Dissertação de Mestrado - Filipe Salles - 24/06/2002
5. ANÁLISE DA RELAÇÃO MÚSICA
/ IMAGEM EM FANTASIA:
A SINFONIA PASTORAL DE BEETHOVEN
5.1. Introdução
A Sexta Sinfonia
de Beethoven, em Fá maior, recebeu o subtítulo de Pastoral
do próprio compositor, que assim a descreveu no programa de sua
estréia: Pastoral Symphonie: mehr Ausdruck der Empfindung als
Malerei, "antes expressão do sentimento que pintura".
Beethoven tinha então concebido uma sinfonia que sabia ser portadora
de um potencial descritivo maior que as demais, razão pela qual
enfatizou ser mais uma expressão de sentimentos que uma tentativa
de pintar um quadro com música (que é justamente a referência
à música que se situa entre a programática e a absoluta
em Fantasia, 'Música que pinta um quadro' - em que a Pastoral
ironicamente se encaixa). Estreada em 1808, juntamente com a Quinta, o
compositor ainda hesitou sobre uma possível descrição
literária da sinfonia durante quase 20 anos, mas na publicação
de 1826 constam as indicações de possíveis 'programas',
que dão subtítulos aos 5 movimentos da obra. Essa hesitação
não foi vã, pois Beethoven não queria prender o ouvinte
a um aspecto de caráter específico, pois o sentimento -
sabia o compositor - estava lá impresso, implícito, tal
que ele mesmo disse: "Deixemos ao ouvinte o trabalho de imaginar
a situação... Toda a pintura, se levada muito longe na música
instrumental, perde" .
O aspecto mais importante desta ambigüidade - seu caráter
puramente musical e seu potencial descritivo - e que aqui muito nos interessa,
é como Disney se aproveitou desse manancial híbrido de possibilidades
visuais e sonoras. Bem claro está, o próprio Beethoven queria
deixar o programa implícito para não sugestionar por demasiado
a imaginação do ouvinte, limitando as possibilidades expressivas
da obra. Ao que parece, Disney seguiu ao pé da letra tais desejos,
pois imprimiu à Pastoral um programa dos mais inusitados:
ao invés da vida campestre da Europa central do séc. XIX,
o cenário foi o mitológico monte Olimpo, morada dos deuses,
e os personagens, todos seres híbridos da mitologia grega, unicórnios,
faunos, pégasos, centauros, cupidos e até Bacco. Se nos
guiarmos pela liberdade imaginativa que era desejo do próprio Beethoven
sobre esta obra, não haveremos de encontrar nenhuma discordância
ou abuso temático. Mas como proceder com imagens tão díspares
das originais e manter a coerência de seu caráter? Esta é
a principal virtude de Fantasia, e em especial nesta seção,
pois consegue ampliar de maneira extraordinária a gama de possibilidades
de interpretação visual sem deixar de transparecer o caráter
da obra a todo instante. Veremos, analiticamente, como isso funciona.
Leopold Stokowski promoveu nesta e na Sagração da Primavera
os maiores cortes e alterações de todas as obras de Fantasia.
Sua duração ficou reduzida à metade, não sendo
feito nenhum dos ritornellos indicados. Até mesmo alguns compassos
de repetição foram suprimidos, além de seções
inteiras. Isso não se deu apenas por razões práticas
e/ou econômicas (do contrário teríamos um filme de
quase 3 horas de duração) mas também por razões
estéticas. Uma obra musical tem estrutura que garante sua coerência
neste suporte, e uma obra cinematográfica a possui igualmente na
razão compatível com seu suporte. A transcrição
de uma para outra de maneira literal implicaria numa obra muitíssimo
mais exaustiva, com uma enormidade de outros elementos que muito provavelmente
exigiria argumento muito mais complexo, incorrendo numa fatal prolixidade
incompatível com o gênero cinematográfico. É
o mesmo que adaptar uma obra literária para o cinema: há
muitas coisas que num livro precisam ser ditas e que podem ser resolvidas
na imagem de maneira simples, há outras coisas que são extremamente
complexas de se dizer com imagens e podem ser resumidas a duas ou três
palavras num livro. Eisenstein (1990:16) esmiuça com maestria essa
diferença de suportes em seu A Forma do Filme, e aqui em
Fantasia temos um problema de mesma ordem: muito do que é
dito em música, no que diz respeito à forma, em imagem se
torna pura redundância.
Do ponto de vista especulativo, seria possível mas não viável,
dentro deste projeto, realizar um desenho com a obra na íntegra.
Destarte, Disney consegue, ao ter em mãos material mais sucinto
da obra, trabalhar um argumento muito mais direto, dinâmico, objetivo
e sem deixar de apresentar as belezas da música, coisa que para
um desenho animado são fundamentais.
Os cortes foram assim realizados:
I- Allegro
ma non troppo:
Segue do compasso 1 até 150, depois há um profundo corte,
suprimindo todos os compassos, até o 422, e segue daí até
o final.
II- Andante
molto mosso
Segue compassos 1 até 8, depois corta para compasso 13
Segue compassos 13 e 14, corta e vai até o 17.
Segue 17 a 20, depois corta para compasso 92
Segue 92 a 101, corta para 104
Segue do 104 até o fim, omitindo os compassos 108 e 123
III- Allegro
Quase todo na íntegra, apenas sem os ritornellos e suprimidos os
compassos 158-160
IV- Allegro
A seção da 'Tempestade' é a única que se manteve
intacta, muito provavelmente por seu potencial descritivo maior, o que
permitiu o aproveitamento integral da música no desenho
V- Allegretto
Já o allegretto final sofreu drásticos cortes. Ele segue
normalmente até o compasso 22, o 23 tem um corte no meio do compasso,
pulando para o compasso 140.
Segue até o 149 e corta para 154.
Segue até 157 e corta para o segundo tempo do compasso 160.
Segue até o compasso 176 e depois corta para o 206 (Coda)
Segue até o compasso 244, e corta para a anacruze do compasso 250
O compasso 259 é suprimido, e então temos o final.
A duração
final da sinfonia em Fantasia passou a ser de 22 minutos.
Há
alguns aspectos muito relevantes para ser considerados neste episódio.
O primeiro é que estavam tratando de um assunto mítico,
sem referências reais, podendo estabelecer qualquer parâmetro
de cores e formas, desde que verossímeis. Disney mesmo orientou
os animadores a trabalharem com misturas inusitadas e a experimentarem
novos padrões de cor, mesmo para elementos já conhecidos
da natureza. A liberdade de expressão que os desenhistas experimentaram
neste episódio é digna de nota em se tratando de Disney.
Muito do que se vê na tela foi um trabalho conjunto dos diretores
de animação de cada seqüência e de Stokowski,
pois as alterações na partitura precisavam seguir as intenções
do argumento escolhido. Em animação, os desenhos têm
que ser feitos depois da música pronta, pois os animadores seguem
um mapa de animação em que consta o início e o fim
de cada movimento dos personagens, pontuados pela fala e pela música.
No caso de Fantasia, há apenas música, e esta precisava
necessariamente estar já gravada para o trabalho de animação.
Assim, os cortes foram feitos numa etapa primeira, enquanto eram encaixados
no argumento proposto, para então seguir com o trabalho de desenhar
no acetato.
A Sinfonia Pastoral é uma das seções mais
intrigantes de Fantasia: além de especular sobre um potencial
descritivo 'indicado' apenas por Beethoven, ainda reveste a música
de narrativa, não apenas coerente, mas também extremamente
harmônica com o caráter da música, não obstante
os universos absolutamente distintos entre as reais intenções
de Beethoven e as imagens do filme. Como se dá essa alquimia?
copyright©2002
Filipe Salles
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