Por Humberto Silva
Vi O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho (KMF) (No calor da hora, na sala de projeção, a brincadeira de cabra-cega não deixa de carregar certo sentido duplo).
Depois do Oscar de filme estrangeiro para Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, e na sequência de tripla premiação no festejado Festival de Cannes, o filme de KMF desponta como não antes com um “filme brasileiro” (em tempos de coprodução, o sentido de “filme nacional” merece um aviso: trata-se de uma produção que envolve as produtoras: CinemaScópio (Brasil), MK2 Films (França), Lemming Film (Países Baixos), One Two Films (Alemanha), Arte France Cinéma (França), Black Rabbit Media (Brasil) e Itapoan (Brasil) e distribuído nos USA pela Neon – no Oscar deste ano, o iraniano A Semente do Fruto Sagrado, do iraniano Mohammad Rasoulof, foi indicado como filme estrangeiro alemão, portanto um filme alemão, ok?) tem despertado expectativa de premiação na festa máxima da indústria de cinema. Nessa altura do campeonato, o filme de Walter Salles gerava desconfiança de que poderia não estar na pré-lista dos dez filmes estrangeiros…
A expectativa de premiação bem positiva se justifica e mereceu do crítico Juliano Gomes a afirmação de que “para ele é tranquilamente o filme brasileiro mais importante deste século”. Juliano completa seu ponto de vista realçando que “é o filme que mais bagunça os lugares comuns de discussões estruturais do cinema brasileiro das últimas décadas ao pôr a nu a retórica das big produtoras”.
A questão para mim não é a da tergiversante concordância ou discordância, nem de eventual exagero retórico de Juliano, e sim de sua fala extrair como ponto de partida que O Agente Secreto se impõe efetivamente “como um marco em variadas direções”.
Nesse sentido, eu e Juliano partilhamos o mesmo ponto de vista, ainda que, para mim, caiba ao caprichoso movimento da história responder se para a História será o filme brasileiro mais importante neste primeiro quarto de século.
Concordâncias ou discordâncias à parte, postei e dividi com Juliano e amigos…, no WhatsApp, o que segue abaixo:
Trata-se inegavelmente, assim o vi, de uma realização produzida com muito esmero. Reforço: tão bem-produzida, não parece “filme brasileiro” rsrsrs ou, pode parecer menos brasileiro do que seria o caso…; isso não é defeito (vício, a se objetar sobre valor estético a ser proferido), é um dado de produção na ordem do mercado…; e como dado de produção, tanto quanto a produção pode, mas não necessariamente, ser um dado que compõe o valor em uma obra fílmica (em uma produção modesta pode surgir certa dificuldade para se ajustar adequadamente a altura da régua…).
Se a produção de O Agente Secreto – a fazer valer a afirmação de que “é um marco em variadas direções” – é uma das possibilidades para se refletir sobre o que esse filme representa, ou pode representar no movimento da história, eu pondero aqui sobre uma outra direção para se abordá-lo: KMF fez para mim um filme que é, principalmente, um exemplar (paradigma, diria um epistemólogo de plantão) característico do que mereceria um exame cuidadoso do que está no extra-fílmico (o “fato cinematográfico”, para aludir ao teórico de cinema Gibert Cohen-Séat, para quem “fato fílmico” é o filme na tela e “fato cinematográfico” o que é, justamente, externo às imagens vistas) . Com ele, a afirmação da enorme habilidade do KMF para fazer um filme circular. KMF é um gênio (Pós-escrito: obviamente em sintonia com a afirmação retórica de Juliano, sem que, no entanto, o adjetivo fique refém do crivo da história).
No “cinema brasileiro” não vejo outro nome com tanto talento para estratégia de publicidade, autopromoção e consequentemente protagonismo na ocupação de espaços midiáticos – ainda que Wagner Moura seja uma estrela internacional com visibilidade inconteste para promover qualquer filme que protagonize, KMF assume a frente de modo a que Wagner Moura seja não muito mais que coadjuvante de luxo. Nem o comedido Walter Salles, nem Fernando Meirelles, que é ótimo nesse quesito, nem o turbulento José Padilha, e além desses a prateleira é mais baixa, creio que no quesito de autopromoção ombreiem com KMF.
O Agente Secreto é vendido como thriller político com ação nos anos 70????
Marilena Chaui tem um livro de referência, que se inscreve entre os “explicadores” do país: Brasil – mito fundador e sociedade autoritária (Editora Fundação Perseu Abramo, 2000). Nele uma das ideias-chave: o ocultamento da violência que “naturaliza” a verticalização nas relações de poder; assim sendo, o “mito fundador” é aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e ideias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo: no Brasil, a história se repete como farsa; as elites no poder mudam os nomes, a etiqueta, o figurino, mas não a estrutura hierarquizada estamental, que permanece coberta pelo “mito fundador”.
Esse o caminho que tomei ao ver O Agente Secreto. No mito fundador, oculta-se o traço autoritário e como decorrência a corrupção endêmica em que se misturam instâncias de poder, as instituições públicas num conluio entre público e privado, as elites conservadoras do status quo e o povo (claro, aqui uma tinta de sociologia seria oportuna, mas… não raramente advoga-se que para o cinema a sociologia é um entulho…).
À medida que tem esse propósito, retratar o “ocultamento da violência em nossa sociedade autoritária” (a sequência inicial é emblemática, o restante do filme e vemos variações em torno da mesma situação, ou seja, a repetição muitas vezes embebida de nonsense, de absurdo, de realismo fantástico… – não duvido, KMF é fascinado por Gabriel Garcia Márquez), O Agente Secreto é para mim um filme que precisava ser feito no Brasil. Ser vendido como thriller político, por outro lado, é propaganda enganosa, empulhação, ou com boas intenções oportuna estratégia publicitária na qual vejo a enorme habilidade de KMF. Estratégia que, não tenho dúvida, está sendo muito bem-sucedida. A se considerar, por óbvio, que há um caminho cheio de emoções pela frente até a festa final da Academia de Cinema…
Pós-escrito: Em relação à redação inicial postada no WhatsApp, fiz correções, ajustes, complementos para explicitar um ponto de vista. De qualquer forma, entre amigos no WhatsApp – não o Juliano – e a respeito do que escrevi me foi posta uma questão: ao tomar como “enganação” que O Agente Secreto seria um “thriller político”, como então eu definiria um thriller político? Minha resposta então segue abaixo:
Primeira coisa
A questão dos gêneros cinematográficos e, o que não é a mesma coisa, os “filmes de gênero”. Essa questão eu tratei em meu e-book: Gêneros cinematográficos e a Nova Hollywood <https://mnemocine.com.br/?p=931>, publicado pela editora do site Mnemocine.
Acho que vale uma espiada. Isso claro supondo se queira ter a compreensão de como abordo os gêneros no cinema e, principalmente, que não vejo problema no catálogo de gêneros tais e tais na indústria de cinema.
Para a indústria, “filmes de gênero” se inserem na lógica do mercado. Colocam-se, portanto, como produto de marketing, com inegáveis vínculos comerciais. Tomo como premissa que uma discussão ontológica sobre o que é um thriller político, o ser em si, no cinema é atropelada pelo jogo de interesses que visam pragmaticamente por um filme em circulação. Mais de século depois, sim, discutir ontologicamente se L´Arrosseur Arrosé (1895), de Louis Lumière, é uma comédia ou não tem um sentido que só o sentido que o gênero comédia teve na história do cinema possibilita.
Nesse sentido, O Agente Secreto é vendido como thriller político. O retorno de bilheteria e as premiações, com o Oscar como cereja do bolo, respondem pelo sucesso na estratégia publicitária. Isso, contudo, do ponto de vista conceitual (as palavras e as coisas, para evocar querela nominalista…), implica que se trata efetivamente de um thriller político?
Tendo em vista o filme como negócio, ser ou não ser um thriller político, conceitualmente, não tem importância. Pode-se, claro, alimentar discussões vagas, imprecisas, mas nunca definitivas, pois para o jogo com o mercado o que importa é se é ou não bem vendido como thriller político.
Segunda coisa
Não incluo thriller como gênero fílmico. Nem como subgênero. Não entendo o thriller como um gênero autônomo e sim uma tipificação que pode se inserir em gêneros e subgêneros variados. Aqui aplico, para fazer valer categorização lógica, gênero, espécie ou tipos, e a individualização, ou seja, a obra isolada. E assim, como tipo subsumido em um gênero ou subgênero, um thriller pode se incluir entre filmes de terror, de perseguição, de ação, de aventura, fantasia, suspense, drama, comédia, distopias… (conjecturo pensar em Bacurau como um thriller distópico que segue algumas convenções do gênero western… TIPO Meu Ódio Será Tua Herança, de Sam Peckinpah, de 1969).
Como tipo o thriller pode ou não ser marcado por um ou mais gêneros, ou subgêneros, ou conter sequências com tipificações híbridas, de apelo exploitation e assim por diante. O enrosco em O Agente Secreto, por sua vez, é com a predicação de thriller, ou seja, ser identificado como thriller político.
O que é o político no caso? A exposição explícita de um assunto que envolva a política? Se não envolver diretamente um assunto político, cabe usar a predicação “político”? Pois, de algum modo, como pensar a ausência do político em qualquer filme que não seja evidentemente um “filme político”?
Fazer uma comédia tipo screwball nos anos de Depressão Econômica nos USA não deixa de conter uma decisão política ao se oferecer uma obra escapista a um expectador que poderia querer um momento de diversão frente à realidade política. A política assim estaria na ausência de política.
No cinema norte-americano, stricto sensu, é praticamente impossível falar em “filme político”. Melhor: a indústria de cinema nos USA vender um filme como filme político. Lembremos que a questão remonta ao Código Hays, que explicitamente interditava, digamos, questões embaraçosamente políticas. E nem a Nova Hollywood, quando o Código deixou de vigorar, fez em sentido stricto “filme político”. O político desponta, sim, lateralmente no que veio a ser por exemplo os chamados “filmes de guerra” com assunto na guerra do Vietnã. Sim, óbvio, Todos os Homens do Presidente (1976), do Alan J. Pakula…; mas mesmo aqui o foco é o poder de um grande veículo de imprensa, os limites da atuação de jornalistas na cobertura de um escândalo e o direito de se preservar o anonimato de uma fonte. Ou seja, o campo ético da prática jornalística tendo a seara política como combustível. Sim, Topázio (1969), de Alfred Hitchcock, sobre a crise dos mísseis em Cuba, mas basta rápida consulta e se verá que é catalogado nos “gêneros” espionagem e suspense…
Filme político, assumindo essa tipificação estritamente política, com convenções bem estabelecidas e reconhecidas, será levado adiante, em grande escala, pelo cinema italiano nos anos 60, 70, em menor medida pelo francês (Jean-Luc Godard…), e em medida menor ainda pelo Novo Cinema alemão (Rainer Werner Fassbinder…).
Surgem então diretores como Costa Gavras, Gillo Pontecorvo, Francesco Rosi, Elio Petri, Lina Wertmüller, Straub/Huillet, Margarethe Von Trotta…
O problema central do “filme político” está na circularidade entre decisões para realização, em decorrência a abordagem, a dimensão política da escolha, do porquê e como filmar, deixar subentendido o que se revela na tela.
Um exemplo canônico no cinema brasileiro, Pra Frente Brasil (1982), de Roberto Farias, que foi presidente da Embrafilme, não foi reconduzido no cargo, e fez um filme afrontando o regime em pleno processo de transição da ditadura para a abertura política. A censura, ainda atuante, exigiu para liberação a inserção de letreiro eximindo o regime, órgãos do Estado, da responsabilidade pela tortura de presos políticos, ou no caso um cidadão comum pego por azar pelos porões da ditadura.
Roberto Farias colocou os letreiros e o filme foi liberado.
Temos então um filme que denuncia a tortura e, com os letreiros, nega que a ditadura, o regime, tenha torturado.
Essas escolhas acabam determinando a orientação política em um filme, justamente, político.
Essas escolhas são bem complicadas porque fica difícil separar “boas” intenções políticas de fundo, certa dose de cinismo e oportunismo. O Pequeno Soldado (1963), de Godard, é um filme maravilhoso, é um maravilhoso thriller político godardiano para um tema político delicado para a França na época de sua realização. Por isso, é na mesma medida abjeto, se se é de esquerda e com isso levar em conta que pode ser entendido como um libelo à permanência da colonização francesa na África, no caso na Argélia. Anos depois, 1975, Godard repetirá a dose às avessas, sobre a causa palestina, e fará Aqui e Acolá, não que com este tenha ficado imune, com essa virada de posição no espectro político, à acusação de antissemitismo.
Se o predicativo “político” compõe com o que seja um thriller, temos então um caldeirão com ingredientes bem inflamáveis. E nesse sentido O Agente Secreto não escapa ao que seria o político em escolhas políticas que de fato dão orientação política ao que o Kleber Mendonça quer trazer como mensagem, além do notável esmero da produção.
Terceira coisa
Em O Agente Secreto há um jogo constante de pistas falsas. Li muito sobre o aparente embaraço com o título. De modo bem seco: não há agente secreto, O Agente Secreto de KMF não trata de espionagem, não é 007 Contra Moscou…; de modo mais sutil, não tão evidente, é uma homenagem ao agente secreto fake interpretado por Jean-Paul Belmondo em O Magnífico (1973), que aparece rapidamente na tela de um cinema no filme num exercício de metalinguagem. Numa comédia tipo pastelão dirigida por Phillipe de Broca, pode-se bem extrair a escolha de KMF pelas pistas falsas.
Mas, no jogo de pistas falsas, o que é um agente secreto? Tanto quanto faça sentido o predicativo “secreto” para o substantivo “agente” na expressão composta. Ora, quem é Marcelo/Armando, o protagonista de O Agente Secreto???? A ideia de fechar o filme com o filho muitos anos depois…, o Dr. Fernando, que não quer falar sobre o pai, dá a entender que sabe pouco sobre ele, que tem lembranças esparsas, indefinidas, com um olhar para mim com um quê de cinismo, de que até finge se espantar com o interesse estranho de uma jovem pesquisadora ávida para saber sobre um passado que não será revelado, revela como não se sabe quem é Marcelo/Armando (muito do que se escreveu sobre o filme menciona uma volta de Marcelo/Armando ao Recife para encontrar Fernando, o filho pequeno, que Marcelo/Armando tem um passado misterioso…; mas em 1974 esse personagem “misterioso” vivia em Recife, era Chefe de Departamento num curso de engenharia na Universidade Federal, fez pós-doutorado (sic) no exterior e tenta patentear uma descoberta… – o título acadêmico de pós-doutor no Brasil foi reconhecido em 2008…). Logo, se se entende um agente secreto como alguém que transita num obscuro e impreciso submundo de espionagem, contraespionagem, agentes duplos que se encontram entre lados opostos e justamente secretos nas esferas de poder, não é possível afirmar definitivamente que, até como alegoria, Marcelo/Armando não tenha sido esse personagem secreto (misterioso, pois) que para o imaginário do cinema é algo como um 007 fake nos anos da Guerra Fria. No caso, melhor, anos de ditadura civil-militar no Brasil (mera coincidência: esses dias reli de John Le Carré O espião que saiu do frio…).
O título joga, então, com pistas falsas. Isso já foi discutido, escrito, falado e é algo que realmente chama a atenção. Ocorre que, para mim, esse jogo de pistas falsas contamina e dilui o que seria a esfera do político.
O Agente Secreto é vendido como filme político. Muito do que li aceita essa premissa e comenta sobre o filme tendo em vista os anos de ditadura civil-militar no Brasil. Quer dizer, nessa perspectiva, um filme político tipificado como um thriller político.
Voltemos às pistas falsas. Ao mesmo tempo, O Agente Secreto apaga até com certa impostura, certo desdém, marcas do político. A imagem do General Geisel nas paredes de repartições públicas é um referente “explícito” aos anos de ditadura civil-militar no Brasil? Imagino num filme norte-americano numa parede a imagem do General Lee em Django Livre (2012), de Quentin Tarantino. Como referente, pondero sobre o que ela significa e penso em Django Livre, em alguma medida homenagem ao western italiano, como filme político? Se em Django Livre antes de um filme político em razão de uma foto do General Lee penso na homenagem ao western italiano, a se tomar a imagem do General Geisel como referente para um filme político em O Agente Secreto penso que para muitos a referência a Tubarão (1975) no filme de KMF não deixa de ter maior visibilidade como homenagem a um filme que para a história do cinema anuncia a era blockbuster.
Para mim, passado dos 60, a imagem referente do General Geisel tem sentido político e é imediatamente reconhecida. Como dou aula para alunos de 18, 19, 20 anos, esse referente não é percebido por muitos. Fiz a enquete. A imagem de Ernesto Geisel para eles é tão distante quanto a de Delfim Moreira na República Café com Leite (conquanto, suspeito, esta não seja só para eles… – não fiz enquete). Tão distante quanto para muitos enxergar o político num filme de Quentin Tarantino com a imagem do General Lee.
Bem, de modo não tão imperceptível, pois de algum modo está no núcleo da trama, a célula (sic) de perseguidos e refugiados na casa da Dona Sebastiana. Ora, nos anos de ditadura era o lugar de vida clandestina de quem pegou em armas, se opunha à ditadura e não estava no exílio.
Ocorre que nesse espaço para perseguidos e refugiados simplesmente não há o político em sentido estrito. Quem viveu os anos de ditadura, e sabe alguma coisa do sentido das dissidências entre as dezenas de grupos políticos, pode ficar especulando como um filme que trata da ditadura poria num mesmo lugar sem qualquer tensão trotskistas, leninistas, stalinistas, maoistas, guevaristas, castristas, titoístas, hoxhaístas, apistas…; esses referentes não existem em O Agente Secreto.
Mas, no jogo de pistas falsas, o caso mais curioso e desconcertante, o casal angolano. Como teria chegado um casal refugiado angolano a uma célula clandestina de esquerda no Brasil sob uma ditadura militar que matava, torturava e desaparecia com militantes comunistas? Esse casal era do grupo marxista MPLA? Que estava no poder em Angola, apoiada pela URSS depois da independência de Portugal? Por que se refugiar clandestinamente no Brasil quando o MPLA estava no poder e em guerra civil contra a FNLA e a UNITA? Fugir da guerra e viver escondido num país em que se ambos fossem presos poderiam ser mortos por serem comunistas? (Mas, a coisa fica tão mais encardida quando se sabe que o ditador nacionalista Ernesto Geisel, com movimentos de autonomia em relação aos USA e à URSS no contexto da Guerra Fria, reconheceu a independência de Angola e para fortalecer relações com países africanos apoiou o MPLA). Bem, não sendo do MPLA o casal seria da FNLA, da UNITA, grupos apoiados pelos USA e pelo regime de extrema direita branco e racista da África do Sul?
Não tenho a menor ideia do que Kleber Mendonça Filho quis mostrar com o casal refugiado angolano. Mas sem marcas, referentes ao político, fica tão difícil entender o político quanto muitos teriam dificuldades de entender o político na imagem do General Lee num filme de Tarantino.
Há então, claro, e essas marcas me parecem visíveis, um sentido de carnavalização, ou mesmo de sátira política. Uma sátira política que se esconderia na visibilidade comercial de um thriller político. Sátira em que a característica mais evidente é a da justaposição: enquanto um cadáver apodrece no meio da estrada, foliões com fantasias de carnaval, indiferentes ao corpo estendido no chão, festejam no meio dessa mesma estrada.
Kleber Mendonça poderia, assim pode me parecer, tomar o político nos anos de ditadura como realismo fantástico, como o bizarro. O Brasil é tão bizarro que numa célula clandestina, que não é nada clandestina no modo como Marcelo/Armando circula como um cidadão comum, com emprego numa repartição pública e um delegado com quem se relaciona “normalmente” sem tensões notáveis e de quem pede socorro com a eminência de ser assassinado, se misturam gatos e sapatos, comunistas, linha dura e refugos dos porões num mesmo balaio.
Como a mãe de Kleber, a historiadora Jocelice Jucá, foi perseguida, presa, torturada (não tenho informação a respeito de qual grupo ela pertencia…; apenas que teria militado no movimento estudantil…), e em 1977 Kleber tinha 9 anos, imagino a célula clandestina conter um tanto de experiências que ele próprio ouviu, ou eventualmente conviveu… E do que pode ter ouvido reteve lembranças, imagens, não tão precisas daquela época, como assim se revela na figura do Dr. Fernando no final do filme.
Entendo, especulo então que o político nos anos de ditadura para ele pode ter sido algo como um carnaval de mal gosto. E, sim, vender o filme, pista falsa, como thriller político tem um apelo comercial que não teria se vendido como sátira política. Ou seja, o Brasil de 1977 aos seus olhos era tão bizarro que se pode vender um falso thriller político sobre os anos de ditadura como um verdadeiro thriller político.
Quarta coisa
Bem curta
Para um angolano, não dar referente a um casal de refugiados em 1977, não deixar marca alguma de onde teriam vindo, se MPLA, FNLA, UNITA, pode causar um mal-estar semelhante ao de vermos um filme angolano de esquerda no espetro político e que deixa a entender que coisas como AI5, Dops, DOI-CODI, ALN, Molipo nos anos de ditadura civil-militar no Brasil não são coisas importantes, são só siglas…
Ou, de modo mais bizarro, se em vez de um casal angolano na célula de refugiados protegidos por Dona Sebastiana fosse um casal cubano refugiado do regime comunista de Fidel Castro? Como isso seria entendido? Óbvio, não ignoro perseguições, dissidências num regime comunista: Trotsky foi perseguido e assassinado por Stalin no México. Mas, eis o capricho da situação, numa célula em que não se expressam dissidências, tensões…
Quinta coisa
Mantendo-se o predicativo político da expressão thriller político, O Agente Secreto pode ser visto como sátira política, certo. Também, se extrairmos o político – em entrevistas KMF faz questão de dizer que não fez um filme para mostrar órgãos de repressão e ações de grupos de guerrilha –, pode-se dizer que KMF fez um “filme de época”. Uma tipificação para quando se tem a HISTÓRIA, ou o passado, lato sensu, como pano de fundo que enreda a trama. Então, por razões que a trama pode anunciar explicitamente (“No Brasil em 1977 vivia-se sob muita pirraça…”), ou simplesmente exibir indícios por meio de figurinos, penteados, circulação de automotivos que simbolizam uma época… Pecadores (2025), de Ryan Coogler é um terror tipificado pela época da Lei Seca e da ação de gângsters na época da Depressão Econômica nos USA. Mas, exemplos mais marcantes para mim podem ser encontrados em filmes de Martin Scorsese. Lembro de A Época da Inocência (1993), um exemplo distante, baseado no romance da Edith Wharton, tanto quanto tenho presente o recente Assassinos da Lua das Flores de 2023 (colhidos ao acaso, poderia citar também Sexy e Marginal, de 1972…). No primeiro Scorsese, há toda uma preocupação em reconstituição de época, de detalhes que vão das regras de sociabilidade à absorção de hábitos aristocráticos europeus na provinciana Nova York no final do século XIX; no segundo, Scorsese se esmera em detalhar até didaticamente os costumes, crenças e modo de vida da comunidade Osage frente à presença de usurpadores “civilizados” tão gananciosos quanto embrutecidos.
Nem Coogler, tampouco Scorsese, promoveriam a venda desses filmes citados com um predicativo político. Mesmo que se possa ver neles, como um quadro na parede com o retrato de Geisel, algum marcador de época denotando o político. Minha memória recente melhor para Pecadores, a afirmação de músicos de Blues no sul racista obviamente traz conotação política (a alusão ao guitarrista Robert Johnson não é mero formalismo macmahonista…). Mas de algum modo creio com o gênero terror à frente Coogler tem vista o terror de tipificação zumbi legado pelos filmes de George Romero nos anos 60, aos quais de algum modo pode ser referenciado e atrair fãs do gênero terror.
Quer dizer, o político no caso requereria uma leitura tal que, por extensão, por pôr em causa a causa indígena qualquer faroeste B para horas de lazer de crianças produzido pela Republic Pictures nos anos 40 seria um western político (minha lembrança infantil ficou marcada por Vingança de Índio, de 1948).
E se eu ponderar aqui no Brasil sobre filmes de época, eu bem posso dizer que ao retratar a Era Vargas Amor, Estranho Amor, do “alienado politicamente” Walter Hugo Khouri, o famoso filme proibido pela Xuxa, poderia ser vendido como um erótico político…
Então por esse aspecto, de filme de época, O Agente Secreto, retrata os anos 70. E é tão só um dado extra-fílmico, sua recepção, release promocional, burburinho em torno do tempo de sua ação, que acentua ser 1977 um momento em que no Brasil vivia-se a terrível ditadura civil-militar. O que se tem no filme como elementos diegéticos é uma precisa reconstituição de época. Creio que até se possa sustentar, como produção, a melhor reconstituição de época em um filme brasileiro… creio… (um plano geral com enquadramento de uma ponte e a movimentação do trânsito de carros e ônibus sobre o rio Capibaribe deve espantar pelo impacto nostálgico quem quer que tenha na lembrança a Recife dos anos 70 – minha lembrança não alcança em outro filme brasileiro um tempo morto tão impactante de um tempo passado).
Em O Agente Secreto, naquilo que se vê, se tem creio que com excelente precisão, cuidado aos detalhes mais sensíveis do ambiente, das relações humanas, os valores sociais como a afirmação da virilidade masculina em trejeitos casuais, o sentido de experiência do cinema de rua, a brutalidade e truculência policial, os achaques, corrupções que “naturalizam” o cotidiano, a soberba de uma classe superior, classe alta, em relação a qualquer tipo de punição. Enfim, tudo isso que está no filme e hoje em algum aspecto pode até gerar estranheza e que compõe o sentido de como se viveu uma época. Aquela época em Recife.
Aí então o político como predicativo do thriller. Ora, em nossa história a ditadura civil-militar está impregnada do político. A expressão “anos de ditadura” carrega o político e é uma ferida, um trauma, tal qual creio nos USA a Guerra de Secessão, ou mais recentemente a do Vietnã. Por isso pode extrapolar o sentido mais comum da trivialidade cotidiana, do dia a dia de pessoas comuns que não estavam envolvidas em política stricto sensu e possivelmente tantas não tinham sequer a mínima noção do que seria uma ditadura. Ela estava no dia a dia, nas situações mais banais, mais casuais, como a de uma abordagem truculenta e intimidadora de uma patrulha policial no meio da estrada.
Nenhum empecilho, e até oportuno, agregar a O Agente Secreto a dimensão política nos anos de ditadura e pegar a rabeira do oscarizável Ainda Estou Aqui, este sim, sobre a ditadura civil-militar, um filme explicitamente político.
Cabe então ver que nessa estratégia de marketing não há para mim nenhum problema senão de algum modo que se perca de vista, notadamente, a estratégia.
Sendo ela bem-sucedida, e vejo que está sendo, não vejo razão para pôr reparo ao modo genial com que Kleber Mendonça Filho joga com pistas falsas. Desde que não se ponha embaixo do tapete as inevitáveis implicações dessa, vamos assim dizer, brincadeira de cabra-cega. KMF, o personagem, me é difícil acreditar, seja ingênuo para supor ter feito uma obra fílmica absolutamente imune a controvérsias ao abordar tão controverso momento na história do país.
Sexta coisa
Um adendo:
“Aqueles anos foram anos de muita pirraça…”
Pirraça???
Nordestino, cresci ouvindo de meus primos, também nordestinos, que quando contrariado eu fazia pirraça. Mas na escola primária, aqui em São Paulo, quando contrariado meus colegas de escola diziam que eu fazia birra. Nunca lhes perguntei se sabiam o que era pirraça. Nem a meus primos se sabiam o que era birra. De qualquer forma, criança, demorei um tempinho para perceber a sinonímia… Curiosidades do linguajar regional brasileiro…
Anos de pirraça? Nisso, sim, algo bem pessoal. Uma teimosia, insistir em alguma coisa para provocar, irritar, desafiar, não ficar quieto, retrucar obstinadamente tendo ou não razão, não aceitar desaforo…
Assim é Marcelo/Armando na relação com o vilão fake Ghirotti. E então, com andamento de uma comédia de erros com resultado trágico, a vingança (Kleber, suponho, seja excelente leitor de Shakespeare…). Nesse sentido, menos que thriller político, na medida em que desavenças pessoais são resolvidas com violência, pois no fundo envolvem questão de honra, portanto um acerto de contas frente a uma “pirraça”, O Agente Secreto não deixa de ser, enquanto acerto de contas, uma sequência de O som ao redor.
Conclusão
Assim respondi à indagação sobre o porquê para mim O Agente Secreto ser enganação como thriller político.
Gostei mesmo da pergunta que me foi feita por um amigo no WhatsApp. Acho que é importante. Acho que se um filme provoca discussão assim nisso em grande parte para mim um desafio para pensar tanto quanto a beleza e importância do cinema. Nisso a relevância mais notável num filme que, retomando Juliano Gomes, estimula pensarmos “em variadas direções”.
O Agente Secreto, assim como o personagem KMF, desperta paixões. E é bom ver o quanto essas paixões nos põem questões que merecem ser pensadas, valem, creio, algumas linhas como as que me dispus a escrever.
–
Humberto Silva é professor de História do Cinema na FAAP e crítico de cinema. É autor, entre outros, do e-book Gêneros Cinematográficos e a Nova Hollywood (Editora Mnemocine, 2024) e membro da Abraccine.
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