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A Ficção na TV


Por Marcia Carvalho

As estórias de ficção, que provavelmente começaram a ser contadas ao redor de uma fogueira há milhares de anos, encontraram refúgio na literatura e no teatro até cair nas garras envolventes da linguagem do cinema e mais tarde da tela pequena da televisão. A ficção na TV se apresenta com estórias, mais ou menos longas, quase sempre fracionadas, criadas por um ou mais autores, e representadas por atores, diretores e técnicos especializados na arte e na prática da linguagem televisual.

 


A TV brasileira sempre importou programas prontos e formatos de emissoras hegemônicas instaladas pelo mundo afora, mas, paralelamente investiu de maneira constante em estrutura material e recursos humanos voltados à produção de programas nacionais. Na teledramaturgia a produção da Rede Globo ganha destaque com sua linguagem própria para fazer telenovelas e competir no mercado internacional com suas minisséries e seriados que ganharam projeção mundial. Não é raro ler e ouvir a afirmação de que o êxito comercial de nossa produção para a TV está na ficção. No entanto, o estudo e a prática da dramaturgia de televisão exige do profissional e do estudante um repertório teórico e prático interdisciplinar. Dado que a ficção de TV utiliza-se de toda a experiência do cinema, do rádio, do teatro, e da própria tradição literária.

A dramaturgia de televisão

Os gêneros e formatos da televisão nada mais são do que “formas organizativas” de constituintes genéricos e elementos específicos que mudam de acordo com as transformações socioculturais, entre as quais se inclui o próprio surgimento de novas mídias. Nesse sentido, é importante levar em conta as observações do pesquisador Arlindo Machado (2000), que discute a classificação dos gêneros em meio ao hibridismo das linguagens e das mídias da contemporaneidade. Entretanto, na prática da produção e direção de programas para televisão faz-se necessário conhecer as convergências e distinções dos tipos de programas ficcionais da TV brasileira, deixando de lado os desenhos animados e os filmes, quase sempre importados, na busca de um entendimento sobre a teledramaturgia.
Em um dos trabalhos mais significativos que tratam da conceituação da ficção na televisão brasileira, a autora e pesquisadora Renata Pallottini (1998) descreve as características formais dos formatos ressaltando as denominações de unitário e seriado. Assim, é preciso verificar se a produção que se quer estudar ou realizar trata-se de um programa unitário ou seriado, ou seja, se é levado ao ar de uma só vez com começo, meio e fim ou se apresenta uma maior duração, em que o enredo é estruturado sob a forma de capítulos ou episódios, cada um deles divididos em blocos, separados uns dos outros por breaks para a entrada de comerciais ou chamadas para outros programas.
Entre os exemplos de produção do tipo unitário, que também deve ser dividido em blocos para sua inserção na grade de programação, destaca-se o teleteatro, formato que assume as regras do jogo teatral dentro de um estúdio de TV, tal como o espetáculo televisivo Vestido de Noiva, adaptado e dirigido por Antunes Filho e exibido no programa Teatro 2 da TV Cultura, em 1974. Já para o tipo seriado temos a rainha telenovela, as minisséries e seriados.
A telenovela é herdeira dos folhetins da imprensa do século XIX, do circo, do teatro de revista, do cinema, da radionovela, da soap opera norte-americana e novelas latino-americanas, que apostam em histórias melodramáticas e dialogam com tradições da cultura popular e com uma espécie de realismo ideológico ao mostrar hábitos e costumes que ajuda a desfazer, transformar e criar por meio de capítulos seqüenciados, com duração média de trinta a quarenta minutos. Na TV brasileira, desde sua inauguração na década de 50, muitas emissoras, como a Tupi e Excelsior, fizeram da telenovela um produto prioritário de suas programações com garantia de público e audiência.   
Desse modo, a telenovela é considerada um suporte fundamental do tripé que sustenta a base de funcionamento da televisão brasileira que é composto pelo telejornalismo, os programas de variedades e a teledramaturgia. Talvez por isso, as telenovelas estão na grade de programação seis dias por semana, entre seis da tarde e nove da noite, e geralmente separadas por telejornais. A Rede Globo também reprisa suas novelas no período da tarde, e impulsiona as outras emissoras a investir neste tipo de produção.
A telenovela apresenta enorme extensão que comporta cerca de l50 capítulos, os quais, no entanto, podem facilmente crescer a l80 e até 200 se a novela obtiver boa resposta de audiência. O seu texto é dividido em capítulos diários cuja duração total varia, atualmente, de seis a oito meses. Cada capítulo, composto por 45 minutos, é fragmentado por intervalos comerciais, totalizando, quase sempre, uma hora de exibição. Trata-se de um texto que parte de uma sinopse e um argumento, mas que vai sendo escrito ao longo da exibição, com estrutura narrativa repetitiva, construída a partir de um núcleo narrativo central, e com vários outros núcleos narrativos secundários. Em geral, os autores de telenovelas apostam em um escândalo para provocar o interesse de seus telespectadores fiéis. São exemplos: o herói morto que volta a sua cidade em Roque Santeiro (1975) e a filha que vende a casa de sua própria mãe e foge com o dinheiro em Vale Tudo (1988).
Já a minissérie se caracteriza por ser uma história fechada, mas fragmentada em capítulos cuja duração é arbitrária. No princípio, as minisséries tinham de cinco a vinte capítulos, bem menores em extensão do que as exibidas atualmente, que chegam a durar dois ou três meses, mas resguardam a característica da continuidade absoluta e a não multiplicidade de tramas, que são determinantes nas telenovelas.
A minissérie é quase sempre baseada em temas da história ou do cotidiano nacional, com textos originais ou adaptações literárias. Em geral, possui menor número de capítulos que ocupam de trinta minutos à uma hora da programação, com seis a doze horas de duração. São exemplos: Agosto (1993), adaptação do romance de Rubem Fonseca em dezesseis capítulos; O auto da compadecida (1999), adaptação de Guel Arraes da peça teatral de Ariano Suassuna em quatro capítulos, ou as minisséries realizadas a partir de fatos históricos como Anos dourados (1986) e Chiquinha Gonzaga (1998), todas exibidas pela Rede Globo.
Os seriados se definem como estórias que começam e terminam no mesmo capítulo, com personagens fixos, e periodicidade semanal. Os seriados podem ser dramáticos, de suspense, policiais ou de comédias de situação, como é o caso da famosa sitcom norte-americana. O seriado apresenta tramas independentes umas das outras, em que cada episódio tem cenários e argumentos novos e pode ser acompanhado pelo telespectador sem a necessidade de se ter visto o anterior. Para isso, o episódio número um da série precisa apresentar os personagens e a “trama maior” que dará sentido total a cada novo episódio. Um exemplo que marcou época é o seriado Malu Mulher (1979-81). A estória do seriado se explica no primeiro episódio, com o conflito conjugal, a separação do casal e o trauma da filha. Todos os demais episódios serão derivações do fato de Malu (Regina Duarte) estar descasada, iniciar uma nova vida sozinha e ainda buscar entender e solucionar o trauma da filha.
Outro seriado brasileiro bastante inovador e quase anarquista foi Armação ilimitada (1985-88), realizado para a Rede Globo sob a direção de Guel Arraes. O seriado narra em tom farsesco as aventuras do quarteto formado pelos garotões esportistas Juba e Lula (Kadu Moliterno e André de Biasi), a jornalista feminista Zelda (Andréa Beltrão), e o “menor abandonado” Bacana (Jonas Torres).
Atualmente podemos observar novos fenômenos de adaptações para a dramaturgia de televisão como nas produções baseadas no romance “Cidade de Deus”, de Paulo Lins com Palace II, um dos episódios da série Brava Gente, exibido em dezembro de 2000; e o desdobramento das estórias de seus personagens em episódios do seriado Cidade dos Homens.

Também os programas humorísticos migraram do rádio para a televisão com bastante sucesso. A popularidade do gênero na televisão brasileira consagrou nomes como Ronald Golias, Dedé, Didi, Mussum e Zacarias, Chico Anysio e Jô Soares. Os formatos empregados vão desde o programa criado através de diferentes quadros e esquetes, como os consagrados TV Pirata (1988-1990) e Casseta & Planeta (exibido desde os anos 80); o formato de auditório como Sai de baixo (1996-2002); e de seriado como A grande família (primeira exibição em 1972-74, com remake a partir de 2001), todos da Rede Globo.
A ficção também toma conta dos programas infantis com produções de seriados originais como Sítio do Pica-pau Amarelo – um projeto nacionalista da Rede Globo realizado de 1977 a 1986, em parceria com a TV Educativa e o Ministério da Educação e da Cultura (MEC), com novos episódios em 2001-2006, ou o premiado Castelo rá-tim-bum (TV Cultura, 1994-97).  
Outros programas também usam pequenos trechos ficcionais, tais como os docudramas – explorados de maneira sensacionalista em programas como Linha Direta (desde 1999) e a revista – basta lembrar os quadros de humor do Fantástico (desde 1973), exibidos na Rede Globo.

Cenas do próximo capítulo
Theodor Adorno comenta que a indústria cultural tem uma necessidade voraz da novidade para poder recriar continuamente a mesma coisa.  Este é o caso da história da ficção na TV. Uma ficção que é escrita através de imagem e som, com histórias e estórias que são narradas por palavras, músicas, efeitos sonoros, personagens, ações, sentimentos, conflitos, emoções, costumes, paisagens, movimentos e ideologias.
Escrever ficção para a TV é uma tarefa que pode interessar ao escritor e ao radialista que tem estórias para contar ou que deseja trabalhar certos conteúdos, personagens e temas por meio deste veículo. Resta agora esperar com fé e esperança que em tempos digitais de hibridização de gêneros e saturação de formatos, uma pista do que está para acontecer é o despertar para outras experimentações livres na dramaturgia de televisão.


Bibliografia
BRITOS, Valério e BOLAÑO, C.R.S. Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia. São Paulo: Paulus, 2005.

CAMPEDELLI, S.Y. A telenovela. São Paulo: Ática, 1987.

COSTA LIMA, L. (org.). Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.  

FILHO, Daniel. O circo eletrônico. Fazendo TV no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. São Paulo: Senac, 2000.

PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de televisão. São Paulo: Moderna, 1998.

PIGNATARI, Décio.
Signagem da televisão. São Paulo: Brasiliense, 1984.

SOUZA, J.C.A. Gêneros e formatos na televisão brasileira. São Paulo: Summus, 2004.


Marcia Carvalho é radialista, doutoranda e pesquisadora sobre música aplicada à dramaturgia audiovisual, professora universitária, e diretora de um programa de TV.