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Um diálogo possível entre cinema e educação

Por Ana Beatriz Iumatti e Laura Battaglia

Este texto aborda algumas questões que a educação contemporânea nos impõe, levando em consideração a importância que a relação entre os indivíduos adquire no processo de formação de cada um. O artigo foi elaborado a partir de pensamentos sobrevindos aos filmes Ser e Ter (Être et Avoir, 2002), documentário francês dirigido por Nicolas Philibert, e Elefante (Elephant, 2003), filme norte-americano dirigido por Gus van Sant. Publicado originalmente em maio de 2004.

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O acaso, fortuito ou não, trouxe simultaneamente ao Brasil dois filmes instigantes para quem trabalha, ou mesmo se interessa, por assuntos de educação. Trata-se, primeiro, do documentário francês Ser e Ter, dirigido por Nicolas Philibert, que durante um ano escolar registrou o cotidiano de uma sala de aula do interior da França, apreendendo as relações entre o professor e seus alunos e destes entre si. É uma sala de ensino primário, mas que comporta três diferentes estágios ao mesmo tempo. O segundo filme, Elefante, retrata ficcionalmente algumas situações cotidianas em um dia escolar num colégio no interior dos Estados Unidos em que dois adolescentes provocam um verdadeiro horror, matando 13 alunos e um professor. Trata-se do “massacre” de Columbine, ocorrido em 1999, que anteriormente já servira de inspiração para um filme de Michael Moore, Tiros em Columbine (Bowling for Columbine, 2002), que retratou o fascínio norte- americano por armas de fogo e a facilidade com a qual se tem acesso a elas no país.

O que nos interessa sobre estes dois filmes? Interessa-nos resgatar algumas questões sobre o processo de educação, destacando como ponto relevante o fato de que ela se dá dentro de um contexto mais amplo que a aquisição de conteúdos, pois comporta necessariamente as relações entre indivíduos.

A escola e seu papel social

A instituição escolar tem como papel social o ensino, isto é, a transmissão de conhecimentos, acumulados historicamente e recentes, que fornecem qualificação para o trabalho. Mas também faz parte de suas funções contribuir para a educação, isto é, preparar para a cidadania e participar do desenvolvimento de cada indivíduo.

Embora isto pareça óbvio, na prática muitas vezes vemos uma tentativa infrutífera de que o ensino se dê à revelia das relações, com exigências de conteúdos e comportamentos que, sem levar em consideração os agentes envolvidos no aprendizado, acabam por excluir o aluno, ou mesmo o professor, deste processo. Se por um lado a educação não é tarefa exclusiva da escola (mas de toda sociedade), ela é imprescindível para que a transmissão de conteúdos seja possível e efetiva.

Tanto professores quanto alunos, pais de alunos e a sociedade esperam algo da escola. O aluno espera saber, aprender; o professor espera poder transmitir um saber; os pais esperam que a escola contribua com a formação de seus filhos; a sociedade espera que suas gerações futuras possam estar aptas para perpetuar ou melhorar as condições de vida. E é no entrelaçamento destas quatro posições que é possível a educação.

O funcionamento da escola

Como qualquer instituição, a escola desenvolve suas atividades ancorada na dialética entre as relações e necessidades individuais e coletivas. Quaisquer que sejam os métodos de ensino, as escolas só funcionam amparadas por leis que lhe são próprias e que norteiam as ações de todos os seus atores (alunos, professores, funcionários e pais). Compreende-se aí o próprio método de ensino, a forma de avaliação, os comportamentos e relações entre os indivíduos, a forma de aceder ao conhecimento, as atividades desenvolvidas, o horário de funcionamento da escola, entre outros. As regras retratam, enfim, como uma coletividade funciona e como quer que suas relações sejam intermediadas e seus impasses resolvidos. São elas também que legislam sobre a desigualdade de funções, obrigações e direitos de cada grupo, em que lugares e papéis são distintos para cada um.

Embora as leis contemplem o que rege a dinâmica coletiva, é fundamental que cada membro da escola possa ter um espaço para expressão de sua individualidade, tendo tido acesso prévio às regras que a comandam. Do lado do professor, a forma como ele ministra cada aula e lida com cada aluno deve lhe ser própria. Do lado do aluno, esta mesma individualidade está presente no processo de aprendizado: o interesse maior por uma ou outra disciplina, a facilidade ou dificuldade para lidar com os diferentes conteúdos e o ritmo de aprendizado são exemplos de que a subjetividade não é mera coadjuvante no processo de aquisição de conhecimento.

Ensinar e aprender: lugares distintos

Os lugares de direitos e deveres de alunos e professores não são os mesmos e, mais do que isto, não podem ser os mesmos.

Logo nas primeiras cenas do filme Ser e Ter, a posição do professor se faz marcar por sua presença na porta da escola, recebendo os alunos e cumprimentando-os e sendo cumprimentando por cada um. As crianças tratam-no invariavelmente por “senhor”, como uma espécie de respeito, mas que poderíamos também entender como uma simples obrigação.

Por outro lado, nas primeiras cenas de Elefante, vemos um adolescente que chega à escola atrasado (porque antes precisara cuidar de seu pai, completamente bêbado). A consequência é que um inspetor, na obrigação de sua função, chama a atenção do aluno por causa deste atraso, mas não se ocupa com sua causa. Segue-se uma cena silenciosa em que aluno e inspetor nada dizem. Obrigações estão presentes nas duas situações e refletem a maneira como cada um daqueles grupos sociais se organiza. Em qualquer instituição as regras existem e devem ser cumpridas, em nome da convivência entre os indivíduos. Isto se dá ainda que grupos alheios a uma dada sociedade não se identifiquem com aquela forma de agir e pensar.

Os lugares dos adultos e das crianças no processo de aprendizado não são os mesmos. O professor tem, de saída, duas peculiaridades que o distinguem das crianças e/ou adolescentes a quem vai ensinar. Primeiro pressupõe-se que ele seja um adulto, alguém que já passou pelos processos elementares de vida, que deveriam lhe garantir certa autonomia para escolher e agir, arcando com as consequências aí implicadas. Segundo, como professor, teve uma formação que lhe garantiu o conhecimento (de conteúdos e formas) para ensinar.

O professor escolheu sua profissão e preparou-se para atuar nesta função.

O professor no filme Ser e Ter dá seu depoimento sobre a escolha profissional: ele frisa que ser mestre foi fruto de um envolvimento pessoal, profundamente enraizado em sua vida. Já na infância manifestava vontade de ser professor, ensinando os primos e amigos nas brincadeiras de escolinha. Como filho de imigrante espanhol, agricultor, ser professor representava, para ele e para a família, uma ascensão social. A dedicação à sua “vocação” não se fez de um momento a outro, mas foi construída desde a infância, visando sustentar um trabalho bem sucedido. Antes de ser uma escolha profissional, foi uma escolha de sujeito, marcado por uma história.

Em contraponto, a criança — e mesmo o adolescente — estão em processo de formação. Ainda que eles tenham, desde a mais tenra infância, vontades e poder de escolha, não têm poder de decisão; são limitados pela idade, pela dependência a outros e pelo desenvolvimento ainda em curso. Uma criança pode, por exemplo, escolher com qual jogo quer brincar e pode fantasiar situações adultas através da brincadeira, simulando ser mãe de um bebê ou dirigir um caminhão. Mas ela não pode ainda ter dimensão do ato e da consequência de ter um filho, ou de rumar estrada afora na boleia de um caminhão. A pouca dimensão consequente do meio social mais amplo a que pertence (além daquele familiar e imediato) — algo que só o tempo de vida lhe aprimorará —, além da imaturidade neuro-fisiológica, são os fatores limitantes para que possa decidir por sua vida.

É por esta imaturidade que os pequenos estão submetidos ao mundo dos adultos, ao qual almejam atingir. Uma criança que, por exemplo, por algum motivo tenha dificuldades de relacionamento ou desempenho numa determinada escola, pode (e deve) manifestar suas preferências e eventualmente ser trocada de instituição, mas ela não terá o poder de decidir se vai ou não estudar: nesta ou naquela escola, ela terá que se submeter a determinações externas, sociais.

As crianças desconhecem muitos dos conteúdos do mundo mais amplo e não têm poder legal para algumas decisões. Mas esta imaturidade não pode ser confundida pelo adulto como uma incapacidade. Pelo contrário, o que a criança tem de mais precioso — e que muitas vezes é negligenciado pelos adultos — é a curiosidade por saber mais sobre este mundo que desconhece, é a condição de ser um sujeito desejante e por isto ser capaz de atuar e construir conhecimento a respeito do mundo. Estas condições são aquelas que lhe permitem ter vontade de aprender e se posicionar ativamente diante do que aprende.

Temos, então, de um lado os que têm os conteúdos e a vontade de ensinar, e de outro os que não sabem e querem aprender (isto soa a um ensino ortodoxo e tradicional do século XIX — e poderia ser, se não acrescentássemos aí uma questão fundamental, que é a subjetividade daqueles que estão envolvidos). O professor, para ensinar efetivamente, precisa reconhecer no aluno este desejo de aprender e precisa antecipar suas capacidades de aprender, mesmo que elas ainda não sejam evidentes — veremos isto mais adiante. É a subjetividade que sustenta o desejo por aprender e por ensinar. Subjetividade que significa particularidade, isto é, o lugar que cada um ocupa na sociedade porque tem uma função social, uma história de vida particular, um desejo que lhe é próprio. Desigualdade não quer dizer ser mais ou menos, valer mais ou menos; ela simplesmente significa que cada um está em um lugar diferente e a partir daí pode se posicionar e se relacionar.

O lugar do professor e do aluno

A desigualdade é fundamental, porque subjetivamente a criança precisa reconhecer na ação do professor o desejo que ele tem de ensinar, para que possa identificar-se com ele e querer aprender. Neste movimento de identificação, a criança se descobre desejante de conhecer o que o outro sabe.

No filme Ser e Ter aparece o seguinte diálogo, aproximado:

Aluno: O professor dá ordens e nós devemos obedecer.
Professor: Eu dou ordens e vocês obedecem, não é mesmo?
Aluno: Quando eu crescer quero dar ordens como o senhor.
Professor: Quando vocês crescerem poderão dar ordens para seus filhos, poderão se tornar professores. O que vocês querem ser quando crescer?

O que podemos pensar deste diálogo? Pensemos em algumas objeções: quem garante que este professor é o modelo ideal para uma criança? Não será autoritário da parte dele que se ponha como este modelo ideal?

Não, ele não é o modelo ideal para aquelas crianças, porque ninguém seria este modelo ideal, se pensarmos nos conteúdos que ele porta consigo! Sim, é autoritário se colocar neste lugar pois é a imposição subjetiva de um adulto diante de uma criança. Mas não encerremos a análise aí. Existe neste diálogo duas funções importantes e mesmo fundamentais para a relação de aprendizado. A função de identificação opera uma lógica em que de um lado a criança quer ser alguém — não importa o quê —; de outro, existe um adulto que lhe antecipa a capacidade de ser alguém ou algo — também não importa o quê. Nesta lógica, o que importa é a atribuição de lugares e capacidades, é a abertura para um porvir e não o conteúdo, já que este pode ser transformado, trocado por outros.

A função de identificação é fundamental para despertar na criança o desejo de querer ser ou tornar-se algo futuramente. O modelo ideal não é o professor-conteúdo, mas o lugar que ele ocupa como alguém.

Querer ser abre espaço para querer saber. Do contrário, se estes lugares não são marcados desta forma, se estes desejos não se colocam, o professor não reconhece na criança alguém ávido por saber e esta não reconhece em seu professor um mestre que lhe assegure o lugar de aprendiz.

A construção dos lugares

Os lugares não estão dados de saída. São relações que se estabelecem a partir da posição que o professor adota diante do aluno.

Mas o que fazemos com a frase mais do que difundida “o professor também deve aprender com o aluno”? Significa que ele deve ser como o aluno? Em que medida são iguais? O professor aprender com o aluno deve ser uma consequência e não o ponto de partida! Uma criança só tem algo a ensinar quando, primeiro, nela se reconhece uma possibilidade de aprender, de agir, anterior à sua demonstração de aquisição de conhecimento. Guardemos esta pergunta para respondê-la mais adiante.

Tomemos uma situação por exemplo — um bebê que ainda não anda. Qualquer pediatra responde à pergunta dos pais sobre a idade adequada para que ele ande, com evasivas do tipo: cada um anda em um tempo. Não depende, portanto só de uma maturação biológica, senão de algo mais.

Este mesmo bebê que nunca andou um dia se põe de pé, segurando-se num sofá ou na perna de alguém. Ele pode ter à sua volta algumas manifestações que lhe serão consequentes: os adultos podem ficar indiferentes à sua ação e aí pouco importa o que ele faz; os adultos podem entrar em pânico e dizer “meu Deus, cuidado! Ele vai cair e se machucar!”, e aí a criança desiste da sua pequena conquista e se arrasta de gatinhas por mais uns meses; por fim, ela pode ter, destes adultos, a aposta de que ela pode ir além. Neste momento um olhar, um chamado, antecipa sua conquista e diz “vai!” e a criança anda, mesmo que depois de dois passos se veja novamente estatelada no chão. A partir deste chamado desejante do outro — de que a criança é capaz de realizar coisas que ainda não conhece — que a criança passa, ela própria, a desejar aquilo que o outro deseja. Pelo reconhecimento antecipatório de sua capacidade, vindo do outro, ela realiza as suas competências que até então eram só possibilidades.

É deste desejo, desta aposta, que se trata na relação ensino-aprendizagem. É o professor quem porta o fio invisível do desejo que o outro saiba e que sustenta a transformação das possibilidades da criança em capacidades. O professor aprende com o aluno quando este o surpreende através da utilização de um conteúdo, de uma estratégia que não era esperada. Mas ele aprende também quando pode perceber no aluno a manifestação de sua subjetividade.

A função do professor: limite tênue entre presença e ausência

Tomemos mais um exemplo do filme Ser e Ter. Num determinado momento, uma criança de pré-primário pergunta (quase afirmando) ao professor se é possível “contar (números) sem parar”.

O professor, atento a esta indagação, instiga a criança e demonstrar o que sabe (no caso, contar umas poucas dezenas de números) e em seguida desafia-o, auxiliando-o, a prosseguir na contagem, até que este consegue chegar a um bilhão! No início a criança fica maravilhada de descobrir que é possível ir além do que sabe e chega a associar a contagem dos números à contagem das notas de dinheiro. Ele vai além no conhecimento dos números, mas vai além também no emprego dado a estes números. Cumpriu-se aí a função do professor.

No entanto, para olhares atentos, a cena do filme revela mais uma situação: uma vez que a criança atingiu seu objetivo de entender algo mais de seu mundo, ela está momentaneamente saciada de saber. Mas o professor, à revelia do aluno e também maravilhado com seus progressos, insiste na sua “função de professor” até o limite, em que a criança lhe dá várias dicas de que esta função já se cumpriu. Primeiro, diante da insistência, o aluno lhe diz que não é mais possível contar — este “não” revela que ele já sabe que pode contar, mas que não quer mais seguir naquele jogo —, mas o professor ignora seu alerta e insiste. Aí a criança denuncia ao professor que ele não está atento aos outros alunos (enquanto insiste em massacrá-lo com suas mesmas perguntas) e que estes iniciaram uma briga num outro canto da sala. Neste momento o professor perdeu sua função, garantida no ato inicial, e o aluno tentou “ensinar-lhe” algo: muitas vezes o professor não pode ir além do que uma criança aguenta, e este mesmo professor deve se dedicar a um determinado aluno quando ele necessita sua ajuda, mas também deve estar atento ao conjunto da classe.

Há um momento em que a função do professor é fundamental e há um outro momento em que a criança precisa ser deixada só com seus pensamentos para que possa se apropriar deles, formular suas hipóteses e avançar no conhecimento. A função do professor se faz, portanto, na sua presença inicial e na sua ausência posterior. A este tempo de elaboração o professor deve estar sempre atento. Ele pode ter uma visão correta do aluno e de seu processo de aprendizado, mas precisa permitir que este mesmo aluno, a seu tempo, assimile os conteúdos aprendidos. A passagem de uma situação a outra é sutil, mas fundamental.

Nesta mesma linha, vemos a adequação deste mesmo professor quando chama a mãe de uma aluna para lhe falar das dificuldades de aprendizado da filha. Escuta atentamente esta mãe e, junto com ela, estabelece relações hipotéticas entre as dificuldades do processo de aprendizado e a história familiar. Neste momento ele cumpre uma função importante, que é de escutar a família (que conhece a criança) e de dizer que há uma dificuldade da aluna em aprender, e que esta dificuldade vai além do âmbito escolar. Ele, portanto, se faz presente e dá abertura para que mãe e filha pensem e elaborem quais seriam estas dificuldades. No entanto, no afã de responder à dificuldade da criança, que recai sobre ele no dia a dia da escola, ele formula uma hipótese para estas dificuldades — que é sua e não da criança — e impõe este “saber” à aluna. Ele continua se fazendo presente, quando deveria, neste momento, estar ausente. Da mesma forma que no exemplo anterior, vemos no olhar da menina e no seu mutismo que o que o professor lhe diz como motivo de suas dificuldades não tem o menor sentido. A insistência do professor acentua o comportamento de esquiva da aluna.

Nas duas situações há um acerto: o professor identifica a vontade de aprender do aluno e a dificuldade de aprender da outra aluna. Mas há um erro: ultrapassa os limites, tentando impor sua subjetividade ao outro, sua leitura do mundo, e assim interrompe seu papel de ajudar a criança.

Querer saber demais sobre o outro é impor-se autoritariamente, é querer atribuir sua própria subjetividade ao outro. Da mesma forma, não querer saber nada sobre o outro também se revela inapropriado: é não atribuir ali, a presença de um sujeito. No filme Elefante vemos esta segunda situação retratada em uma aluna que não cumpre a norma de usar o uniforme nas aulas de educação física. A professora não percebe, ou ignora, que ali há uma questão que perturba a aluna e, ao invés de falar-lhe com calma, em particular, ela dá por resolvida a questão quando “comunica” à garota que aquela situação não pode continuar. Faz isto numa troca de aulas, no meio do corredor. Este não querer saber nada, não falar nada que diga respeito ao aluno, deixa-o entregue às suas próprias dificuldades, sem ajuda alguma.

A questão da agressão e seus possíveis desenlaces

A palavra tem valor, desde que seguida de uma ação coerente que a confirme. A exigência de respeito tem que ter mão dupla pois, ainda que os lugares de cada um sejam diferentes, o respeito de um a outro deve ser o mesmo.

É este respeito também que garante a responsabilização do aluno por seus atos e a apropriação da regra. No filme Ser e Ter temos mais um exemplo sobre isto.

O professor ensina a matéria aos mais velhos, enquanto os pequenos colorem um desenho. Jojo está distraído e não consegue terminar sua tarefa, interrompendo-a várias vezes. Ele olha ao redor, boceja e deixa cair coisas no chão. O professor, atento a isto, pergunta como anda seu desenho e lembra-o de que se ele não concluir a tarefa antes do recreio deverá ficar em sala de aula até terminá-la. Quando chega a hora do recreio, Jojo sai da sala com os outros, mesmo sem haver terminado sua tarefa. O professor o chama e retoma com ele seu compromisso com sua tarefa na escola. Nesta cena desenvolve-se (aproximadamente) um diálogo:

Professor: Por que vem à escola?
Aluno: Para brincar.
Professor: Para que mais?
Aluno: Para trabalhar, para escutar o professor.
Professor: Para que você está aprendendo o seis?
Aluno: Para aprender a contar, não é mesmo?
Professor: Você sabe contar até quanto?
Aluno: Até seis.
Professor: E depois do seis vem o quê?
Aluno: O oito. Não, o sete. (…)
Professor: Você terminou o desenho?
Aluno: (depois de alguma relutância) Não.
Professor: Quando você vai terminar o desenho?
Aluno: Depois.
Professor: Depois quando?
Aluno: Amanhã.
Professor: Mas você está aqui hoje. Amanhã não pode ser. Você prometeu que terminaria sua tarefa. Lembra disto?
Aluno: Sim.
Professor: Então deve cumprir sua tarefa.

Se o professor tivesse se poupado de todo diálogo e simplesmente exigido o cumprimento da regra, continuaria no seu papel de professor. Quando ele dá espaço para falar e escutar sobre o descumprimento das ordens, ele indica que há uma postura de compromisso perante elas e permite, eventualmente, a subjetivação e apropriação destas regras. A regra ajuda a organizar as ações. É a partir de um compromisso firmado consigo mesmo que a criança poderá estender este compromisso a outras situações.

Outra situação de Ser e Ter se dá quando Olivier e Julien, alunos mais velhos, brigam durante o recreio. Eles estavam brincando de pegador e Olivier foi pego por Julien e outros alunos. Olivier fica com muita raiva e a descarrega batendo nos menores. Em seguida, volta-se para Julien e atraca-se com ele. O professor chama os dois para conversar e esclarecer aquela situação, que precisará ser resolvida. Coloca que a rivalidade entre os dois vem acontecendo já há algum tempo e pergunta a Olivier o que tem em Julien que o incomoda tanto. Olivier responde que ele frequentemente o xinga. O professor então coloca para Julien que ele acabou por magoar Olivier com suas palavras. Coloca também para Olivier que ele não deveria ter batido nos menores, uma vez que eles não tinham nada a ver com aquela situação. Convoca os dois para pensarem no exemplo que estarão dando aos menores ao resolverem suas dificuldades agredindo um ao outro.

Existem várias nuances implicadas nesta situação. Primeiro, poderíamos pensar na questão da identificação: é por reconhecer a importância da função da identificação (que não está presente só na relação do professor com o aluno, como já citado acima) que o professor teme que os menores poderiam se espelhar nos alunos maiores e tomar a situação de deslocamento da agressão como modelo. Isto geraria uma série de conflitos subsequentes e sem controle. Esta atitude do professor, de proteção dos outros alunos que não estão diretamente envolvidos na briga, indica que ele sabe quais poderiam ser as consequências de um ato violento sem fala que o signifique. A escolha da via de resolução pela conversa e pelo esclarecimento dá a possibilidade que cada sujeito se coloque e possa refletir sobre sua posição e a do outro. É só pelo reconhecimento da sua individualidade e da do outro que as relações são possíveis. De outra forma, o que temos é a imposição autoritária do que tem mais poder sobre os demais.

Já no filme Elefante, presenciamos uma cena em que um aluno é agredido pelos demais em sala de aula. O professor que explicava sua matéria na lousa não vê, ou ignora, o que se passa ali, bem debaixo de seus olhos. É justamente este aluno que horas mais tarde comete o massacre, atirando em seus colegas e professores. Se isto se passou na realidade ou se simplesmente foi um recurso do diretor para justificar o ato do aluno, pouco importa. O que importa é que nesta cena ilustra-se um fato que percebemos em várias situações: quando um ato não é seguido de palavras que o signifiquem, simbolizem e dêem limites à ação desrespeitosa com o outro, este ato tende a se repetir, agora de forma mais intensa. Palavras substituem atos — e isto não é simplesmente um dito popular. No próprio exemplo de Julien e Olivier, as agressões já vinham se arrastando e se intensificando, até o momento em que se tornaram limites da relação entre eles.

É no intuito de desfazer este rompimento de relação que o professor nomeia e os faz nomear tudo o que se passou. Atos isolados e não compreendidos caem no vazio de significação, mas nem por isto deixam se de fazer presentes. É desta falta de significação que decorrem as ações violentas.

O filme Elefante retrata isto magistralmente, porque o silêncio e a solidão de cada um dos atores impera, nos deixando atônitos. O sentido de cada ação não se articula às demais, evitando que se possa prever as causas e as consequências de reações tão violentas. Cada um permanece no seu mundo, perdendo uma das características mais importantes do ser humano: a relação com outros que permite que cada subjetividade se coloque.

Considerações finais

Se partirmos do pressuposto de que a educação engloba a relação entre pessoas podemos, no filme Ser e Ter, localizar claramente o estabelecimento de relações a partir das quais se desenvolve todo processo de ensino e aprendizagem. Ele não se dá apenas para garantir a transmissão de conteúdos, mas também para dimensionar e atribuir significados para as ações daqueles ali envolvidos.

No filme Elefante, o que se percebe é ausência de relações. Toda relação envolve a presença de palavras efetivas e neste filme há silêncio. Percebe-se a presença das regras institucionais, mas não dos indivíduos como seres de diálogo. Faltam as palavras para relacionar, dimensionar e dar significados às ações protagonizadas por seus personagens.

Certamente, a ação que culminou no extermínio de 13 alunos e um professor não aconteceu ao acaso. Isto que chamamos de “acaso” nos questiona porque ele irrompe como um torvelinho que revolve a aparente calmaria e devasta as edificações mais sólidas. A partir dele é preciso (re)questionar, desde o começo, quais são as implicações de cada um. Ações violentas são precedidas de pistas, atitudes e pensamentos que no filme, hipoteticamente, aparecem no fascínio dos dois adolescentes pelos jogos de videogame e na obsessão em torno da questão das armas (sem contar numa breve alusão a Hitler e ao homossexualismo). Deve-se culpar, porém, a indústria do videogame e do acesso às armas pela atitude dos meninos? Não que estas questões não devam ser pensadas, mas elas, isoladamente, não as respondem, porque se assim fosse, como explicaríamos os tantos milhares de jovens que têm acesso às mesmas coisas e que, nem por isto, praticam tal ato? Nenhuma ação está dissociada de um significado e da subjetividade da pessoa que a pratica. No entanto, quando esta mesma pessoa, criança ou adolescente, não consegue extrair de suas relações significados que a façam repensar suas atitudes e posições subjetivas, resta o ato. Um ato que aparece como aterrador porque revela uma assustadora ausência de sentido e relação. E o Homem é um ser de sentidos e relações.

A educação tem por uma de suas bases a relação entre os seres humanos. Fazem parte da forma como o Homem se relaciona tanto a solidariedade quanto a agressão. Mas nem um nem outro podem, em ato, ser tomados como absolutos em si, pois aniquilam a relação: qualquer excesso por parte um indivíduo significa que ele é só presença, enquanto seu possível interlocutor é só ausência.

Biografia
Ana Beatriz Iumatti é psicóloga pela PUC e colaboradora da Rede SACI.
Laura Battaglia é psicóloga educacional e clínica e mestre em psicologia pela USP.

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