Por José Inacio de Melo Souza
Entre 1896 e 1907, o desenvolvimento das práticas cinematográficas no país cresceu muito lentamente nos maiores centros urbanos. Sabe-se hoje que o “entusiasmo do brasileiro” perante o cinema da primeira década refletia muito mais a euforia do jornalista e historiador Alex Viany do que uma realidade concreta. O contato dos “neo-espectadores” — a expressão é de André Gaudreaut — com o cinema foi moroso, tomando-se o país como um todo. Essa incipiência foi reconhecida por Paulo Emilio quando escreveu que os “dez primeiros anos de cinema no Brasil são paupérrimos. As salas fixas de projeção são poucas e praticamente limitadas ao Rio e São Paulo, sendo que os numerosos cinemas ambulantes não alteravam muito a fisionomia de um mercado de pouca significação. A justificativa principal para o ritmo extremamente lento com que se desenvolveu o comércio cinematográfico de 1896 a 1906 deve ser procurado no atraso brasileiro em matéria de eletricidade.”[1] O parágrafo citado é precioso pois deixou marca na historiografia. A explicação principal para o raquítico mercado devia-se à pequena expansão urbana da eletricidade e, passados mais de 30 anos desde a sua publicação, ela continua vigorando entre os historiadores. Creio que foi Máximo Barro o primeiro a apontar a fraqueza de tal idéia. A construção da usina hidrelétrica de Ribeirão das Lajes, em 1907, beneficiou somente a cidade do Rio de Janeiro. Paulo Emilio insinua que um fenômeno local teria sido favorável para todo o país, fixando as salas de exibição e, conseqüentemente, abrindo novas perspectivas para o mercado exibidor brasileiro. Carlos Roberto de Souza aceitou a aposta, notando que a “distribuição regular de eletricidade será elemento fundamental para o estabelecimento das salas fixas por todo o Brasil […]”.[2] A ligação entre sala fixa e eletricidade deixa de lado a influência europeizante nos primórdios do cinema no Brasil. O fluxo cultural originário da França trazia no seu bojo, entre outras novidades, as práticas do cinema das feiras rurais largamente providas por fabricantes de filmes e aparelhos como Charles Pathé.[3] Ao contrário do acontecido nos Estados Unidos, onde os processos tecnológicos de invenção de novos equipamentos e crescimento das salas exibidoras estavam intimamente ligados à urbanização e à eletricidade, projetores fabricados na França eram unidades independentes, sendo vendidos com dínamos e toda a parafernália necessária para o bom funcionamento de uma sessão cinematográfica, atuando de forma autônoma às condições locais de existência de uma rede elétrica ou não. Negociantes de São Paulo interessados em investir no comércio exibidor podiam comprar um pacote completo da Pathé Frères, incluindo técnicos para a instalação de um projetor sincronizado ao som, dínamos, motores e “outros pertences”, filmes e operadores, para a abertura de um cinema em plena rua 15 de Novembro, o Progredior-Theatre, local dotado de rede elétrica.[4]
Máximo Barro sugeriu que o empobrecimento da população decorrente do quatriênio de restrições financeiras provocado pelo governo Campos Sales (1898-1902), teria sido um fator importante no atraso da implantação das salas fixas pelo Brasil. Além desta hipótese não estar amparada por autores como Eulália Lahmeyer Lobo, pelo menos para o Rio de Janeiro, como veremos mais à frente outras questões contribuíram de forma mais acentuada para o atraso. Uma outra hipótese concentra-se nas taxações municipais e estadual. Mas essas só impediam a apresentação de pequenos manipuladores de fantoches, como aconteceu em Ribeirão Preto, cidade que exigia 30 mil-réis por uma licença para espetáculos públicos pagos. A licença estadual de 70 mil-réis cobrada no início do século até 1909, ou a paulistana de 100 mil-réis por mês em vigor entre 1896 e 1903, eram pequenas diante do número de espectadores atingidos pelos exibidores ambulantes. Em São Paulo, a maioria das apresentações eram feitas no Teatro Sant’Ana, cuja capacidade aproximada de 1.277 espectadores facilmente cobria o custo das licenças em uma única sessão. Um entrave claramente identificado encontra-se no atrelamento dos ambulantes à malha ferroviária estadual devido ao volume de equipamentos a que eram obrigados a deslocar nas apresentações (Barro citou o uso de um carroção por um ambulante de passagem pelo distrito de Votorantim, mas isso devia ser raro). Em 1908, por exemplo, Alessandro Ghedini, proprietário do Cinematógrafo Avenida, enquanto deixava um auxiliar em Guaratinguetá (linha da Central do Brasil), aguardando o projetor, deslocou-se para São Carlos (Estrada de Ferro Araraquara) para acertar uma segunda exibição.
Um último obstáculo citado por Máximo Barro para a expansão da exibição encontrava-se no preço do ingresso. Realmente as entradas para os teatros eram caras para a população em geral, porém não se constituíam em um obstáculo para os estratos médios e a elite dos maiores centros urbanos. Quando da instalação das salas fixas, um ingresso custava de 500 a um mil-réis, tendo o poder de compra de cinco a dez exemplares dos maiores jornais diários, no Rio ou em São Paulo. A urbanização acelerada das décadas iniciais do século XX apontam para um crescente número de leitores. Se em 1912 havia 37 jornais pelo país com uma tiragem acima de dez mil exemplares, em 1929 eles eram 177, sendo 14 acima de 100 mil exemplares. Os preços do ingresso, por outro lado, tenderam a uma estabilização ou queda, ou seja, ganhava-se mais com os cinemas cheios do que com o aumento do custo da entrada. Pensando-se menos em economia e mais na sociedade urbana, o que vemos é a pouca atenção dada ao fator democratizante do espetáculo cinematográfico. Se os teatros estavam divididos em cinco ou sete categorias, do “poleiro” em geral a um mil-réis, ao camarote nobre, cujos preços multiplicavam-se de trinta a cem vezes, dependendo da atração principal, o cinema tinha apenas dois tipos de espectadores: o adulto e a criança. O elitismo do teatro seria suplantado, a partir de 1907, pelo espetáculo de massa.
A barreira mais séria certamente se encontrava no acesso à mercadoria, ao filme. Sabe-se pouco sobre a circulação das películas no período. Empresários atuando com espetáculos variados de magia, prestidigitação, vaudeville ou música através da Europa e América Latina, incorporaram o cinema aos seus repertórios como o tinham feito com outros processos de ilusão ótica antes inventados (lanternas mágicas, panoramas, dioramas ou cosmoramas). Novos ambulantes podiam entrar para o negócio exibidor importando ou comprando filmes e equipamentos nas principais capitais, porém se desconhece a extensão do processo pelo país. Como no caso do Progredior-Theatre, a aquisição de um “pacote” com a novidade tecnológica não era uma questão das mais graves. O capital acumulado para investimento podia limitar o negócio, mas a renovação do estoque de filmes era problemática. Em outras palavras, o nó estava na distribuição da mercadoria.
Voltando-se a Paulo Emilio, vemos que outra idéia ressaltada no seu parágrafo foi a da existência de um comércio cinematográfico nacional, quando as condições de cada cidade ou região estavam longe de apresentar uma trama orgânica compatível com a sugestão. Uma das linhas desse artigo busca evitar a tentação de uma análise totalizante, objeto por princípio derrotada; em decorrência, buscaremos entender a realidade de São Paulo. A cidade, por sua vez, merece um trabalho mais acurado, pois os estudos existentes até o momento são limitados no tempo ou na metodologia.[5] A formação de um mercado nacional também evoluiu vagarosamente, sendo delineado enquanto tal somente a partir da década de 20 e mesmo assim para a zona litorânea e certas regiões do sudeste e do sul do Brasil.
Analisando-se o caso de São Paulo, verificamos que até 1907 a pobreza do mercado exibidor atingia inclusive a troca de filmes entre cidades. Películas realizadas no Rio de Janeiro, o principal centro produtor do período, não chegavam a capital paulista. O quadro apresentado abaixo fornece elementos para algumas comparações:
ANO | ESTRANGEIROS EXIBIDOS* | BRASILEIROS EXIBIDOS | PRODUZIDOS EM SP | PRODUZIDOS NO RJ | BR** |
1896 | 7 | 0 | 0 | 0 | 0 |
1897 | 0 | 0 | 0 | 0 | 3 |
1898 | 23 | 0 | 0 | 12 | 12 |
1899 | 13 | 0 | 0 | 24 | 24 |
1900 | 0 | 0 | 0 | 21 | 21 |
1901 | 17 | 1*** | 0 | 10 | 12 |
1902 | 120 | 0 | 0 | 1 | 1 |
1903 | 10 | 2 | 2 | 0 | 6 |
1904 | 2 | 3 | 3 | 0 | 7 |
1905 | 204 | 0 | 0 | 6 | 7 |
1906 | 174 | 3 | 3**** | 8 | 11 |
1907 | 436 | 10 | 10 | 7 | 27 |
1908 | 1.006 | 19 | 18 | 89 | 131 |
*Máximo Barro e Jean-Claude Bernardet para a cidade de São Paulo. Os números são incompletos pois muitos exibidores não publicavam os títulos apresentados.
**Anita Simis, Estado e cinema no Brasil, Tabela 1, p.302, filmes produzidos em todos o país, foram expurgados os filmes estrangeiros realizados no Brasil.
***Pode ser filme estrangeiro
****Pode ser lanterna mágica
A curva das exibições estrangeiras na cidade tem uma alteração ascendente a partir de 1905, enquanto o volume crescente de produções nacionais em 1897-1901 aponta para uma relação distinta com o quatriênio Campos Salles, devendo-se mais à participação de Afonso Segreto, encarregado por Pascoal Segreto da direção das filmagens. Quando ele foi incumbido de outras atividades, a produção carioca entrou em colapso. Por outro lado, a irregularidade dos estoques dos ambulantes é visível até 1904. Os anúncios de vendas de filmes publicados por Vicente de Paula Araújo indicam possivelmente muito mais a saída do comércio cinematográfico do que o estabelecimento de uma circulação sistemática. Além do mais, o aparecimento de um volume maior de filmes brasileiros em 1905, acompanha o crescimento da apresentação de películas estrangeiras, anunciando não só a fixação das salas, como a posição caudatária da produção nacional, situação vivida até os dias atuais. Os limites da produção, distribuição e exibição de qualquer maneira colocam de forma evidente a obviedade de que o mercado sempre foi dominado pelo filme estrangeiro. Os espectadores tiveram desde o início o seu imaginário moldado pela imagem vinda de fora. Para o cinema brasileiro duas são as conseqüências: o filme nacional, como artefato, era um objeto estranho dentro do conjunto e, como recepção logicamente visto como algo diferenciado do modelo dominante. Durante o período somente três filmes de ficção são lançados no “mercado nacional”, nenhum deles em São Paulo, enquanto são apresentados na cidade uma crescente produção de ficcionais estrangeiros, principalmente depois de 1902, quando os documentários e atualidades importados diminuem dentro do volume total, até atingirem menos do que 1/3 das apresentações entre 1905 e 1907, para decair mais ainda nos anos seguintes. Entre os gêneros cinematográficos que vão se firmando na década, o filme cômico, o fantástico, de truques, de perseguição e do “menino mau”, ao brasileiro só restava a produção de atualidades.
Os problemas postos ao historiador para ampliar o estudo do caso paulistano são da mais variada ordem. A documentação sobre exibição ou distribuição restringe-se às poucas informações existentes nos jornais ou revistas. A reduzida produção realizada na cidade perdeu-se. O conhecimento de como se processava a recepção dos filmes exibidos também apresenta dificuldades. Os espectadores de cinema, ou seja, um grupo constante de freqüentadores de salas de cinema, assim como os havia para os teatros ou cafés-concerto, aparecerão somente com a fixação das salas. Mas a transformação dos espectadores em fãs se dará muito mais tarde, com as colunas especializadas dos jornais e, numa segunda etapa, com as revistas dedicadas a um público específico, editadas no final da década de 10 e início da seguinte. A crítica de filmes era inexistente nos primórdios. Aquilo que Charles Musser chama de “espectadores profissionais”, estão ausentes do panorama da cidade de São Paulo, aliás, sem desdouro, pois era um fenômeno corrente em outras partes do mundo. Toda informação sobre a recepção dos filmes foi baseada, em geral, nos textos dos comentaristas teatrais ou noticiários culturais, quando existentes. O resultado do trabalho só pode ser fragmentário, inconcluso e passível de revisões.
As datas limites deste artigo encontram-se em 7.8.1896 quando, segundo Máximo Barro, ocorreu a primeira exibição de filmes produzidos pelos Lumière em São Paulo, realizada pelo fotógrafo de profissão Georges Renouleau, até a data da inauguração da primeira sala fixa, o Bijou-Theatre, de Francisco Serrador, aberta em 16.11.1907. É um período marcado pelo cinema ambulante, pela recepção negativa do espetáculo cinematográfico e pela heterogeneidade dos espaços de exibição.
A exibição ambulante contratada ou de passagem pela cidade utilizava-se dos teatros existentes para os seus espetáculos. Tal era o caso do Politeama, do São José, que se incendiou em 15.2.1898, e do Apolo, demolido em 1899 para a construção do Sant’Ana. Embora não haja um trabalho específico sobre estas primeiras companhias ambulantes, percebe-se uma certa ascendência de nomes ligados ao ramos da prestidigitação e do ilusionismo. Possivelmente eram conhecedores do uso de processos anteriores como lanternas mágicas, dioramas, silforamas, cosmoramas ou toda a classe de aparelhos provocadores de ilusão ótica. Dessa linhagem pertenciam o prestidigitador Faure Nicolay, com a sua Cia.Francesa de Variedades, de passagem pela cidade em 1898; Cesare Watry, que tinha como dístico “The world famous royal ilusionist”, possivelmente empregando fantasmagorias de Robertson como uma de suas atrações, em 1902; o mágico Carisi Dobler Herminio, da Cia. Excêntrica de Novidades Reais e Ilusionistas, em 1905.[6] Ao lado dos mágicos que manipulavam aparelhos de projeção e tinham o seu próprio estoque de filmes, havia aqueles que misturavam vaudeville com a exibição de filmes como a Cia. Excêntrica Chino-Japonesa, em 1902, ou a Imperial Cia. Japonesa de Variedades Kudara, no ano seguinte. Embora o homem dos mil empreendimentos José Roberto da Cunha Sales tenha se apresentado em São Paulo com um espetáculo de vaudeville, contendo prestidigitação e uma série de números musicais, entre os quais uma “mulher-barítono”, com a Empresa Porto, Mayor e Cia., sabemos que essas atrações serviam para a introdução da maior delas, a exibição de filmes (a ordem de apresentação foi a mesma empregada por Watry, mas o estoque de filmes desse último era reduzida). Faziam parte da linhagem do cinema ambulante, mesmo quando utilizavam nomes altissonantes, o Grande Biógrafo Lumière (1901), The American Biograph (1902), Cineógrafo Lubin (1902), Empresa Edouard Hervet (1905), Empresa Candburg (1906), Star Company (1906) e Francisco Serrador e Antonio Gadotti com o seu Cinematógrafo Richebourg, em 1907.
Além dos teatros, outros espaços desde cedo foram utilizados para a apresentação de novidades óticas. O Salão Paulicéia abrigou o Vitascópio de Thomas Edison em 1897, um ano depois do lançamento da novidade em Nova Iorque. Em fevereiro de 1899 foi a vez da apresentação do Mutoscópio, lançado em 1897 pela American Mutoscope como um concorrente do kinetoscópio de Edison. Vittorio di Maio, um exibidor ambulante, foi quem abriu o primeiro espaço dedicado exclusivamente à exibição na cidade. O Salão New York em São Paulo, nome copiado da sala carioca de Paschoal Segreto, o Salão de Novidades Paris no Rio, foi aberto em 22.7.1899, na rua 15 de Novembro, apresentando um aparelho de projeção Edison e um estoque limitado de películas. Não se sabe o tempo exato em que permaneceu aberto. No ano seguinte, di Maio inaugurou outra sala de exibição, na rua do Rosário, 5, agora com o nome de Salão Paris em São Paulo, posto que, segundo Vicente de Paula Araújo, tinha trocado seu projetor Edison por um Lumière. A errância de Vittorio di Maio, que “reinauguraria” outras duas vezes durante o ano, foi seguida pela Paulicéia Fantástica, aberta no final de 1901, no mesmo endereço de di Maio, ou pela sala A L’Incroyable, em 1903.
A instabilidade do cinema no panorama paulistano forçou a combinação da exibição com outras atrações. Paschoal Segreto, no Rio, tinha aberto o caminho. Aparelhos mecânicos, panoramas, museus de cera, objetos teratológicos, acompanhavam as “vistas” anunciadas como “novas”. De outubro a novembro de 1901, Vittorio di Maio apresentou filmes em associação com “bonecas vivas” e um panorama, depois de uma espetacular reabertura no início do ano com uma “mulher-peixe”, anunciada como uma grande atração parisiense. O Paulicéia Fantástica tinha uma máquina de pesca de brinquedos como forma de atrair as crianças. A apresentação de filmes com acompanhamento de música de execução mecânica, os fonógrafos, também foi outra mescla de atrações. Na busca de novidades os filmes eram acompanhados de fotofones, fono-cinematógrafos, cinefones, conefon-falantes, fotografone e outras contrafações ou variações do fonógrafo de Edison às vezes de forma imprópria. Durante a Semana Santa de 1902, o Paulicéia Fantástica foi severamente criticado pelas combinações musicais empregadas. Durante a exibição de uma “Vida de Cristo”, não se sabe de qual produtor, o anti-clerical Le messager de Saint Paul notou que na cena da crucificação “[…] uma música colocada na porta toca o mais canalha dos maxixes, ‘As mulatas da Bahia’, e continua assim até que Jesus dá o último suspiro. Quando ele ressuscita, usa-se uma horripilante marcha fúnebre. Puxa, essa associação de história santa e tangos não foi feita para inspirar muito respeito pela religião. Fica o aviso aos que estão encarregados da direção de assuntos religiosos.”
O insucesso do cinema no período anterior a 1907 pode ser acompanhado através dos comentarista teatrais, dando atenção quase diária aos espetáculos, recebendo o cinema uma fatia mínima deste interesse. Le messager de Saint Paul exprimiu algumas vezes o sofrimento provocado pelas mesmas “vistas” dos “biógrafos” (projetores). As razões para o desagrado são pelo menos três. Para a elite paulistana freqüentadora dos teatros, expectativa refletida pelas colunas dos jornais e revistas, o espetáculo principal era o dramático, seguindo-se as revistas, os cafés-concerto e variedades. Excetuando-se 1902, um ano favorável à exibição, o cinema tinha contra si o reduzido estoque de filmes das empresas ambulantes. Depois de 1896, por dois anos, 1897 e 1900, não se apresentou um único filme na cidade, fato que não foi muito melhor em 1904, com dois filmes exibidos. Ao lado desses fatores, havia uma grande inconstância na circulação pela cidade dos ambulantes, mostrando como os investidores evitavam se arriscar no comércio exibidor. Quando eles chegavam, apareciam críticas ao mau funcionamento dos aparelhos, as famosas queixas sobre trepidações e desfocamentos. Nem sempre se identifica o ponto de partida para uma crítica desencorajadora. Tomando-se o caso do ambulante Edouard Hervet, apresentando-se no Teatro Sant’Ana entre 18 de março e 25 de abril de 1905 com filme da qualidade de um Da terra à lua (Méliès), um Chapeuzinho vermelho (Méliès) ou um Cristovão Colombo e o descobrimento do Novo Mundo, da Pathé, menos sensacional porém de citação obrigatória posto que pertencia também ao repertório de outros ambulantes como a Star Company e a Empresa Candburg. Pois bem, o ambulante recebeu da revista de sátira política Arara o seguinte comentário: o “cinematógrafo falante que está funcionando neste teatro e anunciado com grandes encômios, nada tem de novo, a não ser um ou outro número, em que a fotografia animada acompanha uma lenga-lenga do fonógrafo. As vistas são muito trêmulas e o fonógrafo terrivelmente cana rachada.” O noticiarista teatral, gozando os erres do francês, acrescentou ainda que o “empresário da borracheira” pouco se importava com os comentários negativos, estando feliz com o “grrrrande”sucesso financeiro. Havia público, a revista o reconhece, tendo a empresa se apresentado com um bom estoque de filmes, pelo menos 201 novidades, entretanto a crítica foi negativa. A falha combinação imagem/som talvez fosse a fonte para a apreciação depreciativa. Eduardo Frieiro descreveu o insucesso de um exibidor de passagem por Belo Horizonte que, falhando na sincronização da música de Bonsoir Madame la lune, foi obrigado a abandonar a cidade.
Antes e depois da fixação das salas de cinema, a exibição de filmes foi empurrada para outros tipos de integração. O circo, por exemplo. No Pavilhão Elisa Brose, em 1908, com mais de 1.200 lugares, passou a funcionar um cinematógrafo. A nova atração foi motivo para, mais tarde, produzir a alteração de nome: Pavilhão Cinematográfico Elisa Brose. Quando a artista, especializada em cães amestrados, faliu, em 1911, um dos credores era Francisco Serrador (mas ela não fechou as portas imediatamente). O teatro de revista incorporou a exibição de uma forma espantosa para a época. No espetáculo Entra simpático, levado ao palco do Teatro Politeama em abril de 1907, o cinegrafista e projecionista Joseph Arnaud incluiu um quadro com projeções, que funcionou mal devido à “irregularidade na distribuição de luz” sobre a tela. A falha foi sanada com a vinda de um outro projetor do Rio de Janeiro.
Mas foi com o café-concerto ou locais onde a consumação de bebidas e comidas casavam-se com as projeções, que o cinema dos primórdios encontrou uma combinação frutuosa. Tal estratégia não era isolada e podemos ver no caso francês novamente uma antecipação. Jean-Jacques Meusy, estudando a exibição em Paris, afirmou que nas grandes cidades “[…] essencialmente no seu seio [café-concerto e music-hall] que o cinematógrafo vai se desenvolver, como os guerreiros gregos dentro do cavalo de Tróia ou, dirão de uma forma mais simples os que não têm o cinema no coração: o verme dentro da maçã.”[7] O café-concerto tinha chegado a São Paulo em 1899 com o Eldorado Paulista, iniciando uma era na evolução cultural da cidade, como classificou Hilário Tácito em Madame Pommery. O espetáculo comportava um elenco de atrações de 5 a 15 artistas (os números eram variáveis), no qual se encontravam declamadoras (diseuses), acrobatas, dançarinas, cantores e cantoras com tons de vozes mais ou menos afinados, ou cançonetistas, em geral trabalhando com algum gênero musical fixo. As classificações para esses artistas são também variadas: Marthe Stael (o nome francês, espanhol ou italiano tornou-se uma constância) era uma “cantora excêntrica francesa”; Trio Busson eram “originais excêntricos parodistas”; Trio Loube, “artistas cômicos acrobatas”; Bergeret, “célebre imitador”; Mlle.Dalfrede, diseuse, e por aí afora. Um desses locais privilegiados foi de início o Teatro Politeama, propriedade da Cia. Antártica Paulista e, mais tarde, o Moulin Rouge, da Empresa Paschoal Segreto. Em 1901, o Politeama, arrendado por Segreto com o nome de Politeama Concerto e sob a direção de Joseph Cateysson, era considerado pelo Comércio de S.Paulo, segundo Vicente de Paula Araújo, um “barracão ordinário de madeira e zinco, indigno mesmo de qualquer companhia de 3a.classe […]”, servindo bebidas de primeira ordem e sanduíches aos freqüentadores. Quando no ano seguinte houve nova mudança de nome, agora era o Casino Paulista, e uma sociedade se estabeleceu com Charles Seguin, empresário teatral de Buenos Aires, na renovação do contrato com a Antártica pediu-se uma reforma no edifício, sobretudo no teto do buffet. Em 1906, com a abertura do Moulin Rouge no largo do Paissandu, foi que a cidade conheceu a expansão do café-concerto, anunciando Segreto “biógrafo, buffet e bebidas a escolher”. Os espaços oferecendo a combinação de cinema e comida espalharam-se. No Salão Progredior, que se intitulava “o mais vasto bar de São Paulo”, em março de 1907 foi instalado um projetor Pathé. A Rôtisserie Sportsman, um restaurante, pode ser incluido dentro destes espaços oferecendo “biógrafo, buffet e bebidas a escolher”. Em julho e agosto de 1907, em um dos seus salões, a Empresa Cinematográfica Paulista apresentou 82 filmes da Pathé.[8] Essa forma de espetáculo sobreviveu por mais alguns anos. Em 1912, Au Cabaret, bar e restaurante da praça Antonio Prado, fez funcionar um projetor Pathé, e dois anos depois, a Confeitaria Fasoli, na rua Direita, ainda mantinha tal tipo de espetáculo. Mesmo entre 1908-9 e 1911, período de elevação do cinema como atração principal, a exibição de filmes poderia ser acoplada às novidades que aparecessem. Dois casos são ilustrativos do que estamos falando. O primeiro deles ocorreu com a fundação da sociedade anônima Cia. de Diversões, envolvendo grandes capitalistas e investidores proeminentes da cidade na construção de um estabelecimento destinado à exploração do cinematógrafo com espetáculos artísticos e recreativos, exibição de agilidade e força, destreza acrobática, exercícios de ginástica e outras atrações. O capital de 112 contos foi conseguido através da associação de médicos conhecidos, mas também investidores como Arnaldo Vieira de Carvalho, Alceu Peixoto Gomide, Luis Felipe Baeta Neves, sob a presidência do Dr.Arthur Fajardo. O objetivo do negócio era a construção do Teatro Cassino, situado na esquina das ruas D.José de Barros com 24 de Maio. A obra foi mais custosa do que o esperado, sendo necessária a elevação do capital para 200 contos em 1909. O segundo exemplo aconteceu com a febre da patinação que assolou a cidade nestes anos. Um grande investimento imobiliário e financeiro movimentou a Cia. Antártica Paulista e a Baruel e Cia., empresa ligada à indústria farmacêutica, na constituição de uma sociedade anônima, a Cia. de Atrações. O cinema, é claro, não poderia ficar de fora do Skating Palace, conhecido em 1915 como Palácio Gaumont, nome copiado do gigantesco cinema da produtora francesa na cidade de Paris. Um capital de 300 contos serviu para a compra de um terreno na praça da República, onde foi construído um prédio destinado à patinação, cinematógrafo e outros espetáculos, sendo inaugurado a 28.12.1912. Ainda que estejamos discorrendo sobre um antes e um depois da fixação das salas de cinema, as realidades econômicas e sociais citadas são bem diversas. No momento anterior o cinema serviu para incrementar espaços e espetáculos já estabelecidos (teatros, cafés-concerto, espetáculos de vaudeville, etc.). No momento seguinte, ele funcionou como indutor de novos negócios. A passagem foi feita por Francisco Serrador.
Espanhol de Valência, Serrador, filho de Francisco Serrador, teria nascido em 8.12.1872 (ou em 1876, segundo o serviço eleitoral de São Paulo).[9] Imigrou para o Brasil em 1887, fixando-se primeiro em Santos, onde exerceu serviços braçais. Mudou-se para Curitiba, fazendo algum capital com o comercio de quitandas. Pode-se dizer, inclusive, que foi um pioneiro no ramo ao organizar uma rede de quitandas, para a qual deve ter tido o apoio da família e do compadre Antonio Gadotti. Nos primeiros dias de novembro de 1905 instalou-se, com o assim denominado Cinematógrafo Richebourg, no Coliseu Curitibano, um parque de diversões com rinque de patinação, carrossel, tiro ao alvo, “esplêndido botequim” e outros divertimentos. O início da diversificação dos investimentos de Serrador aguarda uma explicação mais completa. Alice Gonzaga afirmou que as projeções cinematográficas poderiam “alavancar” a “rede de quiosques”, o que parece pouco factível. Esgotado o Coliseu Curitibano, o Richebourg iniciou a sua vida de cinema ambulante, voltando a Curitiba somente em 1907. Segundo anúncio de jornal, iria depois para Paranaguá e Santos. Em maio daquele ano estava no Teatro São Carlos, da cidade de Campinas, mudando-se depois para o rinque de patinação onde permaneceu até 30 de julho. No dia 3 de agosto instalou-se no Teatro Sant’Ana, em São Paulo. Antonio Gadotti fez a apresentação de praxe para a imprensa, recebendo muitos elogios de praxe.
Antes da inauguração do Teatro Municipal, o Sant’Ana era a melhor casa de espetáculos da cidade. Segundo Máximo Barro, a lotação aproximada era de 1.277 espectadores, distribuídos em 44 camarotes de dois níveis, balcão nobre com 94 poltronas, platéia de 1a. com 334 cadeiras e 110 de segunda, galeria para 506 pessoas. Os preços do cinematógrafo eram mais baixos que os dos espetáculos teatrais: o local mais caro custava 35 mil-réis e o mais barato, 1 mil-réis. As sessões diárias comportavam de 16 a 19 filmes, divididos em três funções de 5 a 6 películas. A orquestra abria o espetáculo com uma grande overture, e cada uma das sessões era introduzida por uma parte sinfônica. No final do mês de agosto, O Estado de S.Paulo podia anunciar que o Richebourg tinha caído no gosto do público, um elogio fácil, às vésperas da saída da empresa do teatro para dar lugar ao ator francês Coquelin, em excursão pelo Brasil. Serrador voltou ao Sant’Ana no dia 17 de setembro, dando mais 11 espetáculos até o dia 29. Durante o mês seguinte, há registros da excursão de um cinematógrafo Richebourg ou Luxemburgo por Itu e Mococa. O nome de Serrador voltaria aos jornais somente em 16.11.1907 com a inauguração do Bijou-Theatre, instalado no local do antigo Eden Theatre, fechado desde janeiro do ano após uma rápida passagem do empresário Joseph Cateysson com um teatro de variedades e cinematógrafo, esse operado por Joseph Arnaud.
O fato de Serrador se estabelecer na cidade com uma sala fixa, leva-nos a pensar que o aparelho Pathé chamado Richebourg e o elenco de 250 películas inéditas apresentadas (o estoque seria maior se somássemos os títulos anteriormente exibidos em São Paulo), tinha chamado a atenção do público para o Sant’Ana, fazendo a alegria do empresário. Olhando-se um pouco além, percebe-se que Serrador foi favorecido também pela conjuntura do segundo semestre daquele ano. Um pouco antes da chegada do Richebourg, a Empresa Cinematográfica Paulista – ECP tinha adquirido em Paris um projetor Pathé, acompanhado pelo respectivo projecionista, oferecendo três sessões diárias na Rôtisserie Sportsman a partir de 24 de julho. Os preços da ECP eram mais baratos devido ao local (1 mil-réis para adultos e 500 para crianças), porém o estoque de filmes limitado a 82 películas inéditas. Como conseqüência, do terceiro espetáculo em diante a empresa começou a repetir dois programas contra um novo, além de apresentar uma quantidade menor de filmes por sessão. Após a chegada de Serrador, a ECP tinha entrado em fase de reprise total, enquanto o espanhol podia oferecer espetáculos inéditos e em maior quantidade, pelo menos durante a primeira semana. O segundo fator favorável a Serrador foi que após o esgotamento da ECP, a 23 de agosto, e do Richebourg, a 30 de setembro, outras empresas continuaram alimentando os espectadores paulistanos de filmes, embora de maneira precária. No Salão Progredior, a Empresa Menezes e Cia. manteve no início de novembro algumas exibições, com filmes conhecidos na sua maioria. Logo em seguida, instalou-se na Rôtisserie Sportsman a Empresa Oshiyako e Cia. com um grande estoque de filmes Pathé. Portanto, quando inaugurou o Bijou-Theatre, na rua de São João, atual avenida São João, junto ao Teatro Politeama, a cidade tinha sido tomada por uma febre do cinema com exibições no Progredior, Sportsman, Teatro Popular do Brás (inaugurado em 9.12.1907) e Kinema-Theatre (19.12.1907). O crescimento da oferta era de causar espécie, motivando o cronista de A vida moderna a escrever: “Em São Paulo, graças a Deus, também tivemos a epidemia avassaladora dos cinematógrafos, que no Rio deu azo aos finos críticos dos jornais de lá, exalarem a cintilante ironia que possuem. […] Sai-se do Sant’Ana, onde se exibe um cinematógrafo Pathé, e dobra-se a Rua Quinze, bate-se de queixo no Kinema Cinematógrafo; desce-se a Rua S.João e grita-nos o Cinematógrafo Richebourg, no Bijou-Theatre. Livre! E em todos a população paulista dá o quinhão de seus tostões. Nesse último então a afluência de famílias é verdadeiramente pasmosa. Também pudera! O empresário Serrador sabe agradar e bem compensar os puxados mil-réis que se paga por cabeça exibindo ótimas fitas de assuntos de alto interesse para todos, senão científicos, ao menos para abrir a caixa de nossas gostosas gargalhadas.”
Quatro anos depois, Francisco Serrador seria o primeiro tycoon tupiniquim com a fundação da Cia. Cinematográfica Brasileira. Seu império abarcaria São Paulo, capital e interior, Rio de Janeiro e Minas Gerais, além de agências no sul e norte-nordeste. A expansão dos negócios, porém, merece outro artigo. O nosso primeiro grande do cinema cresceu a partir de São Paulo e somente o desprezo devotado aos exibidores por longas décadas, ou a concentração do comércio cinematográfico no Rio de Janeiro nos anos 20, ficando São Paulo em segundo plano, obscureceu o fato. A cidade de São Paulo entre 1908-11 seria o principal campo de batalha para o controle do mercado, não mais paulistano mas da região mais rica do país, com a mobilização de grandes capitais financeiros. A experiência do período 1896-1907, embora lacunar, aponta para o fato de que a chave do sucesso estava na distribuição de filmes. Francisco Serrador foi o primeiro a compreender e trilhar com vigor por esse caminho.
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[1] Emilio, Paulo. Panorama do cinema brasileiro: 1896/1906, In: Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, p. 41.
[2] Souza, Carlos Roberto de. Nossa aventura na tela, p. 53.
[3] Para o caso europeu e particularmente espanhol ver Palacio, Manuel. El público de los origines del cine, In: Historia general del cine, v1, p. 219-39.
[4] Ver Cri-cri, 11.1.1908. Outros exemplos podem ser citados: em 1909 a Diretoria de Instrução e Comércio da Secretaria da Agricultura abriu concorrência para a compra de um aparelho Gaumont em que se especificava entre projetor, lentes, banheiras, “um jogo de aparelhos para luz elétrica completo”; na penhora dos bens do professor Avelino da Matta Machado, em 1916, entre os vários apetrechos Pathé ainda constavam um dínamo com voltímetro, amperímetro e resistência.
[5] Os principais trabalhos são o de Vicente de Paula Araújo, Salões, circos e cinemas; Máximo Barro, A primeira projeção de cinema em São Paulo e Maria Rita Galvão, Le muet, In: Paranaguá, Paulo. Le cinéma brésilien.
[6] Ver o livro citado de Vicente de Paula Araújo, de onde tiramos estas informações.
[7] Meusy, Jean-Jacques. Pars-Palaces, p.114 (grifo do autor). Para o estudo das ligações do music-hall com o cinema na Inglaterra ver Chanan, Michael. The dream that kikcs, cap. 9.
[8] O número de filmes foi obtido em Bernardet, Jean-Claude. Filmografia estrangeira, O Estado de S. Paulo. No total, só estamos considerando as películas inéditas na cidade.
[9] Sobre Serrador ver Silva, Gastão Pereira. Serrador o criador da Cinelândia; Gonzaga, Alice. Palácios e poeiras e Carvalho, Gisele Maria Lozzi et alii. O cinema em Curitiba (1897-1912), In: Cadernos de pesquisa 4.
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