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Entrevista com Fernando Solanas

Entrevista realizada em 08/07/2000, quando o diretor argentino Fernando Solanas esteve em São Paulo, onde realizou um workshop sobre direção cinematográfica no CineSesc e conversou com a Mnemocine sobre alguns temas.

Entrevista por Carla Miucci e Flavio Brito. Captação DV por Gianni Puzzo e fotografias por Filipe Salles.

A formação do cineasta e o papel das escolas de cinema hoje

“Nos fins dos anos 50, na Argentina, não havia escolas de cinema. A primeira foi a Escola Documental de Santa Fé, a 500 km de Buenos Aires. E teve bastante influência também na América Latina, porque vinham alguns diretores e estudantes de seus países. Depois Fernando Birri, um de seus principais expoentes, veio trabalhar aqui no Brasil, com novas idéias sobre o documentário.

A formação era autodidata. Alguns cineclubes ofereciam pequenos cursos, era muito elementar, não existia vídeo, sair com uma câmara 8mm para fazer uma pequena filmagem custava dinheiro e nós jovens não tínhamos dinheiro para película, dinheiro para laboratório, não é como hoje, a facilidade que temos com o vídeo e não se gasta nada, não custa nada para fazer suas experiências, então nós nos acostumamos a ver cinema na sala de cinema, havia muitos bons filmes de arte na Argentina naqueles anos. Nós ficávamos assistindo 2 ou 3 vezes um filme e escrevíamos no escuro o que víamos, Fellini, Visconti, De Sica, Bergman, os franceses da Nouvelle Vague. Eu fui autodidata, e minha formação, fui realizando-a estudando em outras escolas. Eu tinha começado estudando música, mas quando decidi estudar cinema, ingressei na Escola Nacional de Teatro, eu queria fazer filme de ficção; como o filme de ficção utiliza literatura e conta estórias, utiliza o teatro, porque essas estórias, o teatro as conta com atores, com personagens, e através de cenas e de diálogos. Era fundamental conhecer as técnicas de postura em cena e da direção dos atores. Assim fiquei vários anos fazendo a Escola Nacional de Teatro, que me foi de uma enorme utilidade. E pintura, participei de oficinas de pintura, para conhecer o mundo e a sensibilidade do trabalho da imagem.

Bom, é certo que as escolas de cinema, a moda ou sua necessidade, vêm mais nos anos 60 ou 70. Hoje na Argentina há muitas escolas de cinema e existe algo como 7 mil estudantes de cinema. Nem todas as escolas de cinema são interessantes; quando se escuta os estudantes, eles protestam em todas as escolas de cinema do mundo; você vai à UCLA — eu tenho dado cursos na escola de cinema da UCLA (Universidade da Califórnia) — protestam (risos). Na França, protestam; no Centro Experimental de Roma, protestam… Eu digo, veja isto em relação a “nada” de nossa época.

A principal função das escolas de cinema é a de permitir aos alunos concentrar-se, estar em contato com sua geração, aprender técnicas básicas e estar motivados. A escola é boa quando motiva os estudantes a começarem a fazer (pausa)… Nem sempre isso acontece; há escolas muito rígidas, em que depois de um ano (os alunos) fazem um pequeno curta de 5 minutos… Hoje em dia, por exemplo, em Buenos Aires há uma excelente escola que é a Universidade de Cinema; uma escola privada, onde os estudante passam 4 horas diárias e onde há muita matéria teórica de comunicação e de formação universitária cultural, que dá ao cineasta uma vasta base intelectual-cultural. Isso poderia ser pensado como um excessivo desenvolvimento da linguagem escrita e não da linguagem visual (indignado), mas ao mesmo tempo, estimula os alunos a fazer vídeo; já os curta-metragens nem ao menos estão nas escolas.

O cinema e a linguagem artística são sempre um jogo expressivo e isto não se pode perder, me entende? Como se faz música? A primeira coisa que se tem que ter para fazer música é vontade de fazer música, me entende? (Risos). Não se pode entender alguém que gosta de dança se não tem vontade de dançar. Eu não posso explicar a vocês a música que compus, vocês me dirão: queremos senti-la. Ocorre o mesmo com o cinema; o cinema não são palavras, não é um roteiro, não é uma linguagem escrita; o cinema é uma linguagem visual. Eu não posso contar-lhe como é a fotografia que eu tirei agora, você tem que vê-la.

O cinema é arte plástica, então aqueles que se dedicam a ensinar o cinema através das palavras são muito limitados, eu diria ruins. O cinema, assim como a música, como a pintura, não pode prescindir de que o estudante trabalhe com sua linguagem. Com o que trabalha o estudante de pintura? Desenhando.

Quando eu dou workshops para adolescentes, é uma maravilha… Maravilhoso… depois de quinze minutos de eu estar falando, eles fazem (faz cara de tédio e bufa) e eu digo: o que se passa? Eles dizem: queremos filmar, onde estão as câmeras?

A necessidade de expressão com a imagem permite a mim, professor, ajudá-lo tecnicamente a resolver os problemas e esse é o melhor aprendizado. Com a música é igual, o pianista aprende tocando piano. Eu te ajudo a aprender as técnicas de tocar o piano, eu te ajudo a aprender as técnicas de fazer uma boa filmagem, um bom enquadramento, a linguagem dos movimentos de câmara.

Mas eu vou a um problema, todavia mais importante, que é a minha crítica às escolas de cinema. As escolas de cinema, algumas resultam mais teóricas que práticas, e isso já é para ser criticado, me entende? Porque hoje todo mundo pode ter uma câmera de 500 dólares. Um estudante de cinema geralmente pode ter uma câmara de fotografia ou de vídeo, então, outro problema: as escolas de cinema ou são teóricas ou são técnicas, somente técnicas; ensinam a técnica de captação da imagem: eu sou a imagem que estou falando e esta (aponta para a câmera que o filma) é a minha captação. As escolas de cinema, na maior parte, ensinam com muita sofisticação todas as possibilidades de captação da imagem, mas não nos dá nenhuma técnica de como se constrói, se busca, se trabalha a imagem que deve captar e isso é um erro monstruoso. Exemplo: quando no teatro se levantam as cortinas, de trás saem três, quatro, seis meses de preparação dessas imagens e dessas cenas, com os atores, o vestuário, a cenografia, de acordo? Se trabalhou essas imagens, se chegou a construir essas imagens com o cenógrafo, o figurinista, com luz, mas também com os atores; passado quatro meses de repetições… essa realidade que se há de criar, que é a imagem, é absolutamente abandonada, hum?

A busca de todo artista ao longo de sua vida é a busca da identidade de suas imagens. Isto posto, no cinema, como é a sua linguagem, a captação, a forma como essa imagem é captada, é tão importante quanto a própria imagem. Se vem aqui um grandíssimo… Storaro[1], se estamos frente a um Storaro, com uma panavision, e esta imagem é péssima, o que estou falando não tem nenhum interesse, nenhuma importância… Todo trabalho técnico de captação desta imagem não serve, entendeu? Então este é um grande problema.

Termino dizendo que em poucas escolas de cinema se ensina o que se pôr em cena, que é a construção da realidade que devo filmar. Estou falando de cinema de ficção, porque no documentário não, tampouco no desenho animado, tampouco estou falando dos documentários Discovery da BBC, que vão filmar os tigres na África, me entende? Aí tem que usar outras técnicas para que o tigre não te coma (risos), estou falando do cinema de ficção.”

Cinema argentino e identidade do cinema latino-Americano

“Eu não sou um especialista em cinema argentino e em cinema latino-americano porque tenho pouco tempo, não vejo tudo porque é muito difícil de acompanhar, não temos resolvido ainda o problema da exibição… tudo isso. As melhores expressões do cinema latino-americano sempre estão em relação com a sensibilidade e a cultura de seu país. O que dá sabor e interesse em uma obra é a personalidade que ela tem, e essa personalidade não vem do céu, geralmente tem a ver com a personalidade do lugar, da sociedade onde vive.

Hoje o conflito é que se expande um só tipo de cinema, o cinema de mercado. A escola de cinema não é a escola de vocês nem a minha; a escola de cinema, desde muito pequeno, é a televisão; aí os homens começam aprender a ver cinema (risos), mal; eu suponho, entende o que te digo? O menino passa mais horas frente à televisão que na escola, e muito menos que na escola de cinema, e quando você recebe um estudante de cinema, vem muito deformado, o pobre (risos); já vem meio cego, e este é um problema sério, o tomamos um pouco com risos mas é sério. Quero dizer com isso que na minha época o estudante, o jovem, formava seu gosto pelo cinema na sala de cinema… o cinema não é a televisão, e o que se fabrica no mundo, 90%, é televisão em tela grande; a linguagem da televisão cujo domínio é o diálogo, segue os atores em suas falas; onde a imagem não tem importância, é apenas um fundo, plano e contra-plano, ou o esquema americano, suspenso com a ação.

Esse modelo se expande em toda parte do mundo. Em televisão, a linguagem televisiva é o diálogo, não há tempo morto em televisão, e esse tempo curto, a montagem curta e em zapping, na luta pela competição das redes, forma crianças acostumadas a ver zappings e a mesclar imagens; alguém quando vê cinema em televisão vê películas cortadas por outras películas, um papel higiênico, um cigarrinho, uma conserva, uma bebida, hein? Não vê cinema numa sala.

Para mim cinema é uma tela grande, em pintura é um mural, não é uma miniatura; são dois planos visuais distintos, a relação do enquadramento varia, entendeu? E depois, como um espetáculo, o teatro não tem divisões, tem uma continuidade, não há nada que o interrompa, e a intimidade obscura da sala comportando a emoção, isso é cinema. Portanto esse é o domínio do plano grande e da pintura; para mim cinema é arte plástica em movimento, e não a televisão.

Arte plástica é o valor de cada imagem como quadro, o ator é parte integrante da imagem; em televisão, aí a imagem é o fundo que acompanha o ator, entendeu? E também a expressão do áudio hoje, o cinema é imagem plástica e imagem sonora, é uma complexidade sonora. Existe uma diferença e tem que ser reconhecida; o espectador vem à sala de cinema querendo ver o que vê em sua casa, está acostumado a tudo rápido, ação… O cinema é tela grande, grande expressão da imagem plástica, imagem sonora, e também um ritmo distinto de tempo, não é isto (estala os dedos com rapidez e em direções opostas), por suposto a televisão e o quadrinho invadiram o cinema.

A Europa prestigiou muito os quadrinhos e ali se encontram muitos artistas que se expressam em quadrinhos adultos. Digo que os americanos desenvolveram o quadrinho infantil e isto invadiu o cinema. Quando falávamos de cinema de ficção e tentávamos fazer um filme de ficção equivalente as novelas, não aos quadrinhos, me entende? Equivalente a novela, em nível cultural equivalente a uma boa obra de teatro, a uma boa novela, a uma boa mostra de pintura”.

A relação do cinema com a política; cinema como bem cultural ou comercial

“Com cinema se pode fazer muitas coisas, se pode fazer informações, se pode fazer comércio e publicidade, se pode fazer todas as coisas. O cinema é a linguagem cultural mais completa que existe, é portanto um bem cultural muito precioso; no cinema cultural, no cinema documental ou de ficção, deve-se proteger a diversidade, nós entendemos, e este é um pensamento europeu, que não pode haver grande criação sem liberdade de criação. Nos Estados Unidos o autor não é o autor, é o produtor; e na Europa existe a concepção de que o autor é o roteirista e/ou o diretor. Então toda a legislação do cinema está pensando no sentido de assegurar que a liberdade daqueles que conceberam o filme esteja assegurada em sua produção, entendeu? A diversidade cultural, essa é a concepção democrática da cultura.

Não o autoritarismo de impor um filme, um só tipo de cinema repetido mil vezes. Quando vejo uma película americana eu penso que já a vi, não, não é essa, são outros atores, não seria um remake? Ah sim, mudou um pouquinho (tom de ironia). Tem que se assegurar a diversidade cultural. É algo muito complexo e não dá para sintetizar agora, com quatro fórmulas, um tema bastante complexo. E depois tem a experiência de cada autor, uns mais inquietos por problemas intimistas, outros por problemas sociais.

Enquanto que A Nuvem é muito argentina, é um filme poético, sobre personagens apressados em uma realidade social dramática; essa realidade social tem a ver com um tempo que é esse da aplicação do modelo neoliberal, se quer uma explicação política. Esse modelo neoliberal é aplicado em muitos países no mundo. Por isso vamos à Rússia e os russos aplaudem e dizem: isso é Rússia, durante a projeção quando veem A Nuvem. Na Itália dizem “isto é Itália”, e é provável que no Brasil se diga: isto é Brasil… Porque são situações semelhantes, a corrupção na sociedade, os modos de prostituir o indivíduo, comprando, vendendo… Por isso que A Nuvem começa e termina com uma canção que diz “Digo não”, pois nem tudo se pode vender, diga não, eu digo não.

[1] Vittorio Scolaro, diretor de fotografia, nascido em Roma em 1940, trabalhou com diretores como Bernardo Bertolucci em The Conformist e O último tango em Paris e Francis Ford Coppola em Apocalypse Now, One from the heart e Tucker: the man and his dream.


Filmografia de Fernando Solanas:

La Hora de Los Hornos (1968)
Los hijos de Fierro (1972)
Tangos, el exilio de Gardel (1985)
Sur (1988)
El viaje (1992)
La nube (1998)

Bibliografia:
LABAKI, Amir e CEREGHINO, Mario. Solanas por Solanas, entrevista a Amir Labaki e Mario Cereghino. São Paulo, Editora Iluminuras, 1993.
AVELAR, José Carlos. A ponte clandestina: Birri, Glauber, Solanas, Getino, García Espinosa, Sanjinés, Alea – Teorias do cinema na América Latina. Rio de Janeiro/São Paulo, Edusp/Editora 34, 1995.

Agradecimentos especiais à imensa cordialidade de Ângela Correia e a Sérgio Muniz, Leila (Espaço Unibanco) e Margarida (Assessoria de Imprensa), que possibilitaram esta entrevista.

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