da Manhã, declara que todos viram o sucesso que a programação do clube infantil Cendrillon havia alcançado entre as crianças brasileiras e aproveita o momento para fazer um último pedido de que, após sua partida, não fique somente “Uma bela recordação”, mas “que do meu trabalho surja com urgência uma aplicação prática, ou seja, organizar sessões populares do verdadeiro cinema para crianças” [5]. Podemos afirmar que seu pedido seria realizado, sete anos mais tarde, por Ilka Brunhilde Laurito, com o Departamento de Cinema Infanto-juvenil da Cinemateca Brasileira.

 

O Festival de Cinema Científico

 

A inauguração do Festival de Cinema Científico ocorreu no Museu de Arte Moderna com a palestra do diretor do INCE, Pedro Gouveia Filho, sobre os “Aspectos do cinema educativo no Brasil”. O festival científico tivera a organização de B.J. Duarte, que se responsabilizou pela seleção dos documentários científicos nacionais. Do lado internacional, a figura convidada para realizar a curadoria das obras estrangeiras foi o cineasta e cientista Jean Painlevé. Segundo Zanatto (2013, p.31), as obras apresentadas foram divididas em duas categorias: documentários científicos e documentários de divulgação científica. Na sessão de estreia exibiram-se os filmes: Coração físico (Ost Walt), Indústria farmacêutica no Brasil (Humberto Mauro, 1948),  Minério e carvão (Humberto Mauro,1953), Lentes  oftálmicas (Humberto Mauro,1953)  e O rato, animal de laboratório.

O convidado internacional despertou o interesse da mídia e do público. Renomado cineasta e grande incentivador do cinema científico, Jean Painlevé era diretor do Instituto Internacional do Cinema Científico e que, segundo ele, “a ideia da fundação do instituto partiu do Sr. Roquette Pinto [...] e o Brasil foi o primeiro a enviar filmes para a filmoteca internacional” [6]. A missão do Instituto, sediado em Bruxelas, era a de formar uma rede de cooperação entre os países em torno do cinema científico. Nesse sentido, a instituição buscava manter-se atualizada quanto às descobertas do campo cinematográfico, para que pudesse usar “as técnicas mais aperfeiçoadas no serviço da ciência”. Em relação às obras de Painlevé, a coluna Personalidade do Dia, do jornal Folha da Manhã, afirma:

 

                                             Sozinho, inicialmente sem ajuda alguma e com equipamentos primitivos, realizou mais de 40 filmes científicos e educativos! Universalmente apreciados muitos deles premiados em diversos festivais e exposições cinematográficas [...] Os melhores filmes de Painlevé, talvez por descobrirem um mundo desconhecido pelo homem, são os consagrados à vida dos animais aquáticos... (FOLHA DA MANHÃ, 14/02/55, p.7).

 

Em 19 de fevereiro, Jean Painlevé ministrou uma palestra, no Museu de Arte Moderna, sobre o cinema científico. Após a conferência foram exibidos os filmes Études radiocinématographiques sur la métamorphose de la Mouche/ Estudos radiocinematográficos sobre a metamorfose da Mosca (Jean Painlevé),  Die Pferde/ Os cavalos, Biologie  du Hamster/ Biologia do Hamster e Feathered fishers/ Pescadores peludos (Noel Monkman,1950).

No que se refere aos filmes exibidos no Festival de Cinema científico, estes foram formados por obras da Alemanha, Austrália, EUA, França e Itália. O Brasil esteve representado pelos filmes de B.J. Duarte e pelos três documentários do INCE: O Puraquê (Humberto Mauro,1942), Miocárdio em Cultura (Humberto Mauro,1942) e Penetração de Radio-Iodo na Tireoide (1944). O Festival de Cinema Científico teve sessão de encerramento no dia 25 de fevereiro com a conferência de Jean Painlevé.

 

Considerações finais

 

O I Festival Internacional de Cinema tornou-se um sucesso nacional e internacional e, após seu encerramento, Ciccillo Matarazzo propõe à Paulo Emilio de assumir o cargo de conservador-chefe da Filmoteca do MAM. O convite foi aceito e ele desembarcaria definitivamente, no final de maio, no Brasil. Um novo tempo se estabelece na instituição. O momento cultural por qual passava o país aliado à chegada de Paulo Emilio fez surgir uma nova perspectiva para o cinema nacional, principalmente para a Filmoteca, que buscou sob sua direção: organizar o acervo, adquirido em grande parte por compra ou doação durante o festival; incentivar a conservação dos filmes por meio da “campanha do Contratipo”; motivar doação de aparelhos antigos – dioramas, praxinoscópios, lanternas mágicas – para a estruturação do Museu. Esse contexto influenciaria na difusão do cinema infanto-juvenil e educativo, que a partir do I Festival ganharia reconhecimento e, entre 1955 e 1959, as exibições para crianças e jovens se intensificariam na Filmoteca do MAM.

 

Referências Bibliográficas

 

BAUCHARD, P. La Presse, le film, et radio pour enfants. Paris: UNESCO, 1952.

Lara, Thaís Vanessa. Cinemateca Brasileira: Cinema, Educação e Inclusão Social – As ações educativas do Departamento de Cinema Infanto-juvenil (1954-1966). 2015. 178 p. Dissertação (Mestrado em Multimeios) – Instituto de Artes , Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015.

SOUZA, José Inácio de Melo. Paulo Emilio no Paraíso. Rio de Janeiro: Record, 2002.

STORCK, Henri. Le film récréatif pour spectateurs juvéniles. Paris: UNESCO, 1950.

ZANATTO, Rafael Morato. Luzes e Sombras: Paulo Emilio Salles Gomes e a cultura cinematográfica (1954-59). 2013. 185 p. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Assis, UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, 2013.

 

Periódicos citados

 

O Estado de S. Paulo. São Paulo, 14 fev.1954. p.12.

Folha da Manhã. São Paulo, 18 fev.1954. Boletim do Festival, p.2.

Folha da Manhã. São Paulo, 20 fev.1954. Boletim do Festival, p.3.

Folha da Manhã. São Paulo, 14 fev.1955, p7.

 



[1]Este artigo é baseado nos resultados da pesquisa de mestrado “Cinemateca Brasileira: Cinema, Educação e Inclusão

Social – As ações educativas do Departamento de Cinema Infanto-juvenil (1954-1966)” realizada com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e desenvolvida no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (IA-UNICAMP).

[2]Pesquisadora nas áreas de arquivos de filmes, educação cinematográfica e patrimônio audiovisual. É doutoranda do Programa de Pós-graduação em Multimeios do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.    E-mail: O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

[3]Em 1944, a Children’s Entertainment Films foi criada, por Arthur Rank, com o objetivo de produzir filmes para crianças e adolescentes. Mary Field foi nomeada diretora, e durante o período  de 1945 a 1949 foram realizados 180 filmes. Mais informações ver: BAUCHARD, P. La  Presse, le film, et radio pour enfants. Paris: UNESCO, 1952. p.75.

[4]BO, S. A importância do Cinema na Educação da Criança. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 14 fev.1954. p.12.

[5]Sonika Bo: “Muito Obrigada”. Folha da Manhã, São Paulo, 20 fev.1954. Boletim do Festival, p.3.

[6]Mantem-se em dia o Cinema com as descobertas da ciência. Folha da Manhã, São Paulo, 18 fev.1954. Boletim do Festival, p.2.