Por Flávia Paiva
A Noite das Taras é um filme brasileiro de 1980, dirigido por David Cardoso, John Doo e Ody Fraga. A produção é composta por segmentos independentes, com um tom erótico, que exploram temas de desejo, moralidade e fantasia sexual. Como parte da fase das “pornochanchadas”, um subgênero popular no cinema brasileiro da época, o filme aborda tabus e comportamentos sociais, muitas vezes com humor e uma abordagem provocativa.
No episódio inicial, A Carta de Érico, um marinheiro chega em São Paulo para entregar uma carta a uma mulher. Ela vive em um amplo e luxuoso apartamento, mas está isolada e prestes a se suicidar no banheiro. O marinheiro afirma que a carta foi enviada por um homem chamado Érico. Ele tenta convencê-la a receber a carta, apesar de ela garantir que não conhece ninguém com esse nome. Após certa resistência, ela o convida para entrar, e os dois iniciam uma conversa carregada de tensões emocionais. Contudo, em meio ao diálogo, a mulher retorna ao banheiro com a intenção de tirar a própria vida novamente.
Nesse momento, o marinheiro, tomado por uma sensação de urgência, recorda-se de sua breve interação com Érico e decide intervir, invadindo o banheiro e descartando a lâmina que ela planejava usar. Esse gesto, marcado por uma mistura de desespero e compaixão, resulta nos dois tendo relações sexuais. No desfecho do episódio, a mulher finalmente decide abrir a carta que o marinheiro havia entregado. Para sua surpresa, o papel está completamente em branco, sem nenhuma mensagem escrita. É nesse momento que ela compreende que Érico, na verdade, planejou toda a situação apenas para que o marinheiro fosse até sua casa e a impedisse de tirar a própria vida. Por fim, o marinheiro decide permanecer ao lado da mulher, marcando o início de um novo capítulo para ambos, repleto de possibilidades e esperança.
A trama seguinte, Peixe Fora d’Água, é dirigida por David Cardoso e se destaca pelo tom divertido. Nesta história, após ser brutalmente espancado em um bar, o marinheiro é abordado por uma mulher misteriosa chamada Susana, que lhe oferece carona até um hotel. Durante o trajeto, ela demonstra um interesse sedutor, deixando claro que sua intenção é passar a noite com ele. Contudo, ao chegar ao local, após dormirem juntos, a situação toma um rumo inesperado: Susana revela ser a líder de uma gangue. O marinheiro se vê envolvido em uma trama perigosa, na qual os membros da gangue tentam persuadi-lo a participar de um assalto. Após armarem um plano cruel, eles o matam friamente, deixando pistas que o incriminam pelo assalto que haviam cometido. Assim, o marinheiro se torna um bode expiatório para encobrir os crimes da gangue, encerrando o episódio.
Finalmente, Júlio e o Paraíso, sob a direção de Ody Fraga, a história acompanha um grupo de garotas que, enfrentando dificuldades financeiras e prestes a serem despejadas, traçam um plano para atrair um marinheiro. Seduzindo-o, elas o convencem a levá-las para um rodízio, onde aproveitam sua generosidade enquanto ele compartilha histórias cativantes de suas aventuras. Encantado pela companhia, o marinheiro aceita o convite para ir até a casa delas, onde a sedução aumenta de intensidade.
No entanto, em uma conversa privada, as garotas revelam o verdadeiro motivo de sua aproximação: a necessidade desesperada de dinheiro para evitar o despejo. Movidas pela pressão de sua situação, elas decidem dormir com ele até matá-lo por exaustão. As jovens matam o marinheiro, roubam seu dinheiro e deixam a cena.
A pornochanchada foi um dos gêneros mais populares do cinema brasileiro entre as décadas de 1970 e início dos anos 1980, caracterizado pela mistura de comédia, erotismo e sátira social. Esse termo se refere a uma combinação entre o humor da “chanchada” – comédias leves que já faziam parte do cinema nacional desde os anos 1950 – e o conteúdo sexual sugestivo, que ganhou destaque em um período de crescente permissividade moral e exploração de temas tabus no Brasil. A pornochanchada floresceu durante um momento político conturbado no país, no auge da ditadura militar (1964-1985). Apesar do regime autoritário, que controlava e censurava a imprensa e outros meios de comunicação, o cinema conseguiu espaço para produzir filmes com um tom mais ousado, focados em temas sexuais e comportamentos que escapavam das normas tradicionais. A indústria cinematográfica da época, que enfrentava desafios de financiamento e distribuição, encontrou na pornochanchada um meio lucrativo e de fácil apelo ao público, sendo exibida principalmente em cinemas de rua e periferias das grandes cidades.
Durante os Anos de Chumbo da ditadura militar no Brasil, quando vigorou o AI-5 (1968-1978), a censura foi uma das ferramentas mais poderosas utilizadas pelo regime para controlar a produção cultural e garantir que os conteúdos veiculados estivessem de acordo com sua ideologia autoritária. O cinema, assim como outros meios de comunicação, foi fortemente vigiado e censurado, afetando tanto filmes considerados subversivos politicamente quanto obras que abordavam temas morais e sexuais.
A censura no período da ditadura atingiu praticamente todas as formas de expressão artística: música, teatro, literatura e, claro, o cinema. O AI-5 marcou o auge da repressão, suspendendo direitos civis e impondo um controle mais severo sobre as manifestações culturais. O governo militar criou diversos órgãos encarregados de supervisionar e censurar qualquer produção considerada ofensiva ou perigosa aos valores da ditadura.
No cinema, os censores estavam particularmente atentos a filmes que criticassem o governo, que promovessem ideologias comunistas, socialistas ou progressistas, ou que pudessem ser interpretados como questionamentos ao regime militar eram frequentemente banidos, mutilados ou proibidos. Além de filmes com conteúdo sexual explícito, insinuações ou críticas à moral e aos bons costumes da época eram igualmente visados. Embora o período tenha visto um aumento das produções eróticas, essas obras precisavam seguir uma linha mais suave, sem jamais ultrapassar os limites impostos pelo regime.
O controle era exercido por meio da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), que revisava os roteiros antes das filmagens e os filmes finalizados antes de sua distribuição e exibição. Além disso, muitos cineastas eram perseguidos, presos ou exilados, como Glauber Rocha, porta-voz do Cinema Novo e assim sendo uma das vozes mais críticas da ditadura.
Os filmes de pornochanchada eram de baixo orçamento e tinham roteiros simples, muitas vezes baseados em mal-entendidos, situações cômicas e relações amorosas. Embora o erotismo fosse central, as cenas de nudez e insinuações sexuais não eram explícitas, permanecendo mais no terreno da sugestão e da provocação do que da pornografia propriamente dita. O gênero explorava as fantasias e desejos reprimidos da sociedade, satirizando figuras da classe média, padrões de comportamento moral e a hipocrisia sexual da época. Além disso, a pornochanchada era conhecida por retratar as relações de poder entre homens e mulheres de forma caricatural, o que muitas vezes reforçava estereótipos de gênero.
As pornochanchadas alcançaram um sucesso comercial considerável, especialmente em um momento em que o cinema brasileiro enfrentava dificuldades com grandes produções. Esses filmes se destacaram principalmente em cinemas de bairro e nas periferias, onde a demanda por entretenimento acessível e descomplicado era grande. Em muitas localidades, esses filmes foram responsáveis por manter as salas de cinema em funcionamento, já que o público lotava as sessões para ver o que havia de mais “ousado” no cinema nacional.
Os exibidores de cinema também favoreciam as pornochanchadas, pois sabiam que esses filmes garantiriam boa bilheteria, independentemente da qualidade artística ou técnica. O ciclo de filmes eróticos se sustentou por essa aliança entre produtores e exibidores, criando uma espécie de indústria paralela ao cinema oficial, mais voltado para festivais e financiamento estatal.
O ciclo de filmes eróticos que emergiu no Brasil durante as décadas de 1970 e 1980 se inseriu profundamente na lógica do mercado cinematográfico da época, particularmente na Boca do Lixo, uma região central de São Paulo que se tornou o principal polo de produção de cinema popular no Brasil. A Boca do Lixo, localizada no bairro da Luz, desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento de filmes de baixo orçamento, especialmente as chamadas pornochanchadas.
A Boca do Lixo era o centro nervoso dessa produção em massa. Com pouca infraestrutura e sem o glamour dos grandes estúdios, a região era marcada por pequenas produtoras que faziam cinema sob a lógica da economia de mercado. Muitas dessas produtoras focavam na quantidade e rapidez das filmagens, com roteiros que podiam ser reciclados, atores que circulavam de um projeto para outro, e diretores que acumulavam funções para economizar custos.
A produção na Boca do Lixo seguiu um modelo industrial no qual o objetivo principal era atender à demanda do mercado, e não necessariamente criar filmes que fossem respeitados pela crítica ou premiados internacionalmente. A produção de filmes eróticos, especialmente as pornochanchadas, foi uma resposta direta à pressão comercial de produzir conteúdo de baixo custo com alto retorno.
Muitos cineastas que trabalharam na Boca do Lixo, como David Cardoso, Ody Fraga e Jean Garrett, compreenderam perfeitamente essa lógica e passaram a dominar esse ciclo de filmes. Com orçamentos baixos e equipes reduzidas, eles conseguiam finalizar filmes em poucas semanas, mantendo um fluxo constante de lançamentos. A distribuição desses filmes era facilitada pela própria localização da Boca do Lixo, próxima às estações de trem e ônibus, o que facilitava o envio das cópias para cinemas de outras cidades e estados.
Apesar de seu sucesso popular, a pornochanchada enfrentava resistência da crítica e de setores mais conservadores da sociedade, que a viam como uma forma de degradação do cinema brasileiro. Muitos intelectuais e cineastas do Cinema Novo, movimento que buscava um cinema autoral e de crítica social profunda, menosprezavam a Boca do Lixo e seus produtos, considerando-os excessivamente comerciais e desprovidos de valor artístico.
No entanto, a resiliência comercial desse ciclo provou sua importância para a economia do cinema nacional. Ao preencher o vácuo deixado pelas grandes produções, os filmes eróticos geraram receita, mantiveram empregos no setor e revelaram novos talentos da atuação e da direção. A Boca do Lixo se consolidou como um centro de produção independente, adaptando-se às condições de mercado e provando que o cinema brasileiro poderia sobreviver mesmo sem grandes orçamentos ou apoio estatal. Apesar da repressão e do controle rigoroso, o regime militar também reconheceu a importância do cinema como uma ferramenta de propaganda e de construção da imagem nacional.
Foi nesse contexto que, em 1969, o governo criou a Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes), estatal responsável por apoiar, produzir, financiar e distribuir filmes brasileiros. A Embrafilme tinha como objetivo inicial fortalecer a indústria cinematográfica nacional, que sofria com a concorrência de filmes estrangeiros, principalmente de Hollywood. O governo militar, interessado em usar o cinema como meio de construir uma identidade nacional e promover uma imagem positiva do Brasil no exterior, percebeu a necessidade de organizar e incentivar o setor.
Embora a Embrafilme tenha sido criada com o objetivo de impulsionar o cinema brasileiro, seu papel foi ambivalente. Por um lado, forneceu apoio financeiro e estrutural a muitos cineastas, promovendo a produção de filmes que de outra forma não seriam possíveis. Isso permitiu a sobrevivência da indústria cinematográfica nacional, garantindo a produção de filmes de alta qualidade técnica e artística, especialmente nos anos 1970 e início dos anos 1980.
No entanto, a Embrafilme operava sob a vigilância do governo militar, o que significava que suas políticas de financiamento também estavam alinhadas com os interesses do regime. A estatal financiava filmes que não fossem considerados subversivos ou que pudessem ser vistos como uma ameaça à ordem pública e à moralidade. Obras com críticas explícitas ao governo ou que promoviam ideais progressistas eram, muitas vezes, excluídas dos apoios financeiros, obrigando cineastas a buscar formas alternativas de financiamento ou a abandonar projetos.
A burocracia estatal também era um obstáculo para muitos cineastas, que tinham que passar por processos rígidos e demorados para conseguir aprovação para suas obras. Além disso, a distribuição dos filmes financiados pela Embrafilme estava igualmente sujeita ao controle governamental. Filmes que contrariavam os interesses do regime eram bloqueados ou tinham sua distribuição limitada.
Ao longo dos anos 1970, a Embrafilme ajudou a consolidar a carreira de diversos cineastas e a produzir uma variedade de filmes importantes para o cinema brasileiro. Entre as produções de destaque que receberam financiamento da estatal estão filmes de cineastas oriundos do Cinema Novo, bem como dramas e comédias que abordavam temas mais leves, como as pornochanchadas, que, apesar de seu conteúdo erótico, frequentemente escapavam de uma censura mais severa por não apresentarem críticas diretas ao regime.
Em paralelo, filmes de diretores politicamente engajados, como Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra e Cacá Diegues, também conseguiram financiamento, embora com frequência tivessem que lidar com a censura para evitar maiores complicações com o governo. A criação da Embrafilme ajudou a profissionalizar o cinema brasileiro, possibilitando que muitos filmes fossem produzidos em condições técnicas melhores, com maior acesso a recursos financeiros e distribuição mais ampla. No entanto, a dualidade entre financiamento e controle impedia que o cinema se desenvolvesse plenamente como uma arte livre e independente.
Ao mesmo tempo, a censura inibia a expressão criativa e mantinha muitos cineastas sob constante vigilância, forçando-os a adotar estratégias sutis para driblar o controle do regime. Isso resultou em uma produção cinematográfica paradoxal: filmes com uma produção de alta qualidade, mas que, muitas vezes, careciam de liberdade para abordar questões políticas e sociais de forma aberta e direta.
Com o tempo, o sucesso das pornochanchadas começou a diminuir, especialmente com a chegada do cinema pornográfico explícito, que passou a atrair parte do público interessado em erotismo. Além disso, a televisão tornou-se um concorrente forte, oferecendo entretenimento mais acessível e variado para o público. Nos anos 1980, a Boca do Lixo perdeu sua força como polo cinematográfico, mas seu impacto no cinema popular brasileiro continuou.
Nos anos 1980, com a gradual abertura política e a transição para a Nova República, a Embrafilme começou a perder seu protagonismo. A empresa enfrentou problemas financeiros e acusações de má gestão, além de uma mudança no panorama cultural e econômico do Brasil. A estatal foi extinta em 1990, no governo Collor, junto com outras políticas de apoio à cultura, o que resultou em uma crise no cinema nacional na década seguinte.
A censura durante os Anos de Chumbo e a criação da Embrafilme refletem a tensão entre repressão e fomento à cultura durante a ditadura militar no Brasil. Enquanto o governo utilizava a censura para controlar o conteúdo ideológico das obras, a Embrafilme servia como um instrumento de promoção do cinema brasileiro, mas sempre sob as limitações impostas pelo regime. O legado da Embrafilme é ambivalente, deixando tanto o impacto positivo de ter impulsionado a indústria cinematográfica nacional quanto as marcas da censura e da repressão cultural da época.
O ciclo de filmes eróticos da Boca do Lixo pode ser visto como uma resposta pragmática à lógica de mercado em um momento de restrições econômicas e sociais. Embora muitas vezes subestimado pela crítica, ele representou um capítulo importante da história do cinema brasileiro, tanto pela sua capacidade de gerar lucro quanto por sua influência cultural. Esse período demonstrou que o cinema nacional, mesmo sem grandes recursos, conseguia se adaptar e sobreviver, muitas vezes desafiando as expectativas e as convenções do próprio mercado.
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Texto concebido inicialmente como requisito em atividade da disciplina Cinema Brasileiro do curso de Cinema da FAAP. Indicação da publicação, Prof. Humberto Silva.
Biografia
Flávia Paiva é estudante de Cinema, atualmente no sétimo semestre na FAAP. Nascida em Salvador, BA, mora em São Paulo há três anos e atua como estagiária na equipe de conteúdo da rádio Alpha FM.
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