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O dia em que Freud foi ao cinema

Por Máximo Barro

Como teria recebido o cinema seus primeiros assistentes?

Alguns historiadores e os jornais exprimem-se em adjetivos que vão do assombro ao fascínio.

Méliès é dos mais entusiastas. Quer comprar os direitos da invenção para usá-la imediatamente.

Abel Gance encanta-se com as folhas de uma árvore balançando ao vento, esquecendo-se mesmo de ver bem na frente o vovô Lumiére e esposa alimentando o netinho.

Giovanni Papini escreve um breviário de estética cinematográfica, entusiasmado com as primeiras sessões.

Na área teatral há os que aderem pensando na auto-multiplicação que terão, gozando de poder de ubiquidade, tornando-os presentes em Paris, Londres, Milão, Nova Iorque, Moscou ou Pequim ao mesmo tempo.

Mas há também Griffith, o péssimo autor e ator teatral, que só teria restrições e que, mais tarde, movido por necessidades econômicas, trabalhará ocultado por pseudônimo, antes de estratificar a linguagem da mais específica arte que o século XX teve até o presente.

A propagação do cinema foi fulminante. Em apenas cinco anos ele será conhecido em todo os quadrantes do globo, causando espanto, por exemplo, a Béla Balázs, que, sabedor que sua criada ainda não o conhece em 1908, envia-a imediatamente para saber suas reações.

Ainda mais espantoso será o fato de Freud só dele ter tomado conhecimento em 1909.

Pode parecer inaudito que um homem atento a todas as transformações sociais que seu tempo sofria não se tenha interessado pelo instrumento, ainda não artístico, mas que pelo menos carreava para as salas austríacas milhares de expectadores. Este novo fenômeno, parece, nunca o comoveu.

O descaso inicial iria, com o passar dos anos, levá-lo ao desprezo olímpico.

Por volta de 1920, Samuel Goldwyn pretende contratá-lo como supervisor de uma série histórica que começaria com Marco Antônio e Cleópatra.

Qual seria a função de Freud neste meio? Os dados históricos recebidos nada aclaram, mesmo porque sua resposta foi negativa.

Pouco após 1926, a U.F.A. imagina realizar um filme praticamente didático sobre a psicanálise.

Outra vez ele refuga violentamente.

George Pabst, o diretor encarregado do projeto, insiste. O negócio não gora de imediato porque dois colaboradores de Freud, Hans Sachs e Karl Abraham, insistem na honestidade de propósito dos produtores, querendo realizar quase um semidocumentário baseado em relatos que o grupo pudesse ter tido com clientes e que, com sua orientação, se tornaria decisiva a base científica.

Freud acede aos argumentos, dando liberdade aos dois, mas mantendo-se fora do projeto.

Credite-se, portanto, ao empenho desses dois homens o aparecimento de “Mistérios de uma Alma” nas telas, infelizmente seguido de um duplo fracasso: o artístico e de público.

Para piorar o precário relacionamento Freud-cinema, não são poucos os que escreviam afirmando que Freud se escondera atrás dos dois, quando previu o fracasso. Pode-se imaginar quais as marcas que tais afirmações deixavam num espírito suscetível como o dele, que sempre deixou claro que “o cinema não dispunha de poderes para plastificar abstrações”.

Porém, sua primeira aproximação como espectador deu-se de maneira quase romanesca.

A Universidade de Clark em Worcester (Massachussets), oferecia-lhe a tentadora quantia de 3 mil marcos para efetuar uma série de palestras. Freud recusou, movido pelos seus costumeiros preconceitos: não gostava da América, apesar de não a conhecer.

Pouco depois, sabedor de que também Jung havia sido convidado, ele percebe a importância do evento e aceita, dizendo que a visita lhe permitiria conhecer a coleção cipriota do Museu Metropolitano, que no momento era alvo dos seus estudos. Os detratores afirmam que seu intuito era puramente turístico: as cataratas do Niágara.

Ferenczi estava preocupado com os trajes, principalmente o chapéu. Freud, desprezivelmente, dizia que chegando na América compraria uma cartola e na volta a atiraria no oceano. Freud explica?

O descaso pelas palestras pode ser avaliado pelas sucessivas evasivas em organizá-la. Não quis fazê-las em Viena dizendo que a bordo, no trajeto, teria mais paz.

Quando embarcado, começou com os colegas uma análise de sonhos deles que muitos colocam na ordem das primeiras sessões de análise do grupo.

A viagem foi-lhe também muito gratificante espiritualmente, porque deparou-se com um camareiro lendo a “Psicopatologia da vida cotidiana”, que para ele constituiu índice certo de seu futuro reconhecimento universal.

Finalmente, a 27 de agosto, chega a Nova Iorque completamente desconhecido, a ponto de um repórter grafá-lo com “Freund”.

O dia seguinte, 28, eles gastaram em sortidas ao redor do Central Park, bairro chinês e setor judaico.

A 30, no Museu Metropolitano, o encontro com a famosa mostra do Chipre, motivo de sua especulação psíquica no momento.

Ernest Jones, seu colaborador mais sincero, biógrafo oficial e quebra-galho perene, encontra-se a 30 com o trio. Segundo seu depoimento é nesta tarde que eles vão a um cinema.

Assistem a uma das habituais comédias pastelônicas de correrias, pontapés, quedas e tortas na cara etc. Seria Mack Sennett ou algum francês? Ele não especifica, mas acrescenta que Freud e Ferenczi assistiam pela primeira vez a um filme. Pormenoriza ainda que Ferenczi, com seu habitual ar infantil, ficou excitado. Freud pouco ligou, atitude que, como já vimos, o acompanhará para sempre.

Outra intransigência perene foi para com os surrealistas, que desde 1924 os colocaram ao lado de Lautréamont como um dos maiores reformadores da humanidade em qualquer época.

Ele sempre se manteve arredio, para não dizer hostil.

A 19 de julho de 1938, Stefan Zweig o visita na companhia de Salvador Dalí, que imediatamente esboça um quadro onde Freud aparece com um caracol em lugar da cabeça. O criador da psicanálise não aceita a visão do criador da “pintura paranoica”.

Pouco depois, escrevendo a Zweig, ele esclarece: “estive inclinado a tomar os surrealistas, que aparentemente me adotaram com seu santo padroeiro, como acabados imbecis — digamos na razão de 95%, como acontece com o álcool.

Esse jovem espanhol, com seus ingênuos olhos fanáticos e sua inegável maestria técnica, alterou minha opinião. Será realmente interessante investigar analiticamente como chegou ele a criar aquele quadro”.

Mas já era tarde. A cova o esperava.

Psicanálise na tela | Patrick Lacoste – Jorge Zahar Editora

Biografia

Máximo Barro foi pesquisador e professor de montagem e História do cinema na FAAP.

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Os textos publicados em Mnemocine são propriedade de seus autores e podem ser cedidos para fins didático-pedagógicos mediante consulta prévia.

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