Dissertação de Mestrado - Filipe Salles - 24/06/2002
4.3. Considerações híbridas (correspondências
Som-imagem)
Quando, após
as considerações acima, nos propomos a estudar a união
destas duas instâncias, devemos ter em conta que tais correspondências
são primordialmente conseguidas em função de uma
dimensão estética, e não de uma dimensão física,
uma vez que não há (ou não se conhece) uma razão
unificadora consensual entre as naturezas físicas e eletromagnéticas
neste caso. O engenheiro Paulo de Castro, em seu artigo 'Vibrações
de Luz e Som' (1999) nos fornece explicações detalhadas
sobre este aspecto:
Figura
9: Esquema comparativos das freqüências luminosa e sonora
|
Além
de serem fenômenos de natureza distinta, som e luz diferem bastante
pela extensão e valores das freqüências abrangidas.
Na luz é percebida apenas o que em música denominamos
"oitava" (Oitava é o intervalo entre duas notas sucessivas
com o mesmo nome, entre dois "dós", por exemplo.
A quociente entre as freqüências de tais notas é
sempre 2). A freqüência da cor violeta, última vista,
é o dobro da do vermelho, a primeira cor vista. É nesse
intervalo que se encontram todas as cores que vemos. No som, a última
freqüência percebida é cerca de 1000 vezes o valor
da primeira, dando uma extensão de cerca de 10 oitavas. Os
instrumentos musicais abrangem uma faixa de 7 oitavas, aproximadamente
de 32 Hz a 4200 Hz. É nessa faixa que distinguimos bem a harmonia
entre os sons musicais, mais puros e onde se desenvolve todas as obras
musicais conhecidas. (Castro, 1999) |
Assim, enquanto
que a cor visível abrange, segundo a razão 2:1, apenas uma
oitava, o som audível abrange, na mesma razão, 10 oitavas,
(ver figura 9) mas em valores escalares diferentes e de naturezas distintas,
razão pela qual qualquer comparação entre o som e
a imagem deste ponto de vista é arbitrária, uma vez que
existem diversas maneiras de combinar freqüências entre som
e imagem. Este é o motivo pela qual não podemos estabelecer
um ponto de apoio nas considerações frequenciais.
Entretanto, há diversas outra instâncias em que o som e a
imagem se casam com perfeição: ambas tendo naturezas vibratórias,
estão sujeitas a leis similares, como por exemplo: reflexão,
refração, absorção, transmissão, difração.
Tais características são apenas observáveis em movimento,
ou seja, em plena manifestação sonora ou luminosa, e isso
é muito importante para considerar a questão temporal (duração,
ritmo) comum entre ambas. Mas há outras características
que nos são observáveis e que nos fornecem sensações
semelhantes, ou seja, agrupamentos paradigmáticos comuns segundo
a organização física manifestada. E a nós
são percebidas segundo instâncias convencionais, cores, timbre,
contraste, dinâmica, forma, ritmo e harmonia.
4.3.1.
Cores (tons)
A primeira
relação pesquisada cientificamente entre o som e a imagem
foi a instância cromática. Uma vez que as cores são
freqüências do espectro eletromagnético e o som freqüências
mecânicas, mesmo sem que soubessem de suas distintas naturezas,
a inter-relação entre ambos pela questão vibratória
foi amplamente discutida. Muito pode ser atribuído a um conhecimento
antigo que associava essas instâncias vibratórias em rituais
de sacerdócio em diversas religiões, sempre acompanhados
de determinada indumentária com cores específicas, além
de mantras e incenso.
Isaac Newton, foi, naturalmente, seu precursor científico. Tendo
justamente ele descoberto a composição da luz solar branca
através de suas experiências com o prisma, imaginou que a
luz era constituída por uma torrente de partículas e que
sua transmissão se dava por ondas. Portanto, tais ondas deviam
seguir a periodicidade de qualquer movimento vibratório, tendo
freqüência e comprimento de onda. A similaridade com as ondas
mecânicas do som neste aspecto é imediata, e Newton, tendo
observado 7 cores na decomposição da luz (em referência
direta com as 7 notas da escala diatônica), foi o primeiro a colocar
comparativamente o som e a cor lado a lado, presumindo que cada cor corresponderia
a uma nota. Desta maneira, produziu dois discos: um, famoso nas experiências
escolares, contém as 7 cores do espectro visível, que, ao
ser girado, tem como resultante o branco, e outro, em que as cores são
associadas às notas, conforme a figura 10.
Figura
10: Disco de cores e notas de Newton
|
Este
disco parte de uma relação aparentemente arbitrária,
a de colocar a menor freqüência cromática, o vermelho,
no início em Ré, passando por todas as notas diatônicas
até chegar novamente em Ré, na freqüência mais
alta ainda visível, o violeta. Isso caracteriza uma escala no modo
Dórico renascentista. Segundo Niels Hutchison (1997), esta determinação
em começar em Ré era importante para que o disco pudesse
servir, através de sua geometria, para calcular combinações
cromáticas por analogia.
Pouco antes (séc. XVI e XVII), diversos outros autores, como o
padre Kircher (1602-1680) e o padre Mersenne (1588-1648), também
estabelecem uma lista comparativa. Mas o jesuíta Louis-Bertrand
Castel (1688-1757), em 1743, cria um instrumento próprio, conhecido
como cravo ocular, que baseia-se nas premissas de Newton e acrescenta
o tratado de Harmonia de Rameau para criar um 'órgão de
cores' (Cotte, 1995:29-30). Neste caso, um pouco mais sofisticado, ele
incluiu cores intermediárias como os acidentes cromáticos
da música. Este tipo de instrumento que combinava cores e sons
foi produzido também em 1844 por D.D. Jameson, utilizando luz filtrada
através de líquidos coloridos refletidos em placas de metal,
e em 1893 por Alexander Wallace Rimington, que patenteou seu próprio
órgão de cores, descrevendo-o no livro Color Music: The
Art of Mobile Colour (1911).
Entretanto, o cientista alemão Hermann von Helmholtz, já
em 1910 havia publicado um estudo sobre a propagação de
ondas sonoras descrevendo suas equações segundo a teoria
dos harmônicos. Essa obra, On The Sensations Of Tone (1954),
uma das mais completas sobre a natureza do som, explicava a consonância
e dissonância, bem como o comportamento dos timbres, pelos eventos
harmônicos de cada som. Fascinado pela idéia da correspondência
entre cor e som, estudou a teoria tricromática de Thomas Young
e estabeleceu a primeira escala de correspondência baseado nas freqüências
numéricas de cada suporte. Mas, sabendo das diferenças entre
a posição do sentido visual e do sentido auditivo numa escala
contínua de freqüências, estabeleceu alguns parâmetros
arbitrários, cf. figura 11.
Figura
11: Correspondência de sons e cores segundo Helmholtz (fonte:
Muller & Rudolph)
|
Na
mesma época, 1911, Alexander Scriabin (v. adiante) escreveu seu
Prometeu - Poema do fogo, para orquestra e órgão
de luzes, baseando-se nos textos místicos de Helena Blavatski para
compor sua própria escala de cores.
Assim, teríamos o seguinte resumo das correspondências entre
cor e som:
|
Por este
motivo, uma série de outros autores procuraram outros parâmetros
que não a relação de freqüência para comparar
harmonias musicais e cromáticas; muitas vezes argumentos puramente
poéticos. O dramaturgo, escritor e poeta alemão Johann Wolfgang
von Goethe (1749-1832) é um exemplo bastante contundente, em seu
tratado Doutrina das Cores. Embora sua intenção fosse
desvendar os fenômenos cromáticos na intenção
estética que deles decorrem, a erudição e o profundo
conhecimento do poeta das ciências físicas, especialmente
a newtoniana, fez deste estudo algo muito mais importante que um tratado
cromático para a arte; é um grande estudo científico,
e que não deixa de comentar tal natureza simbiótica, nos
capítulos "Coloração Harmônica" e
"Tonalidade Autêtica":
Se a
palavra tom ou tonalidade continuar no futuro a ser tomada de empréstimo
à música e aplicada às cores, deverá ser
empregada melhor do que atualmente.
Não seria ilegítimo comparar uma imagem de forte efeito
a uma peça musical em tom maior, uma pintura de efeito suave
a uma peça em tom menor. É possível encontrar
ainda outras comparações para as modificações
desses dois efeitos principais (Goethe, 1993:149). |
Goethe devia
ter em mente, ao estabelecer tal comparação entre os modos
maior e menor com imagens pictóricas, a prática comum vigente
no classicismo de tratar tonalidades menores de maneira mais sombria e
sutil (normalmente, se o primeiro movimento de uma sonata ou sinfonia
fosse escrito em modo maior, o segundo - o movimento lento - seria na
sua relativa menor), mas a partir do romantismo, a tonalidade menor foi
tratada com maior ênfase - vide a própria V Sinfonia
de Beethoven, que abre com uma imagem 'de forte efeito' em dó menor.
Entretanto, mais adiante, tratando especificamente de pintura, Goethe
volta a adotar o termo harmonia para o perfeito equilíbrio de uma
obra artística:
Pois
sem uma visão do todo, nosso fim último não será
atingido. O artista deve se aprofundar em tudo o que já foi
exposto. De nosso atual ponto de vista, somente através da
harmonia entre luz, sombra, modulação e verdadeira coloração
característica é que a pintura pode se mostrar perfeita
(Goethe, 1993:51) |
que aqui
nos importa é justamente, independente dos exemplos temporais citados,
que o emprego do termo harmonia para as cores não é em vão.
Muitos outros autores recentes a tomam na mesma medida, e temos ainda
o exemplo concreto das experiências cromáticas na perfomance
musical com a obra Prometeu de Alexander Scriabin, para piano,
orquestra e órgão de luzes. Assim, em Prometeu, os
acordes musicais são acompanhados por acordes correspondentes em
luzes de diversas cores; embora sua correspondência entre sons e
cores seja considerada arbitrária (cf. Tomás, 1993:69),
há uma interpretação bastante pessoal que pode ser
analisada sob o seguinte prisma: cada cor corresponde a uma freqüência
do espectro, sendo as menores de tonalidade vermelha, alaranjada e amarela,
passando pelo verde (intermediário) e chegando aos tons de azul,
de freqüência maior e mais sutil, até chegar ao violeta,
última cor percebida por nós. Analogamente, o dó
maior, enquanto base harmônica, que no sistema tonal é a
mais simples das tonalidades, é associado ao vermelho intenso,
e o si maior, mais distante, é associado ao azul, fechando um ciclo
cromático nos sons e nas cores. Da mesma maneira, todas as tonalidades
cromáticas de baixa freqüência (amarelo, laranja e verde)
são associadas às vontades humanas, enquanto que freqüências
mais altas, (azul e violeta em várias gradações)
associadas às vontades divinas (Tomás, 1993:129).
O mesmo conceito de acorde luminoso é evocado por Israel Pedrosa
(1999), dividindo as tonalidades cromáticas em escalas de modo
maior e escalas de modo menor, segundo o "equilíbrio dos elementos
mais ativos da escala de tons". Mas Pedrosa é mais cuidadoso
(como sugeriu Goethe) no uso destes termos, dividindo com muita propriedade
os conceitos harmonia e acorde para cores:
Comumente
a harmonia é confundida com a combinação ou acorde
de cores (...) Mas a harmonia, pressupondo o equilíbrio de
um conjunto de partes ou de unidades para formar uma totalidade de
novo tipo em relação aos elementos que a integram exige
algo que ultrapasse o simples acorde. (...) Para que surja harmonia
é necessária a superação do conflito das
forças contrárias, expresso pela ação
das complementares. Por isso, Newton afirmara que as complementares
não são o princípio da harmonia, fundando-se
esta numa maneira qualquer de identidade das partes, e não
na simples oposição das mesmas. (Pedrosa, 1999:160) |
E, mais adiante,
Pedrosa cita exemplos de acordes cromáticos consonantes e dissonantes,
conforme a figura 13.
Figura
13: Acordes cromáticos segundo Pedrosa
|
É importante notar que, apesar das inúmeras tentativas de
estabelecer uma analogia de escalas entre sons e imagens por freqüência,
elas sempre obedecem a razões específicas para cada autor.
Mesmo assim, elas funcionam e não cessam de vir à tona,
principalmente nas artes híbridas do séc. XX.
4.3.2.
Timbre
O timbre
é tido normalmente como um desdobramento da associação
cromática, numa associação muito comum de "colorido"
orquestral, bem como preto-e-branco do piano, por exemplo. Isso se dá
por diferentes motivos: primeiramente, não há uma correspondência
direta de timbre na luz, ou seja, a verificação da fonte
de luz pela sua emissão não é precisa. Outro motivo
decorre do espectrograma de cada timbre poder ser associado também
ao espectrograma das cores, conforme Pierre Schaeffer menciona no seu
Tratado dos Objetos Musicais (1993).
Outra maneira de abordar a questão do timbre é a que é
usada em Fantasia: diretamente ligado ao desenho melódico.
Isso advém da possibilidade de visualizar, através do sistema
movietone, o som 'desenhado' na película, ou a tradução
vibratória do som em escala visual. Cada som é representado
por um desenho diferente, que possui um caráter segundo sua forma
(mais suave, mais grosso, regular ou irregular, com ângulos agudos,
arredondado, etc.), e que é muito próximo do desenho obtido
pelo espectrograma do som em laboratório. Exatamente no meio de
Fantasia, entre as seções da Sagração
da Primavera e da Sinfonia Pastoral, há um interlúdio
em que o narrador nos apresenta a 'Banda Sonora', que é justamente
a faixa movietone. Uma linha entra em cena e o narrador lhe pede que mostre
um som. Primeiramente, um ruído é produzido, e uma faixa
de ângulos irregulares e caóticos toma parte na imagem. Depois,
sons específicos, divididos segundo o timbre: violino, flauta,
fagote, harpa, trompete e instrumentos de percussão. Cada um apresenta
um desenho diferente, muito característico e a propósito
de seu timbre: é estabelecido um paradigma de correspondência
entre os timbres e os contornos visuais.
4.3.3. Contraste / Dinâmica (forte-fraco)
Outra instância comum à ambos os suportes é a
dinâmica. A dinâmica sugere leituras diferentes quando passada,
por analogia, de um suporte para outro. É usada para designar sons
fortes e fracos na música, e que é exatamente esta a acepção
que usa Harnoncourt, em seu Diálogo Musical (1993), quando
fala de Mozart: "O chiaro-oscuro, o contraste de luz e sombra,
que na música se refere em geral à dinâmica, é
indiscutivelmente uma das qualidades mais fortes em Mozart", ou ainda
quando faz uma comparação como "É a música
reduzida a um doce sorriso, uma harmonia tranquilizadora e perfeita."
(Harnoncourt 1993:104-106). Um termo utilizado na pintura, é aqui
evocado para tratar as dinâmicas da música, da mesma maneira
que a harmonia desta é usada para a combinação de
cores naquela.
Outros autores vão utilizar a mesma terminologia mas com outra
interpretação. Ao invés de significar diferenças
de contraste entre luz e sombra, é usada no sentido cinético,
ou seja, de movimento. Arnheim nos fala de dinâmica do movimento
da imagem, que seria na verdade, em música, uma fusão do
ritmo com o andamento. A sugestão de movimento, a partir da composição
de forças específicas dos elementos que constituem a imagem,
nos fornecem a sensação de andamentos rápidos ou
lentos, e estes dariam a dinâmica de uma imagem (Arnheim, 1986:405).
Seja qual for a interpretação, existem certas analogias
possíveis na música com a imagem que se aproximam de ambas
as instâncias. Em Fantasia, por exemplo, o uso da dinâmica
musical forte-fraco é utilizado em várias direções:
Na Toccata e Fuga de Bach um acorde grave e sombrio está
associado às trevas, e prontamente os metais entoam harmonias fortes
como que levando luz a um quarto escuro, e assim feixes de luz se sobrepõe
conforme a progressão harmônica (aqui, a associação
da luz com a harmonia de Bach é, também, proeminente); já
na Sagração da Primavera, há mudança
do plano cinematográfico. Em vários momentos, sons fortes
e fracos alternados representam planos, respectivamente, mais abertos
e mais fechados, embora em algumas ocasiões haja inversão
desta regra. Mas no que diz respeito ao chiaro-oscuro, a associação
de forte e fraco é nitidamente mais rara, sendo a comparação
de Arnheim mais comum de se verificar. Em outras palavras, sons fortes
são associados a movimentos bem marcados, como na Noite no Monte
Calvo, na Dança das Horas e no Aprendiz de Feiticeiro.
Na dinâmica destes exemplos os elementos freqüentemente se
cruzam, criando uma polifonia visual que mescla a linha melódica,
o andamento, a harmonia e o ritmo numa dinâmica própria,
num movimento das imagens do qual partilham igualmente o movimento dos
personagens, os planos de enquadramento, as cores e as luzes, sendo que
a questão da dinâmica musical forte-fraco varia imensamente
na analogia visual de acordo com elementos que são proeminentes
na coerência do discurso.
4.3.4.
Desenho (linha melódica)
Contudo,
se considerarmos elementos simples do desenho, uma outra forma de relacionar
a dinâmica musical com a visual é considerar a espessura
da linha, ou de um ponto, fazendo também referência à
linha melódica e aos contornos mensuráveis de intensidade
chiaro-oscuro conforme Harnoncourt. Obviamente, sendo a melodia
um elemento análogo à frase de um texto, os elementos anteriormente
citados, bem como mais os que virão, estão presentes, em
variados graus, para compor a estrutura da melodia. Há nela, segundo
a organização destes parâmetros, uma resultante de
caráter, que pode ser comparada a outras instâncias similares,
como por exemplo nas artes plásticas. O grande pintor russo Wassily
Kandinsky (1866-1944) tinha uma grande afinidade com a música e
frequentemente recorria a ela para estabelecer comparações
entre esta e a pintura, bem como outras artes. Tais correspondências
abrangiam, de certa forma, todos os elementos constituintes mencionados,
cores, timbres, contraste, ritmo, etc., mas aqui chamo a atenção
para sua análise no que diz respeito à melodia. Ele próprio
se refere, em O Espiritual na Arte (1996:133), a duas possibilidades
de construção na pintura: construções simples
são melódicas, construções complexas são
sinfônicas. Mas, em seu Ponto e Linha sobre Plano (1997),
Kandinsky usa a analogia com a música para descrever características
de traço, linha e ponto:
É
bem sabido o que é uma melodia musical. A maioria dos instrumentos
musicais tem um caráter linear. O timbre dos diferentes instrumentos
corresponde à abertura de uma linha: violino, flauta e piccolo
produzem uma linha muito fina; viola e clarinete já produzem
uma mais grossa; e pelo meio de outros instrumentos mais graves, alcança-se
linhas mais e mais largas, para além das notas mais graves
do contrabaixo e da tuba.
Além da largura, várias cores são produzidas
pelas múltiplas cores de outros instrumentos.
O órgão é tanto um típico instrumento-linha
quanto o piano é um instrumento-ponto.
Talvez seja sugerido que na música, a linha melódica
oferece o maior estoque de recursos expressivos. Aqui, a linha opera
exatamente na mesma forma temporal e espacial à vista na pintura.
Como o tempo e o espaço relacionam estas duas artes, já
é outra questão. A diferença entre as duas talvez
tenha dado origem a uma inquietação exagerada, tendo
como resultado que os conceitos de tempo-espaço e espaço-tempo
ficaram muito distanciados um do outro.
Os valores escalares do pianíssimo ao fortíssimo podem
ser expressos pelo aumento ou decréscimo da intensidade da
linha, ou pelo grau de luminosidade. A pressão da mão
aplicada ao arco corresponde perfeitamente à pressão
aplicada ao lápis. (Kandinsky,1997: 86-87) |
Kandinsky
aqui nos fornece uma variada gama de comparações, que juntas
nos ajudam a formar uma imagem com uma precisão maior de sentidos,
tornando o paradigma mais claro. Mas, apesar de falar sobre diversos itens
da teoria musical, nos salta o caráter eminentemente visual que
pode adquirir a música nestes termos.
Uma melodia musical pode ser expressa em termos gráficos, para
fins comparativos ou mesmo didáticos, e este tipo de representação
do desenho melódico foi levada às últimas conseqüências
na notação musical contemporânea, onde um complexo
gráfico indica ao intérprete a natureza daquele som. Como
utilização didática da expressão gráfica
de um som, temos exemplos bastante elucidativos no livro de R. Murray
Schafer, O Ouvido Pensante (1991). Baseado em aulas de música
ministradas nas escolas secundárias canadenses, Schafer faz diversas
experiências com o potencial criativo dos jovens alunos incitando-os
a abrir novos horizontes sobre a escuta do som e da música. Quase
todos os seus exemplos sonoros são descritos graficamente, tanto
os que os alunos escreveram para serem tocados quanto a anotação
de um resultado sonoro duma improvisação qualquer. Algumas
dessas notações têm legendas, ou seja, possuem código
próprio, já em nível simbólico, e dizem respeito
a maneiras específicas de produzir sons, ao passo que outras são
gráficos icônicos e indiciais.
O exemplo
da figura 14, diz respeito à notação gráfica
de um som que se assemelhava a um feixe de luz saído de uma cortina
de fumaça, ou neblina. Os alunos de Schafer fazem os dois caminhos:
tanto a partir de uma sonoridade, representá-la graficamente, como
a partir de um gráfico, traduzi-lo em termos sonoros.
Figura
14
|
Há representação gráfica também no
Fundamentos da Composição Musical (1993) de Schoenberg,
(figura 15) tratando especificamente de comparar diversas linhas melódicas.
Para facilitar o entendimento do percurso melódico, Schoenberg
transcreve a melodia para um gráfico, como no exemplo abaixo.
Figura
15
|
Ainda outra maneira de tratar esta relação no plano didático
é na análise da canção feita pelo semiólogo
Luiz Tatit, em Musicando a Semiótica (1997). Sua análise
é voltada basicamente para as confluências entre a intenção
verbal das palavras cantadas e o percurso melódico da canção,
e para isso também se utiliza de recursos gráficos, cf.
figura 16 (Tatit, 1997:123).
Figura
16
|
A música contemporânea, por sua vez, verificou que os recursos
gráficos convencionais de notação musical já
eram signos estabelecidos que tendiam à padronização
interpretativa, que, se na história da música serviu muito
bem aos compositores até o início do século XX, a
partir da Segunda Guerra tornou-se insuficiente para realizar experiências
musicais levando em conta diferentes graus de interpretação
aleatória. Com isso em mente, buscaram novos sinais gráficos
aparentemente aleatórios, mas que na verdade são capazes
de dar diretrizes específicas na interpretação musical,
sem contudo padronizar a execução. Assim, surgiram partituras
que misturavam sinais convencionais, sinais novos, indicações
verbais e até o puro desenho de traço. Algo como interpretar
musicalmente um quadro. As diferentes tendências e resultados que
a música contemporânea atingiu com estas experiências
não são parte de nosso foco, e sim o quanto a representação
gráfica é capaz de possibilitar uma livre mas uniforme correspondência
entre o som e a imagem:
Figura 17
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Esta representação visual da partitura do compositor húngaro
György Ligeti, 'Artikulation' (1958 - figura 17) é um bom
exemplo do potencial gráfico que a música sugere e vice-versa.
Figura
18
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O mesmo ocorre no exemplo da figura 18, do compositor alemão Karlheinz
Stockhausen, 'Kontakte', para piano (1959-1960), onde encontramos sinais
híbridos de escrita convencional e outros novos, criados para atuar
em conjunto na partitura.
Em ambos os casos, não há um código padronizado para
leitura da escrita; há indicações convencionadas
tanto pelo compositor como pela gramática musical vigente, mas
com uma abertura interpretativa substancialmente maior, o que certamente
vai ao encontro das intenções da música moderna em
libertar-se ao máximo das regras de composição esquemáticas
tradicionais. Entretanto, o compositor tem em mente este potencial interpretativo
aberto, e sendo esta sua intenção, ele anota apenas alguns
pontos fixos de referência para o intérprete. Assim, se compararmos
duas ou mais leituras de uma mesma partitura deste tipo, certamente apenas
os pontos em comum, os guias de referência legendados ou indicados,
serão lidos da mesma forma e nos darão o índice de
que se trata da mesma obra.
O oposto também é verificado, ou seja, a partir de uma determinada
obra musical ou sonoridade indicada, é possível pensar em
imagens gráficas ou pictóricas e assim verbalizar a sensação
que o som nos causa. Este procedimento é muito mais comum do que
se imagina na elaboração crítica, poética
ou ensaística da análise musical, e não está
- como seria intuitivo pensar - somente ligada à música
descritiva.
A linha melódica é freqüentemente associada ao traço
do desenho, e que pode ser estático ou contínuo, como no
caso do cinema. O exemplo mais óbvio desta relação
é o citado por Schoenberg, comparando diferentes linhas melódicas
com gráficos de seus percursos. Constitui-se na premissa de que
os sons mais altos, agudos, situam-se no patamar mais elevado de um plano
qualquer, e os sons baixos, graves, no patamar mais baixo. Da mesma maneira,
escalas ascendentes são semelhantes a movimentos para o alto, e
escalas descendentes, a movimentos para baixo. A razão própria
desta natural associação, já incorporada a nível
arquetípico, talvez esteja na própria constituição
física do som, onde a sustentação harmônica
é dada pelas notas graves.
A música barroca desenvolveu o chamado baixo-contínuo (nota
#8), acompanhamento melódico grave que tinha a função
de situar a harmonia enquanto a melodia era desenvolvida nos timbres mais
agudos. A linha melódica tendia a se manifestar nos registros agudos
para a clareza de sua compreensão, por ser de identificação
mais rápida pelo ouvido (comprimentos de ondas menores, de maior
freqüência, que situam com precisão a nota, enquanto
que os sons graves, de comprimento maior, precisam de mais tempo para
situar a mesma nota, e portanto, mais propícia para a sustentação
harmônica). Assemelham-se às antigas catedrais góticas,
que tinham uma enorme base e subiam em formas cônicas e piramidais
até o ápice, sendo que a música se porta da mesma
maneira, sendo as notas graves a sustentação dos ápices
melódicos. Johann Sebastian Bach faz uso desta técnica com
muita propriedade em sua música religiosa, as cantatas, paixões
e missas. Sempre uma linha de baixo acompanha em contraponto a melodia
aguda, elevando, como no caso do Magnificat BWV 243, os trompetes
agudos à glória de Deus em fortíssimo enquanto os
graves movimentam a harmonia para as localidades desejadas. Outro exemplo
contundente é o início da Sinfonia Dante de Franz
Liszt. Embora situada num universo bastante distinto daquele de Bach,
a sinfonia descritiva baseada na Divina Comédia de Dante
Alighieri abre com os trombones baixos e tuba entoando notas seqüenciais
primeiro ascendentes e depois descendentes, em fortíssimo,
como se descendo ao inferno (música tipicamente representativa),
com intervenções dos tímpanos graves. Liszt, neste
caso, utilizou os metais graves, de grande poder sonoro, para dar a sensação
sufocante do inferno, mas as notas graves não necessariamente remetem
a uma simbologia telúrica ou infernal.
Mas podemos observar, com outros exemplos, o quanto elementos formais
diferentes podem ser remetidos às mesmas sensações,
ou a imagens similares: considerando novamente a comparação
entre as catedrais e a música de Bach, temos, em termos formais,
elementos muito diversos atuando na Nona Sinfonia de Beethoven,
por exemplo. No Quarto movimento, utilizou as cordas graves (violoncelos
e contrabaixos) para anunciar o tema da Ode à Alegria, um
ícone musical de esperança e fraternidade. As idéias
musicais do recitativo da Nona nos graves nos dão uma imagem semelhante
de ascenção, de subida, elevação espiritual.
Primeiro, o tema aparece pianíssimo, depois os graves fazem
apenas o acompanhamento, sendo a dinâmica percorrida em contínuo
crescimento nas cordas agudas até a explosão do tema fortíssimo
nos metais médios e agudos (trompetes e trompas) acompanhados pela
orquestra inteira. A linha melódica percorre, portanto, um discurso
musical inteligível, ainda que de maneira subconsciente, auxiliada
por elementos timbrísticos, dinâmicos e harmônicos.
Muito diferente de Bach, cuja harmonia se move nos baixos (no classicismo
e romantismo os registros médios tomam esta função),
e também nos quesitos dinâmicos, uma vez que a base das catedrais
são pesadas e progressivamente mais leves. Beethoven inicia sua
subida em pianíssimo, mas a sensação ascendente
não é prejudicada pelo fortíssimo do clímax
do tema.
Arnheim descreve assim a comparação das sensações
advindas da observação de um elemento num espaço:
"Levantar significa sobrepujar a resistência - é sempre
uma vitória. Descer ou cair é render-se à atração
de baixo, e por isso, experimenta-se submissão passiva. Conclui-se
desta desigualdade de espaço que diferentes localizações
são dinamicamente desiguais." (Arnheim, 1986:21). Temos nesse
exemplo comparativo, uma constatação do paradigma representado
pela sensação de subida e descida, e que justamente se aplica
a diferentes instâncias, como os citados, em Bach, Liszt e Beethoven.
Apesar de utilizarem elementos formais muito diferentes, as sensações
obtidas são da mesma natureza, como que procedendo a identificação
do caráter platônico em cada obra.
4.3.5.
Ritmo
Diretamente
associado ao movimento, o ritmo está numa relação
íntima da música com o cinema, sendo uma seqüência
de eventos temporais justapostos que criam uma unidade métrica
qualquer, que pode ou não ser repetida.
Embora o ritmo tenha natural afinidade com o cinema, não somente
pela própria afinidade temporal que compartilham música
e cinema, ele também é elemento presente nas imagens estáticas.
Arnheim (1986), descreve sentidos de movimentos em formas geométricas
a partir de sensações naturais que o cérebro tem
em seu arquivo de memória quanto ao peso, volume e perspectiva
de um objeto qualquer (1986:12-28). O cérebro, através da
visão propriamente dita, reconhece tais particularidades representadas
e lhes dá valores que juntos hão de formar um jogo de forças
tendo uma resultante que descreve sensações estáticas
e dinâmicas num plano qualquer. Essas sensações nos
informam sobre as relações de tensão e relaxamento
dos elementos do quadro, que em música se traduz pelas relações
harmônicas, ambas ligadas diretamente à questão do
movimento. Mas uma conseqüência direta desta relação
é justamente a noção de ritmo, dado pelo conjunto
linha/peso.
Murray Schafer descreve desta maneira o ritmo:
Ritmo
é direção. Ritmo diz: 'Eu estou aqui e quero
ir para lá'. É como o traço numa pintura de Paul
Klee. Ele próprio diz: 'O pai do traço é o pensamento.
Como ampliar meus domínios? Acima deste rio? Deste lago? Desta
montanha?'. Originalmente, ritmo e rio estavam etimologicamente relacionados,
sugerindo mais o movimento de um trecho que sua divisão em
articulações (Schafer, 1991:87) |
ou ainda
"Ritmo é forma moldada no tempo como o desenho é espaço
determinado" (Ezra Pound apud Schafer 1991:87), em que vemos novamente
a questão do espaço-tempo ser diluído numa resultante
final (o ritmo não poderia deixar de fazer parte desta confluência
uma vez que ele é uma das instâncias mais importantes para
marcar a percepção do tempo de uma obra).
O ritmo, aqui mais a propósito do cinema, também é
responsável pela dimensão temporal de uma obra. Tanto no
cinema quanto na música a disposição rítmica
é um fator de relevância ímpar, que acrescenta ou
diminui a sensação de tempo do espectador/ouvinte. Eisenstein
trabalhou sistematicamente sobre a questão do ritmo, uma vez que
a montagem do cinema é sua divisão temporal, e constatou
o quanto os elementos rítmicos influenciam diretamente na maneira
como é percebida a estrutura narrativa. Disse ele a este propósito:
"No capítulo II discutimos a nova questão colocada
pelas combinações áudio-visuais - a de solucionar
um problema de composição totalmente novo. A solução
deste problema de composição reside em encontrar a chave
para a igualdade rítmica de uma faixa de música e uma faixa
de imagem." (Eisenstein, 1990b: 97)
Este é um aspecto fundamental na união entre a música
e a imagem, pois justaposição ou sobreposição
de ritmo e de movimento de imagem, em ponto ou contraponto, nos darão
sensações específicas segundo os objetivos pretendidos.
Por exemplo, considerando ritmos irregulares, Murray Schafer escreve:
"Um ritmo irregular espicha ou comprime o tempo real, dando-nos o
que podemos chamar de tempo virtual ou psicológico". (Schafer,
1991:87-88), conforme o que já havia sido constatado por Arlindo
Machado (1997) e Pierre Schaeffer (1993). Mas isso também é
verificado na regularidade rítmica aliada ao andamento (ou velocidade
de execução). Obras de ritmo curto e rápido parecem-nos
maiores do que realmente são, ao passo que ritmos lentos nos parecem
bem menores. São os tempos psicológicos que se alternam,
causando efeitos curiosos nos ouvintes, como por exemplo, sua inversão,
ao usar ritmos longos em andamento rápido ou ritmos rápidos
em andamento lento.
Eisenstein ainda nos dá uma idéia desta relação
segundo a percepção de caráter que resultará
de uma união consciente entre música e imagem: "não
podemos negar o fato de que a impressão mais surpreendente e imediata
será obtida, é claro, a partir de uma coincidência
do movimento da música com o movimento do contorno visual - com
a composição gráfica do quadro (...); 'enfatizador'
da própria idéia de movimento."(Eisenstein, 1990b:106)
E, ademais, Kandinsky também irá referir-se ao ritmo na
pintura de uma maneira bastante original, propondo que em cada forma construtiva
(visual), há uma sonoridade interior, uma linha melódica,
e enfatiza o potencial ´rítmico´ destas linhas melódicas
na arte do passado (Kandinsky, 1996:134).
A idéia de ritmo é muito abrangente e pode ser esmiuçada
de maneiras muito diversas, desde a organização do movimento,
com suas implicações matemáticas, até as sensações
advindas das 'Anamorfoses temporais' (Schaeffer, 1993), ligadas à
distorção do tempo que é percebido. De qualquer forma,
o ritmo aqui nos interessa pela correspondência direta que exerce
sobre os movimentos visuais, tal qual podemos constatar em Fantasia.
No capítulo 5, análise da seção Sinfonia
Pastoral, veremos como o ritmo mescla-se ao movimento da imagem promovendo
uma pontuação mútua de velocidade e intenção
narrativa.
4.3.6.
Forma
As formas
musicais, que sintetizam o uso destes vários parâmetros supracitados,
constituem estruturas por sobre as quais todas as funções
da música são revestidas. Por isso podemos falar de uma
'arquitetura musical' como referência análoga à forma,
com sua infinidade de estilos e diversidades próprias. Tal arquitetura
organiza sentidos de discurso musical da mesma maneira que a arquitetura
convencional solidifica e organiza estruturas de construção,
e permite seu desenvolvimento para o fim desejado. A escolha da forma,
portanto, está diretamente ligada à maneira como os elementos
que constituem uma estrutura qualquer se engendram; e esta seria basicamente
a diferença entre as obras chamadas 'absolutas' e as chamadas 'descritivas'.
Em outras palavras, a intenção do compositor em descrever
algo musicalmente ou utilizar um discurso musical por si mesmo será
determinante na escolha da forma. Por exemplo, quando Vivaldi se aventurou
a procurar representações da natureza na música,
em sua série de concertos intitulada Quatro Estações,
notamos uma nítida necessidade de expandir ou diluir a forma tradicional
do concerto grosso, em especial nos concertos Outono e Verão.
O mesmo se pode dizer de Beethoven em sua Pastoral, precisando
de 5 movimentos ao invés dos 4 tradicionais. Modernamente, até
Richard Strauss, mestre da música descritiva, não deixou
de lado alguns esquemas formais padronizados para expressar certas imagens.
Utilizou a forma do rondó em seu Till Eulenspiegel, o tema-e-variações
em seu Don Quixote, a forma-sonata em Don Juan, Zarathustra
e Sinfonia Alpina (ainda que diluídos), bem como o prelúdio
e fuga na Sinfonia Doméstica. Justamente algumas maneiras
de estruturar a arquitetura para determinadas funções é
que determinam a incidência ou não de imagens concretas predominantes
na obra. Se o compositor se vale da pureza da forma-sonata, ela em si
não tem a intenção de se remeter a nenhuma imagem
extra-musical, valendo uma interpretação termo-a-termo que
muito provavelmente se traduzirá em imagens abstratas (Como a Tocata
e Fuga no Fantasia de 1940 e a V Sinfonia de Beethoven
no Fantasia 2000), ao passo que intenções visuais
na música engendram estruturas que no conjunto têm a intenção
de gerar um discurso híbrido, sendo que por vezes o próprio
programa da obra (ou o conhecimento do discurso sobre o qual a obra foi
baseada), já constituem elementos descritivos extra-musicais que
nos fornecem diretrizes de interpretação fora da estrutura
própria da música. Isso ocorre em Fantasia de forma proeminente.
A música mais 'descritiva' utilizada é o Aprendiz de
Feiticeiro, e o discurso visual tem um encaixe absolutamente perfeito
com o discurso musical, ao passo que obras menos descritivas abrem espaço
para interpretações visuais paralelas ao sentido primeiro
do compositor (como a Sagração, o Quebra-Nozes,
a Pastoral, e, no Fantasia 2000, Os Pinheiros de Roma
de Respighi e o Concerto para Piano no.2 de Shostakovich - obra
sem intenção descritiva nenhuma e que também tem
um encaixe perfeito com o discurso visual proposto por Disney).
A forma, portanto, é índice da intenção do
compositor, e já situa o ouvinte para diferentes universos visuais
se houver pré disposição para tal.
4.3.7.
Harmonia (música)
Harmonia
aqui é tratada de duas maneiras distintas mas inter-relacionadas.
A primeira é a ciência harmonia, que combina freqüências
sonoras (notas) e que também atua nas cores do espectro pela mesma
razão. A segunda é a Harmonia no sentido pitagórico,
tão utilizada pelos teóricos e filósofos da arte,
para designar a combinação dos elementos que compõe
uma arte e determinam suas razões, conteúdos, equilíbrio
e perfeição formal. Ambos estes aspectos parecem co-existir
em todas as obras, uma vez que não basta apenas combinar isoladamente
os elementos intrínsecos do suporte e da linguagem utilizada; é
preciso que o mesmo ocorra em nível macroscópico, ou seja,
que haja algum equilíbrio no conjunto da obra. Nessa dimensão,
estamos no conceito pitagórico de harmonia.
Na primeira distinção do termo, a ciência harmonia
é associada diretamente à cor e à luz da imagem,
se bem que por vezes seja comparada ao timbre. Entretanto, como vimos
nos estudos de Goethe e Pedrosa, assim como mencionado por Newton, a harmonia
da sobreposição de freqüências sonoras entra
em concordância direta com a harmonia de combinação
cromática, e sua correspondência é normalmente associada
desta maneira.
Há uma clara analogia com a funcionalidade harmônica, em
que uma harmonia qualquer toma determinado contexto em função
de uma estrutura harmônica proposta. Um acorde de dó maior
é sempre dó maior, mas quanta diferença há
entre um dó maior da Sinfonia Júpiter, da Sinfonia
A Grande, ou da Sinfonia Fantástica, por exemplo.
São músicas de caráteres e climas muito diversos,
que se utilizam de funções harmônicas diferentes,
porém, o acorde fundamental é o mesmo. Destarte, dependendo
do grau e função da harmonia utilizada, há diferentes
caráteres que expressam a representação pretendida
pelo compositor.
4.3.8.
Harmonia (arte)
Nesta segunda
interpretação do termo, a Harmonia é abrangente e
soberana, pois diz respeito ao conjunto de um todo qualquer, bem como
a disposição e engendramento de suas partes em relação
à intenção de uma obra. Como tal, esta harmonia tem
a capacidade de fazer uma obra de qualquer tipo, gênero e suporte
ser coerente e equilibrada em diversos graus, de tal forma que respeita
algumas regras arquetípicas, tornando a intenção
original clara e passível de um vasto leque de interpretações
simbólicas.
Este é um conceito essencial para este estudo: há diversas
maneiras de entender como se engendram as combinações entre
a música e a imagem, sob diversos aspectos e pontos de vista, de
acordo com a necessidade de construção de cada suporte e/ou
objetivo estético. Como pudemos observar até aqui, através
dos vários exemplos citados, as combinações variam
em diversos graus, o que significa, em última análise, que
há diversos sistemas de representação capazes de
reger a correspondência som/imagem. Estes sistemas, adotados em
cada caso (como por exemplo situar a dinâmica segundo o movimento
rítmico e não segundo o forte/fraco, ou escolher escalas
ascendentes em instrumentos graves para simbolizar descidas, entre diversos
outros), possuem, conforme dito no início do capítulo, uma
abrangência muito grande, dado o grande número de possibilidades
combinatórias entre ambos, e que talvez gere um número infinito
de resultados diferentes para cada caso.
Por exemplo, é possível descrever musicalmente uma tempestade
de diversas maneiras, desde elementos bastante subjetivos até elementos
puramente imitativos, como trovões e relâmpagos nos bumbos,
pratos e tam-tans. Richard Strauss utilizou-se exatamente destes elementos,
em conjunto com outros (e até mesmo uma máquina de vento,
representação direta) para descrever sua tempestade na Sinfonia
Alpina. Já Beethoven, só precisou de uma orquestração
clássica, com reforço de trombones e piccolo, na Pastoral.
E Vivaldi, só usou uma orquestra de cordas. Entretanto, em todas
está presente o componente 'tempestade', enunciado por escalas
ascendentes e descendentes curtas e rápidas, mas por vezes alternando-se
com longas linhas melódicas, que enunciam diferentes situações
em cada tempestade. Há outras situações em que a
diferença de timbres será mais importante que o fato da
escala ser curta, longa, rápida ou lenta.
Em suma, é bastante claro que há sistemas de correspondência,
mas é impossível enumerá-los todos. O capítulo
seguinte, em que analiso a seção da Sinfonia Pastoral
em Fantasia, deixa em evidência o uso extremamente abrangente
e inusitado de várias destas funções paradigmáticas.
E então, se quiséssemos tecer uma análise enunciando
cada elemento correspondente do som e da imagem de uma obra, estaríamos
apenas estabelecendo o sistema de representação adotado
por um autor em uma obra, ou até num conjunto de obras, sempre
dentro de um universo precisamente delineado. Mas, invariavelmente, teríamos
que apontar todas as exceções, semelhanças e diferenças
caso utilizássemos o mesmo sistema para estudar outra obra, ou
outro autor. Ora, é certo que existem sistemas, mas, existiria
um sistema que pudesse ser tomado como parâmetro para todos os casos?
Se existe, podemos concluir que não é um fator objetivo,
nem óbvio, pois senão todo este trabalho não teria
sentido. O que existe, de fato, são diversos estudos específicos
sobre sistemas de correspondência determinados - Trilha sonora no
cinema, música descritiva, ópera, música visual,
estudos sinestésicos, etc.
Aqui, procuro um sistema cuja razão seja unificadora, cuja concordância
tenha sido sistematicamente abordada e referenciada no decorrer da história
por diversos autores - e me deparo exatamente com a Harmonia, do sentido
pitagórico.
Para Pitágoras, toda a matéria vibra em freqüências
específicas, que justamente caracteriza o tipo e estado de matéria
(Hoje sabemos que isso é verdade, sendo a matéria constituída
por átomos e tais átomos vibram em certas freqüências),
desde pequenos minérios e gases até planetas e sóis.
Assim como a união de determinados sons (que também são
de natureza vibratória) caracteriza a consonância ou dissonância
de acordo com a interpolação das freqüências
utilizadas, assim também com a matéria. Notemos que, independente
da concepção estética de cada lugar ou época,
em determinar o que é consonância ou dissonância, o
fenômeno em si não deixa de existir, ou seja, a harmonia
(consonante ou não) é gerada pela choque de freqüências.
Ampliando este espectro, Pitágoras afirmava que o Universo todo
produzia um grande acorde, decorrente das vibrações de cada
planeta, e a isto ele chamou "Música das Esferas", ou
"Harmonia das Esferas". Este conceito foi desdobrado em múltiplas
interpretações no decorrer da história, mas seu princípio
é o mesmo: Assim como as notas escolhidas compõe o acorde,
a harmonia resultante, os elementos de um todo também determinam
a resultante deste todo, a harmonia específica deste todo.
Entra aí a concepção de 'caráter', já
bastante mencionado, que Platão utiliza para descrever as harmonias
musicais mais propícias à educação dos jovens
de sua República. Em outras palavras, ele escolhe um tipo de harmonia
compatível com o caráter que quer imprimir ao ouvinte.
Aristóteles evoca o mesmo sentido ao descrever o conceito de 'todo'
e de 'parte' na sua Poética: "Pois não faz parte de
um todo o que, quer seja quer não seja, não altera esse
todo" (Aristóteles, 1973:450). Temos claramente a idéia
do uno todo e coeso de uma obra de arte, pois todos os elementos que o
constituem devem estar alinhados com seu objetivo, suas intenções
estéticas (no caso da tragédia, a imitação
do caráter nobre, 'elevado'), a harmonia entre as partes.
A renascença foi prolífica no estudo e aprofundamento destes
ideais, sendo compartilhado igualmente por cientistas (Copérnico,
Galileu e Kepler, este que escreveu uma obra intitulada A Harmonia
do Mundo) e artistas (Shakespeare, Leonardo). O próprio Goethe,
já citado, se refere à harmonia neste sentido, assim como
Schiller, seu contemporâneo, adota a mesma postura platônica
em determinar que homens melhores farão uma sociedade melhor, recorrendo
à arte para reunir o instrumental necessário. Schiller faz
uso do termo harmonia exatamente neste sentido, evocando a perfeita união
das partes para determinados propósitos: "Estas (...) limitações
são superadas, como será demonstrado agora, pela beleza,
que refaz no homem tenso a harmonia, e a energia no homem distendido,
reconduzindo por essa maneira, segundo sua natureza, o estado limitado
ao absoluto, tornando o homem um todo perfeito em si mesmo". (Schiller,
1991:98). E, modernamente, temos diversas citações mesma
natureza, como a de Kandinsky, "Cada obra de arte se origina da mesma
maneira como se originou o Cosmos: através de catástrofes
que a partir do caótico fragor dos instrumentos formam enfim uma
sinfonia chamada harmonia das esferas." (Kandinsky, 1996), ou mesmo
de Eisenstein, que busca, na linguagem específica do cinema, a
unidade fundamental da arte. Para isso, utiliza a montagem como instrumento,
teorizando sobre ela através de diversos termos comparativos à
linguagem musical, como 'montagem polifônica': " devemos ter
em mente que esta estrutura polifônica feita de muitas linhas independentes
adquire sua forma final não apenas a partir do plano para o qual
foi determinada previamente. Essa forma final depende em igual medida
do caráter da seqüência do filme (ou filme completo)
como um complexo" (Eisenstein, 1990b:53), e mais adiante, "Muitas
horas foram gastas para fundir estes elementos num todo orgânico"
(idem, 54).
É notória a mesma busca, o mesmo ideal de todo coeso que
rege a natureza de qualquer arte, a precisão em administrar todos
os elementos permitidos pelo suporte da linguagem escolhida para manifestar
a idéia da maneira mais clara possível. Eisenstein faz uso
de determinados elementos para sistematizar o seu método de engendrar
as partes do todo, que, independentes do processo, visam ao mesmo objetivo,
a harmonia das partes em função da harmonia do todo. Rudolf
Arnheim também deixa muito claro a necessidade última de
todo artista buscar a unidade e a harmonia entre os elementos que constituem
a obra de arte, e para isso menciona, em seu capítulo sobre 'equilíbrio',
que "Numa composição equilibrada, todos os fatores
como configuração, direção e localização
determinam-se mutuamente, de tal modo que nenhuma alteração
parece possível, e o todo assume o caráter de 'necessidade'
de todas as partes. Uma composição desequilibrada parece
acidental, transitória, e, portanto, inválida." (Arnheim,
1986:13)
Essa idéia de busca pelo belo e perfeito harmônico (que deve
ser bem entendido, não é sinônimo de 'simétrico',
ou 'consonante') permeia todos os teóricos das artes desde Platão,
e cuja manifestação artística é seu instrumento
mais óbvio. Tão óbvio que, em geral, considera-se
este ideal intrínseco à própria idéia de arte,
de tal maneira que não é considerado como elemento fundamental
segundo os quais os elementos irão unir-se para formar o todo orgânico
que é a obra de arte. Em outras palavras, se o artista busca sempre
um equilíbrio dinâmico para sua obra, os elementos devem
estar dispostos segundo a harmonia deste equilíbrio, para que ela
efetivamente funcione, e essa disposição estética
não é mensurável, não é possível
quantificá-la racionalmente, pois o número de variáveis
é infinito. Se quisermos nos referir a um exemplo simples, existe
a ciência da harmonia musical, que possui suas regras e sua gramática.
Se compositores como Beethoven ou Schubert tivessem seguido rigidamente
as cartilhas de harmonia, não teriam escrito nem metade de suas
obras tal como hoje conhecemos. Mas não há como apontar
'erros' de harmonia em suas obras, uma vez que, dentro do equilíbrio
proposto, tais harmonias equilibram-se entre si.
Observemos, portanto, que é possível determinar algumas
instâncias entre a correspondência som/imagem de maneira genérica,
mas que, invariavelmente, há por trás um 'caráter',
e é ele, efetivamente, que vai determinar o sentido exato da qualidade
de associação.
Tomemos novamente o exemplo da tempestade, nas Quatro Estações
de Vivaldi. Podemos determinar, a título comparativo, as diferenças
formais entre a tempestade do Verão e a chuva do Inverno,
e, através dos elementos formais precisar porque uma se assemelha
à tempestade e a outra à chuva (andamento, melodia, uso
de escalas em legatto, staccato ou em pizzicato,
etc..). Entretanto, uma chuva ou uma tempestade podem assumir caráteres
muito diferentes, um aspecto triste, melancólico, contemplativo,
exaltante, etc.. Esse caráter, fundamental para a escolha de uma
imagem que acompanhe a música, não está na forma,
está no conteúdo, sendo resultante do engendramento de seus
elementos em uma determinada harmonia. Este é o elemento subjetivo,
sensível, que não pode ser calculado ou quantificado, a
não ser segundo a necessidade da harmonia de um conjunto do qual
faça parte.
Veremos, portanto, na análise da Sinfonia Pastoral, estes
elementos subjetivos presentes e atuantes, coordenando um todo orgânico
que é a obra cinematográfica. Aqui, poderemos constatar
o quanto os elementos que associam paradigmas semelhantes entre som e
imagem são importantes, pois são utilizados dentro de um
concordância de caráter extrema, exaltando suas qualidades
e acentuando a concepção estética da música.
copyright©2002
Filipe Salles
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