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O Cinema Silencioso pernambucano e suas histórias

Neste trabalho, procuro analisar os textos voltados para a história do chamado "Ciclo do Recife" (termo que abrange a produção cinematográfica pernambucana nos anos 1920), investigando os percursos de construção dessas histórias... 

a partir de autores como Jota Soares, Alex Viany, Paulo Emilio Salles Gomes, Lucilla Ribeiro Bernardet e, mais recentemente, Regina Behar e Eduardo Duarte, entre outros. Ao longo de mais de cinqüenta anos, esses textos lançam olhares diferenciados sobre a produção do período, valorizando determinados aspectos, reiterando enganos ou trazendo novas informações, em abordagens que, ao tratar daquela época, exibem também as preocupações e interesses que circulam no momento em que são desenvolvidas.


A produção de filmes de enredo em Pernambuco ao longo dos anos 1920 integra os “ciclos regionais” do cinema silencioso brasileiro, que inclui os ciclos de Campinas, Porto Alegre e Cataguases (MG), entre outros. Em Recife, o primeiro filme de enredo de que se tem notícia é Retribuição (Gentil Roiz), lançado em 1925. E as duas últimas produções silenciosas de ficção são No cenário da vida (Luis Maranhão) e O destino das rosas (Ary Severo), exibidas em 1930. Antes, durante e depois desse período em que foram realizados treze filmes de enredo, são produzidos filmes de não-ficção, constituindo uma história do cinema pernambucano bem pouco estudada até o momento.

Até os anos 1960, a principal fonte sobre o cinema silencioso pernambucano é a plaqueta História da cinematografia pernambucana (Fase compreendida entre os anos de 1923 e 1931) (Cinema mudo), escrita por Jota Soares em colaboração com Pedro Salgado Filho (1) . Esse texto servirá de base para o capítulo sobre o Ciclo do Recife (“Outro surto regional: Recife”) no livro Introdução ao cinema brasileiro (2) , de Alex Viany, que também se valeu de um depoimento dado a ele pelo diretor e roteirista Gentil Roiz. Em Il cinema brasiliano (3) , o capítulo “Cicli regionali (Recife e Campinas)”, assinado por Caio Scheiby, também retoma informações da plaqueta e incorpora outras do capítulo de Viany. Principal estudiosa da produção pernambucana do período, Lucilla Bernardet se detém nos textos escritos por Jota Soares, não só a plaqueta de 1944 mas sobretudo “Relembrando o cinema pernambucano”, série de 59 crônicas publicadas no Diário de Pernambuco, entre dezembro de 1962 e fevereiro de 1964. Em 1970, Bernardet conclui a monografia O cinema pernambucano de 1922 a 1931: primeira abordagem e no ano seguinte organiza para a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro um catálogo sobre o Ciclo do Recife (4) , onde retoma vários pontos da monografia. Paulo Emilio Salles Gomes irá se valer das pesquisas de Lucilla ao escrever o artigo “Panorama do cinema brasileiro: 1896/1966” (5) e o capítulo “O cinema brasileiro visto de Cinearte”, em Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte(6) ,daí ser possível encontrar ecos dos textos de Jota Soares nas passagens em que o crítico paulista se debruça sobre a produção pernambucana.

Os trabalhos de Jota Soares, Alex Viany, Caio Scheiby, Paulo Emilio Salles Gomes e Lucilla Bernardet constituem os textos fundamentais sobre os quais se construiu a história do cinema silencioso pernambucano nos anos 1920. A partir deles, vieram outros textos panorâmicos: o capítulo “Os ciclos regionais de Minas Gerais, Norte e Nordeste (1912-1930)”, de Ana Lúcia Lobato, no livro História do cinema brasileiro (7) ; o capítulo “O Ciclo do Recife”, no livro Cinema pernambucano: uma história em ciclos (8) , de Alexandre Figuerôa; e o verbete “Ciclo do Recife”, escrito por mim para a Enciclopédia do cinema brasileiro (9) . Trabalhos mais recentes contribuem com novas pesquisas e leituras sobre o período. É o caso da tese de doutorado de Regina Maria Rodrigues Behar, “Caçadores de imagem”: cinema e memória em Pernambuco (10); e dos livros de Eduardo Duarte A estética do Ciclo do Recife (11) e Sob a luz do projetor imaginário (12) .

A seguir, analiso os que podem ser considerados os “textos fundadores” sobre a produção silenciosa em Pernambuco, comentando depois os trabalhos posteriores.


O memorial de Jota

Ator, diretor e faz-tudo na produção, Jota Soares havia desempenhado papel de destaque na atividade cinematográfica da época, tornando-se nas décadas seguintes seu principal memorialista. Parte dele o primeiro trabalho de sistematização de informações e memórias para compor uma história daqueles anos. Em História da cinematografia pernambucana, ele estabelece uma cronologia dessa “fase da cinematografia pernambucana”, demarcando-a entre 1923 e 1931 – ainda não havia se estabelecido a classificação “ciclo regional”, adotada a partir da década de 1950. Por trás da aparência objetiva do esquema cronológico, há uma série de imprecisões e generalizações que não disfarçam o caráter memorialístico do texto, mais baseado na lembrança do que na pesquisa histórica. O problema é que muitas dessas imprecisões serão reproduzidas inúmeras vezes ao longo das décadas seguintes. Um caso extremo, também exemplo da parcialidade na abordagem de Jota, diz respeito à exibição do filme Filho sem mãe (Tancredo Seabra, 1925), “muito mal recebido pelo público e exibido em primeira linha no cinema São José, recolhendo-se depois, pela falta de aceitação nos cinemas” [p.78]. Viany retoma o comentário de Jota (talvez também alguma observação de Gentil Roiz) e pinta um quadro ainda mais negativo: “mal recebido, o filme só teve uma exibição”. Scheiby é mais sintético: filme mal recebido pelo público. Na sua monografia, Lucilla escreve que o filme não teve carreira comercial por motivo de desentendimentos pessoais, enquanto no catálogo do MAM informa, como Viany, só ter havido uma exibição.

Filho sem mãe veio a ser a única realização da Planeta-Film, formada por dissidentes da Aurora-Film, principal produtora da época, fundada pelo cinegrafista Edison Chagas e pelo diretor Gentil Roiz e da qual faziam parte também Jota Soares, o ator e diretor Ary Severo e a atriz Almery Steves. O comentário sobre Filho sem mãe deixa claro como Jota privilegia em seu relato a atuação da Aurora, colocando em segundo plano, ou mesmo desqualificando, o trabalho das outras produtoras. A pesquisa nos jornais da época indica que o filme da Planeta, além de uma sessão especial para a imprensa, ficou em exibição durante seis dias em quatro cinemas. Houve mesmo uma sessão especial para o governador do estado, honraria que nenhum filme da Aurora conquistara até então. Com exceção de Jurando vingar (Ary Severo, 1925), todos os outros filmes da Aurora e da Liberdade-Film (fundada por Edison Chagas, na qual Jota iria trabalhar brevemente) ganham referências positivas em relação à acolhida do público. Para os filmes das outras produtoras, há sempre uma nota negativa, um tom de fracasso.

O relato de Jota Soares sobre a produção da época espelha sua própria trajetória. Ele localiza o declínio da produção de filmes de enredo no momento de fechamento definitivo da Aurora, em 1927, que coincide com sua saída da atividade cinematográfica. Só voltaria brevemente no último filme da Liberdade, No cenário da vida (Luis Maranhão, 1930), para dirigir algumas cenas de cabaré, as mesmas que iria sonorizar em cada uma das sessões. Como ele mal participou dos últimos anos, esse período ganha pouca atenção nos seus textos e, por extensão, também nos trabalhos que neles se baseiam. Apesar de não haver uma produção tão ativa como nos anos de 1925-6, entre 1929 e 1930 existe uma movimentação de produtoras e, também importante, a produção local ganha um espaço na imprensa como não se encontra nos anos anteriores. No final da década, a crítica especializada de cinema toma impulso, com alguns críticos substituindo os meros divulgadores de programação. Com isso, abre-se espaço para notas e matérias sobre a produção, entrevista com elenco e realizadores, resenhas mais detalhadas e mesmo a publicação de textos de pessoas envolvidas com a produção, a exemplo do diretor Luis Maranhão e do ator Dustan Maciel.

O descaso em relação a esse período final é tamanho que o engano cometido por Jota Soares na datação do encerramento da produção de filmes silenciosos de enredo nunca chegou a ser corrigido, nem mesmo no trabalho de maior fôlego empreendido por Lucilla Bernardet. Ele indica No cenário da vida, produção em que esteve envolvido, como o último título silencioso de enredo, exibido em 1931, enquanto a produção e exibição de O destino das rosas (produção da Spia-Film, com direção de Ary Severo) acontecem entre 1929-1930. Ambos, no entanto, foram exibidos em 1930, com dois meses de diferença. Mesmo tendo sido concluído antes, O destino das rosas estréia só em novembro, quando No cenário da vida já havia sido exibido em setembro. Tomando como critério a exibição, o “ciclo” de filmes silenciosos de enredo se encerra em 1930 e não 1931, como estipulado em todos os textos aqui abordados.

Depois da plaqueta História da cinematografia pernambucana, o primeiro texto importante sobre o cinema silencioso pernambucano é o capítulo de Viany no Introdução ao cinema brasileiro (13) . Tomando como principais fontes o texto de Soares e um depoimento de Roiz, a ênfase novamente recai sobre a atuação da Aurora-Film. Na sua abordagem do período, Viany privilegia dois aspectos: o profissionalismo e a temática regional. Logo na epígrafe do capítulo, cita trecho da História da cinematografia pernambucana sobre a abnegação e sofrimento de todos que participaram da filmagem de Jurando vingar, “principalmente daqueles que viviam somente do cinema” [p.73]. No corpo do texto, Viany volta a citar esse depoimento, que considera “importantíssimo, não só porque ressalta a dedicação desses pioneiros, mas também porque mostra um dos primeiros, se não o primeiro surto de profissionalismo cinematográfico no Brasil: já havia, então, quem vivesse, mal ou bem, de fazer cinema” [grifos do texto, p.77]. Em outro momento, ao abordar as filmagens de Aitaré da Praia (Gentil Roiz, 1925), Viany destaca a rapidez dos trabalhos, “testemunho de sua organização e espírito de equipe” [p.79].

É interessante perceber como ele desloca a origem dos conflitos. Os jornalistas cariocas Pedro Lima e Adhemar Gonzaga (em suas colunas em Selecta e Para todos...) e posteriormente também Paulo Emilio em Panorama do cinema brasileiro destacam os desentendimentos no interior do grupo. Viany não deixa de mencionar as brigas, mas se refere ao “ambiente de desconfiança que se criara” [p.80] só depois de contar uma história na qual surge como grande vilão o investidor da Aurora na época, Joaquim Tavares, não um profissional de cinema, que contrapõe à solidariedade dentro do grupo formado por aqueles que se empenham para assegurar a continuidade da produção.

O segundo aspecto que toma relevo na leitura de Viany é o da temática brasileira. Gentil Roiz lhe conta de um jornalista da época que criticou severamente a influência de Hollywood no primeiro filme, Retribuição, apontando em contrapartida a “rica temática local” [p.76]. Seguindo sua advertência, Roiz irá dirigir Aitaré da Praia. É com esse filme que Viany encerra o capítulo, em tom ufanista: “E ficou Aitaré da Praia, para todos os que viram, como uma grande afirmação de cinema genuinamente nacional” [p.82]. Na abordagem da produção pernambucana, se impõe a perspectiva nacionalista, marcante na esquerda brasileira da época, na qual Viany se insere, e também uma tendência em compreender o jogo de força por meio da diferença de classes, colocando de um lado o investidor, dono dos meios de produção, e de outro aqueles que detinham a força de trabalho e a capacidade de expressão artística.

Pouco depois do livro de Viany, Caio Scheiby escreve o capítulo sobre os ciclos de Recife e Campinas em Il cinema brasiliano (Gênova, 1961). Scheiby aproveita algumas informações de Viany, mas sua principal referência é a plaqueta de Jota Soares, focando ainda mais na atuação da Aurora. Um aspecto curioso do texto de Scheiby é como ele procura estabelecer relações com a Itália, país de origem da publicação, dedicando espaço considerável para a Pernambuco-Film, produtora de naturais que sequer aparece no capítulo de Viany, mas que tem à frente dois italianos. Segundo Scheiby, “se em 1923, dois italianos, Falangola e Cambieri, não tivessem emigrado ao Brasil e se seu destino não fosse Recife, Pernambuco não teria tido um passado cinematográfico” [p.35]. Por vias tortas, ao que parece mais influenciado por uma particularidade editorial, Scheiby acaba por valorizar, como poucos na época, a importância da produção de naturais.


Um mercado excelente?

Assim como Viany, Paulo Emilio Salles Gomes também dá especial atenção aos temas abordados nos filmes silenciosos pernambucanos. No momento em que escreve Panorama do cinema brasileiro, ele já tem acesso às pesquisas de Lucilla Bernardet, o que lhe fornece uma gama mais rica de exemplos do que os conhecidos por Viany. A abordagem de Paulo Emilio, contudo, mantém a mesma contraposição entre traços regionais e modelos estrangeiros. No Panorama..., ressalta a questão da exibição, aspecto ao qual voltará ao abordar a produção pernambucana no capítulo “O cinema brasileiro visto de Cinearte”, em Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte, no qual traz como valiosa colaboração trechos publicados em Para todos..., Cinearte e Selecta sobre a produção pernambucana. Nos dois trabalhos, destaca o cinema Royal, que exibia com festa os filmes pernambucanos, fato que causava ótima impressão junto a Adhemar Gonzaga e Pedro Lima.

Contrapondo-se à postura dos dois jornalistas, que consideravam o mercado pernambucano “excelente”, Paulo Emilio esclarece: “na realidade o ‘excelente mercado’ se limitava a uma sala, o Royal, de segunda categoria, cujo proprietário se empenhava em prestigiar o cinema local” [p.306]. Ele toma por base a pesquisa de Lucilla, embora na monografia o que se lê seja distinto: “Vários cinemas (e, uma vez, o Teatro Santa Isabel, conta Gentil Roiz) exibiram filmes pernambucanos [...] Havia colaboração dos exibidores até na produção, emprestando suas salas para vistoria de copiões, por exemplo” [p.82]. A própria Lucilla, contudo, cai em contradição, porque no ano seguinte à conclusão da monografia afirma, no catálogo do MAM, que “mais raramente outras salas [que não o Royal] exibiram filmes pernambucanos”. A pesquisa nos jornais recifenses indica que boa parte da produção era exibida em outras salas, especialmente nos anos de maior atividade (1925 e 1926). Além disso, a ligação do Royal com a produção pernambucana só se estende até 1927, com Dança, amor e ventura (Ary Severo). Em 1930, é o cinema Moderno que irá lançar os dois últimos filmes silenciosos pernambucanos.

Se relativiza a amplitude do mercado pernambucano, em compensação Paulo Emilio faz questão de valorizar a repercussão que os filmes alcançavam na vida da cidade. Novamente citando o trabalho de Lucilla, ele comenta que algumas das estréias tinham “tanta repercussão quanto as mais importantes regatas, partidas de carnaval ou bailes de carnaval” [Panorama..., p. 64]. Ao afirmar a precariedade do mercado exibidor para a produção local, mesmo quando os filmes são capazes de despertar acentuado interesse do público, o crítico reitera o que considera ponto nevrálgico do cinema brasileiro: o problema não está na produção ou na qualidade dos filmes ou na moralidade dos realizadores (como insistiam Lima e Gonzaga), mas em conseguir inserção num mercado moldado para e ocupado pelo filme estrangeiro. Daí a necessidade, para melhor embasar sua argumentação, de minimizar a exibição local, reduzindo-a a uma única sala, o Royal.

O mercado local não era excelente (como queria a dupla carioca), nem quase inexistente (como afirma Paulo Emilio). Apesar de significativo, não chegava a ser suficiente para permitir a profissionalização do meio (como gostaria Viany) e garantir a estabilidade das produtoras de filmes de enredo. Quando há o movimento de profissionalização – compra de equipamentos, orçamentos mais caros, sustento de quem vivia da produção – o mercado local mostra-se limitado. Em 1926, ocorre o auge da produção, com o lançamento das maiores produções que foram provavelmente os filmes de maior bilheteria (A história de uma alma, de Eustórgio Wanderley, e A filha do advogado, de Jota Soares). E são justamente os sucessos que mostram a inviabilidade do mercado para um esquema de produção profissional. A partir do ano seguinte, voltariam os esquemas amadores de meados da década.

Na ampla pesquisa que realiza em torno da produção silenciosa em Pernambuco, Lucilla privilegia os depoimentos, aproveitando que ainda era possível a conversa direta com os envolvidos, além de empreender uma análise dos filmes de ficção, não só por meio das cópias e fragmentos ainda existentes como também da reconstituição do enredo dos filmes perdidos, consultando sobretudo os trabalhos de Jota Soares – nesse ponto, Lucilla adota o método de Paulo Emilio em Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte, que analisa filmes desaparecidos como Na primavera da vida (1926), a partir de fotos e reconstituição da trama. Caracterizando uma nova concepção na historiografia do cinema brasileiro, Lucilla não idealiza o filme de enredo, fazendo questão de valorizar a presença do cinegrafista Edison Chagas, muito criticado pelos colegas, mas cuja atuação se mostra decisiva para a continuidade da produção, seja filmando longas de ficção ou preparando letreiros para as salas de cinemas, sem hierarquizar as possibilidades de trabalho dentro da atividade cinematográfica. A sistematização que Lucilla elabora do período não se quer definitiva (“primeira abordagem”, já afirma o título), incorpora as contradições encontradas e as dúvidas que a pesquisa não resolveu, além de indicar caminhos para os trabalhos seguintes, exibindo suas próprias lacunas.

Tanto pelas informações quanto pelas arestas que expõe, sua monografia se mantém como uma dinâmica obra de referência, estabelecendo uma história e estimulando o surgimento de outras tantas. Nesse sentido, a monografia mostra-se afinada à postura historiográfica mais contemporânea. Curiosamente, o que se poderia apontar como o aspecto menos bem-sucedido da monografia é quando, ao desenvolver a análise dos filmes, adota um referencial teórico em alta na época, a teoria narrativa de Vladimir Propp no seu livro Morfologia do conto maravilhoso. A preocupação em levantar os elementos invariáveis no conjunto dos filmes por vezes enrijece a análise, quando opta por enquadrar o filme a um sistema, deixando de explorar suas particularidades.


Outras vozes

Os trabalhos anteriores vão servir de base, em maior ou menor grau, para textos panorâmicos sobre o cinema silencioso pernambucano, que se valem das informações já disponíveis, sem enveredar por novas pesquisas. Nas páginas dedicadas ao Ciclo do Recife, na História do cinema brasileiro, Ana Lúcia Lobato se utiliza de boa parte dos textos já citados (Jota, Paulo Emilio de Humberto Mauro, Viany, Lucilla e o catálogo para o MAM), contando com um diferencial significativo: um depoimento concedido por Dustan Maciel. Envolvido na produção e também ator em Dança, amor e ventura e Destino das rosas, Dustan traz com seu depoimento um interessante complemento – e por vezes contraponto – às memórias de Jota que costumavam dar o tom dominante até então.

No efeito do depoimento sobre o texto, dois pontos chamam a atenção. O primeiro é a afirmativa de Ana Lobato sobre não haver em Recife nenhum investidor que acreditasse no cinema como negócio. Aqui é de se notar o peso do depoimento colhido diretamente de um participante da época. Deixando de lado informações que constam dos textos consultados, ela privilegia as declarações de Dustan, estendendo-as a todo o período da produção. A ausência de investidor caracteriza o momento durante o qual Dustan esteve mais ativo, a partir de 1927, mas não confere com os anos anteriores, quando se destaca a atuação do comerciante João Tavares da Fonseca na Aurora.

Outro ponto no qual o depoimento de Dustan irá influir decisivamente diz respeito à datação do final do Ciclo. Lobato é a única a colocar como encerramento do período o ano de 1933, porque considera como parte integrante do movimento os projetos cinematográficos de Dustan (e de outros que não chega a nomear), mesmo que tais projetos não tenham sido levados adiante e se concretizado. Não deixa de ser um critério bem mais coerente, já que se costuma identificar o início do Ciclo com a produção de Retribuição e não a data em que estréia comercialmente nos cinemas. Quer dizer, o critério é o da atividade, da movimentação cinematográfica, não o da exibição. Ao se fazer a datação do fim do Ciclo, o critério é o da exibição, descartando-se a presença de produtoras, mesmo precárias, e de projetos e filmes em andamento que nunca foram concluídos. É um critério, o da atividade cinematográfica, que se mostra afinal muito mais compatível com a realidade do cinema brasileiro, cuja história se faz tanto de filmes concluídos e exibidos quanto de projetos e tentativas que nunca chegaram às telas mas que nem por isso deixaram de movimentar o meio cinematográfico.

Para escrever o verbete “Ciclo do Recife” na Enciclopédia do cinema brasileiro, tomei como principal referência a monografia de Lucilla e daí veio também a linha de abordagem, valorizando os mesmos pontos que Lucilla (importância de Edison; os elementos regionais presentes nas tramas, como o ambiente do canavial, a praia e os jangadeiros, cangaceiro como personagem; em relação aos motivos que selaram o fim do ciclo, reitero a ênfase nos problemas de distribuição e exibição, mais do que às brigas e à chegada do sonoro). Como não fiz pesquisa adicional, recaio nos mesmos erros de datação (História de uma alma em 1925, por exemplo) e corto um dobrado tentando destrinchar e expor de maneira lógica as idas e vindas da Aurora, entre uma falência e outra, e as confusões entre seus integrantes. Há inclusive uma informação errada: o correspondente de Cinearte em Recife, Mário Mendonça, jamais trabalhou como jornalista do Diário de Pernambuco, como afirmo a certa altura. Outro erro: não eram apenas os integrantes da Aurora que se correspondiam com Adhemar Gonzaga e Pedro Lima, também o pessoal de outras produtoras trocavam cartas com eles.

No capítulo dedicado ao Ciclo do Recife no livro Cinema pernambucano: uma história em ciclos, Alexandre Figuerôa tem como principal fonte o texto de Ana Lobato na História do cinema brasileiro e o capítulo sobre o Ciclo do Recife pelo crítico pernambucano Celso Marconi no seu livro Cinema, uma panorâmica (14) . Também consulta Lucilla, Jota e Paulo Emilio (Cinema: trajetória no subdesenvolvimento). Isso para a parte dedicada à história, que além das informações sobre a produção valoriza o enredo dos filmes, dos quais apresenta resumos. Dá espaço para os naturais e para as condições técnicas de produção. Para além do levantamento factual, Figuerôa procura avançar também numa abordagem dos próprios filmes. Para tanto, conta sobretudo com as análises de Eduardo Duarte no livro A estética do Ciclo do Recife, valendo-se também de comentários de Celso Marconi.

No livro A estética do Ciclo do Recife, Eduardo Duarte se propõe a analisar os filmes. É pena que para esse trabalho Duarte não tenha tomado conhecimento da monografia de Lucilla na bibliografia, uma séria lacuna na bibliografia. De qualquer maneira, o livro se destaca pelo esforço em abordar os filmes, território até hoje muito pouco trilhado, com exceção da monografia de Lucilla e alguns textos esparsos. As análises de Duarte, no entanto, se ressentem por se ater à idéia de história-panteão, julgando os filmes pernambucanos à luz de filmes clássicos como Intolerância (Griffith, 1916) ou comparando a movimentos como o expressionismo alemão, estabelecendo parâmetros desproporcionais de julgamento. Outro ponto a salientar no livro é a incipiente abordagem da crítica cinematográfica da época, graças a recortes guardados no arquivo Luis Maranhão (para a imprensa local) e por meio do levantamento realizado nos exemplares de Cinearte e Para todos... na Fundação Joaquim Nabuco.

Poucos anos depois, Duarte lança Sob a luz do projetor imaginário, no qual estuda o Ciclo do Recife e a relação com a vida na cidade durante os anos 20. Faz interessante levantamento nas revistas semanais recifenses, com muitos textos que comentam as mudanças e modernizações pelas quais passava a cidade. E entrevista pessoas que viveram a época, inclusive o diretor Ary Severo.

Assim como Duarte, também Regina Behar trabalha com a memória na tese “Caçadores de imagem”: cinema e memória em Pernambuco. Behar delimita como objeto de estudo a construção da memória do Ciclo do Recife e toda a mitologia que se criou em torno dele, como “momento fundador” para o cinema da região e símbolo de pioneirismo e heroísmo do passado pernambucano. A autora chama a atenção para a predominância do discurso de Jota Soares no estabelecimento da história do Ciclo e analisa detalhadamente suas crônicas publicadas no Diário de Pernambuco no início dos anos 60. Vai buscar em outros depoimentos, sobretudo de Ary Severo, informações que contradizem ou relativizam afirmações de Jota. Faz um minucioso levantamento da recuperação da memória do Ciclo ao longo das décadas seguintes e como ele serviu como apoio ou contraponto a sucessivas gerações de realizadores pernambucanos.

Tanto o segundo livro de Duarte quanto a tese de Behar já apontam um outro momento dos estudos sobre a produção cinematográfica pernambucana, ao procurar traçar relações para além do meio cinematográfico ou da época. Duarte abrange a vida da cidade, no qual a experiência do cinema se inseria. Behar investiga os desdobramentos do Ciclo na história do cinema pernambucano, analisando a construção mitológica que vem caracterizando esse percurso. Ambos buscam o diálogo com referências extracinematográficas, o que se comprova pela bibliografia acionada, que abrange autores de áreas diversas. Esses trabalhos atuam na esfera da história cultural, buscando o diálogo entre texto e contexto, na definição de Michelle Lagny:

Não se trata mais de descrever rapidamente o ambiente ou a atmosfera, o “l’air du temps”, mas de mostrar quais as relações que os objetos culturais têm com os grupos sociais, de maneira a compreender o próprio objeto e o grupo que o consome: o contexto não é mais exterior aos textos, mas em parte derivado da análise de sua forma e da análise de sua recepção (15) .


A exemplo do primeiro livro de Duarte, também Behar se mostra pouco à vontade com a “qualidade” dos filmes pernambucanos. Para não reproduzir o discurso mitificador que critica ao longo da tese, toma o caminho oposto ao escrever que o Ciclo do Recife “ocupa um lugar de importância relativa. Seus filmes não representaram nenhuma revolução estética, pois seu modelo era o do cinema americano, dominante no período” (p.272). Adota aqui o critério do cinema moderno, que valoriza as transgressões, as diferenças, além de não perceber as variações e contribuições que ocorrem no processo de imitação do modelo – aspecto abordado por Duarte em Sob a luz do projetor imaginário.


Para além dos ciclos

Ao longo do texto, não deixei de utilizar os termos “ciclo” e “Ciclo do Recife”. A classificação de “ciclo” é de fato confortável, mas pouco satisfatória. Na maioria dos casos, a noção de “ciclo” privilegia os filmes de enredo, os posados, desconsiderando a produção de naturais. Enquanto o termo “regionais” bem aponta o caráter centralizador embutido na expressão, resultado da avaliação de pesquisadores e historiadores ancorados no eixo Rio de Janeiro e São Paulo. Além disso, a amplitude do termo “regionais” exime maiores detalhamentos das particularidades que marcam a produção em cada uma dessas regiões e cidades.

De acordo com Carlos Roberto de Souza (16) , o termo “ciclos regionais” passa a ser utilizado a partir da apresentação do crítico B.J. Duarte para a I Retrospectiva do Cinema Brasileiro, promovida em São Paulo, em 1952. Dois anos depois, quando é realizada a II Retrospectiva, a expressão já se mostra consolidada (17) . Os próprios realizadores do período silencioso incorporam a designação, como mostra o título do artigo escrito por Humberto Mauro para a revista Elite: “O Ciclo de Cataguases na história do cinema brasileiro” (18) . No catálogo da mostra, ao introduzir o Ciclo de Recife, B.J. explica:

O cinema brasileiro se caracteriza por determinados conjuntos de películas que ora se realizavam no Sul, ora no Centro, ora no Norte e que hoje compõem os chamados “ciclos”. Na fase muda do cinema brasileiro, esses “ciclos” assumiram um aspecto importantíssimo no lote de nossa produção artística, pois a realização das fitas que os distinguia, conforme a região em que se faziam, é hoje um passado que dignifica o cinema brasileiro, compõe-lhe um trecho de sua história, serve até de exemplo aos “ciclos” do cinema sonoro, muito mais pobres do que os do tempo em que no Brasil o cinema não falava (19) .


O crítico estende a noção de “ciclo” para além do cinema silencioso, numa atitude que, longe de constituir uma exceção, expressa uma perspectiva recorrente ao longo da história do cinema brasileiro com suas tantas referências a ciclos, renascimentos e, mais recentemente, a preferência pela expressão “cinema da retomada” para designar a produção de filmes depois do fechamento da Embrafilme. O que se mantém inabalável é o critério que norteia tais concepções, levando em conta apenas o longa-metragem de ficção e colocando à sombra a continuidade na produção de filmes de não-ficção e, no caso da virada dos anos 1980 para 1990, de curtas-metragens.

A idéia do filme de enredo como o “verdadeiro” cinema já se encontra firmemente enraizada nos anos 1920 – como comprova a verdadeira guerra contra os “cavadores” movida durante anos pelos jornalistas Adhemar Gonzaga e Pedro Lima. Quando escreve as crônicas de Relembrando o cinema pernambucano, no início dos anos 1960, Jota Soares não poderia ser mais direto ao explicar seu recorte:

As publicações que fazemos, aos domingos, sobre o CINEMA PERNAMBUCANO prendem-se à fase do pioneirismo relacionado com os filmes de enredo, ou seja, cinema no sentido direto da palavra. Os filmes naturais especialmente comerciais não são citados no período de 1923 a 1931, âmbito reservado às nossas publicações, por serem justamente os oito anos dentro dos quais viveram as nossas empresas que deram a Pernambuco os filmes de enredo que hoje formam a nossa história cinematográfica, com registro de inimitável luta e invulgar audácia (20) .


Seguindo o critério do filme de ficção, delimita-se o início e o final do Ciclo do Recife, que começa com Retribuição, lançado em 1925, e termina com a exibição de No cenário da vida e Destino das rosas, em 1930. A produção de naturais, contudo, se desenrola desde anos anteriores e continua pelas décadas seguintes.

São muitas as lacunas ainda a preencher na história do cinema pernambucano, tanto nos momentos mais reconhecidos (Ciclo do Recife, a produção de super 8 dos anos 70, os curtas e longas realizados pelas novas gerações) quanto em relação a épocas menos pródigas em filmes de prestígio como o longa-metragem e a ficção. Ainda não existe, por exemplo, um trabalho sobre os primeiros tempos do cinema em Recife, em termos de exibição e produção. Assim como permanece pouco ou nada conhecida a trajetórias de produtoras de filmes documentários e cinejornais, como a Meridional Filme, em atividades desde pelo menos 1936, contabilizando 46 títulos até 1956, segundo a Filmografia Brasileira (21) . Pelas informações já disponíveis, no entanto, é possível perceber a existência de uma produção quase sempre ignorada, cujo esquecimento só vem reforçar a idéia de “ciclo”, calcada no ideal do cinema de ficção, deixando de lado outras experiências, como documentários e filmes amadores. A incorporação constante de novas pesquisas, de novas informações, é combustível essencial para manter as histórias em movimento e em transformação.


* Luciana Corrêa de Araújo é doutora em Cinema pela ECA/USP. Em 2005, concluiu Pós-Doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Multimeios da Unicamp, com pesquisa sobre o cinema em Pernambuco, nos anos 1920. É autora de A crônica de cinema no Recife dos anos 50 (Recife, Fundarpe, 1997).

Notas:

1. Recife, Museu Cinema, 1944. Esse mesmo texto aparece com pequenas alterações (e já sem o nome do co-autor) em Notícias de Pernambuco, n.3, ano 1, abril.1953. E em abril de 1960, o crítico Caio Scheiby publica o texto dividido em quatro partes, na sua coluna em A Crítica (08,15,21 e 29.abril.1960).
2. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1959.
3. Gênova, Silva Editore, 1961.
4. Retrospectiva n.13. Cinemateca do Museu de Arte Moderna/Clube de Cinema do Rio de Janeiro/Secretaria de Turismo do Governo da Guanabara, 1971.
5. In: Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. 2 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980, p.35-79
6. São Paulo, Perspectiva/Editora da Universidade de São Paulo, 1974, p.295-366.
7. Ramos, Fernão (org). São Paulo, Art Editora, 1987, p.63-95.
8. Recife, Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2000, p.11-29.
9. Ramos, Fernão e Miranda, Luiz Felipe (org). São Paulo, Senac, 2000, p.124-5.
10. São Paulo, ECA/USP, 2002.
11. Recife, Ed. Universitária da UFPE, 1995.
12. Recife, Ed. Universitária da UFPE, 2000.
13. Aqui deixo de lado o texto de B.J. Duarte, no catálogo da II Retrospectiva do Cinema Brasileiro, em 1954, porque além de ser um resumo, e com muitos erros, do texto de Jota, não teve circulação tão ampla quanto o livro de Viany.
14. Recife, Fundarpe, 1986.
15. LAGNY, Michèle. De l’histoire du cinéma - Méthode historique et histoire du cinéma. Paris, Arman Colin, 1992, p.194-5.
16. Palestra na Unicamp, em 18.novembro 2004.
17. As variações não modificam a idéia básica. Alex Viany, por exemplo, na sua Introdução ao cinema brasileiro (Introdução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro, Alhambra/Embrafilme, 1987), se utiliza tanto do termo “ciclo” quanto de “surto”.
18. Elite, fevereiro.1954. Apud. Autran, Arthur. Alex Viany: crítico e historiador. São Paulo, Perspectiva, 2003, p.138.
19. Retrospectiva do Cinema Brasileiro – I Festival Internacional de Cinema do Brasil. São Paulo, fevereiro.1954.
20. Soares, Jota. “Relembrando o cinema pernambucano (XXXIX)”. Diário de Pernambuco, s.d.
21. www.cinemateca.gov.br Data de acesso: 3 abr 2005, às 11h15.

 

Data de publicação: 26/01/2006