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Serguei Eisenstein – Montagem Soviética, Vanguarda e Engajamento Político

Por Beatriz Panico

Um pouco da história

 A Revolução Russa foi um dos acontecimentos mais marcantes e determinantes do século XX. Para os historiadores, entre as causas da revolução está a insatisfação da população russa com as medidas do regime czarista, mas cujos eventos repercutiram muito além do fim da dinastia, apresentando seu legado em muitos acontecimentos históricos posteriores e consequentemente levando a formação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a URSS.

 No início do século XX, apesar de ser um grande e poderoso império com uma elite aristocrática que havia assimilado o esplendor da aristocracia francesa no antigo regime, a Rússia era uma nação atrasada economicamente em relação a outros impérios que equilibravam o jogo do poder antes da Primeira Grande Guerra. A revolução industrial praticamente não havia chegado à Rússia, que se mantinha dependente do sistema feudal. Ou seja, sua economia era quase que totalmente dependente do meio agrário, que alimentava o esplendor aristocrático. 

 Esse estado de coisas devia-se ao poder da dinastia Romanov, portanto do regime czarista. Uma vez que este se estabeleceu como um modo de poder baseado na autoridade do czar, sustentado por uma elite aristocrática, e no servilismo da população diante da figura do czar. Isso em razão do uso da força e da ação arbitrária da casa reinante russa. De modo que, além da amplitude ilimitada do poder do Estado, o regime czarista também se baseava na ostentação de riquezas da classe aristocrática, que vivia de privilégios, em contraste com a pobreza profunda da enorme população camponesa russa.

 As primeiras revoltas que marcaram o início da Revolução Russa ocorreram em 1905, em resposta à derrota russa na guerra travada contra o Japão (1904-1905) devido à disputa territorial pelas regiões da Manchúria, no nordeste da China, e da Coreia. A guerra gerou uma insatisfação geral na população por conta da violência, da incompetência das forças militares e, principalmente, por conta do alistamento obrigatório, além das pautas já em questão levando em conta o regime autoritário czarista. Tais tópicos levaram à organização de um protesto pacífico em 1905 que ficou marcado para a história como “domingo sangrento”, após receber uma extrema repressão que levou ao massacre da população em São Petersburgo. 

 A ocorrência do “domingo sangrento” levou a uma série de revoltas populares, motivadas pelo choque populacional diante da violência do Estado, que obrigaram o czar Nicolau II a adotar reformas para acalmar a população. Dessa forma, foram estabelecidas medidas para garantir uma abertura política maior com o estabelecimento de uma monarquia constitucional.

 Com a ocorrência da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a participação da Rússia no conflito, porém, pautas trazidas anteriormente com a guerra do Japão ressurgem devido ao despreparo das forças militares russas para enfrentar o exército alemão. Nesse cenário, a imprensa russa, controlada pelo Estado, passa a divulgar imagens e notícias para convencer a população da falsa vantagem na guerra, quando na realidade, suas tropas estavam sendo massacradas. 

 Apesar das tentativas do governo de manter o controle diante dessa situação, os soldados russos passam a deserdar os campos de batalha e na própria Rússia em fevereiro de 1917 a população, descontente com a situação, convoca uma Greve Geral. Os episódios deste conturbado mês de fevereiro levam à paralisação de São Petersburgo e a evolução dos acontecimentos eventualmente acarreta na prisão a domicílio da família Romanov, marco que pôs fim ao regime czarista.

 Após os eventos da Greve Geral, a Revolução de Fevereiro leva ao poder um governo republicano provisório de mencheviques, reformistas. Alexander Kerensky é colocado na posição de liderança, decidindo, porém, manter a Rússia na Guerra. Com a ineficiência do regime para conduzir a guerra, muitos soldados que desertaram do front de batalha voltarão à Rússia armados. Liderados, então, por Vladimir Lênin, um teórico e revolucionário comunista que havia retornado do exílio, tem início o processo revolucionário que levará os bolcheviques ao poder naquela que ficou conhecida como a Revolução de Outubro.

 A Revolução de Outubro, portanto, vai ser orquestrada pelo grupo de revolucionários bolcheviques, que derrubam o governo provisório de Kerensky fazendo com que este busque abrigo na França. Após meses em prisão domiciliar, a família Romanov também sofre com a reação bolchevique, tendo todos seus membros fuzilados por líderes do movimento. Assim sendo, Lênin finalmente ascende ao posto de secretário geral e se torna o rosto da revolução.

 Já no poder, Lênin assinou o Tratado de Brest-Litovsk com as chamadas Potências Centrais (Alemanha, Áustria-Hungria, Bulgária e Império Otomano) e assim retirou a Rússia do conflito da Primeira Guerra Mundial. A tomada do poder pelos bolcheviques gerou na sequência um movimento contrarrevolucionário, o que levou a Rússia a uma guerra civil. A guerra civil russa após a Revolução de Outubro pôs de um lado o exército vermelho, conduzido pelos bolcheviques e organizado pelo revolucionário Leon Trotsky, e de outro o exército branco, conduzido pelos mencheviques, militares do antigo exército czarista favoráveis ao retorno da monarquia e o apoio dos países capitalistas, que buscavam conter a onda comunista por medo desta ideologia estimular impulsos revolucionários e se expandir além da Rússia.

 A Guerra Civil durou mais de cinco anos e terminou em 1922 com a vitória dos bolcheviques. Entre as razões para a vitória dos revolucionários bolcheviques estão: esgotamento das forças do exército branco em decorrência da falta de apoio dos países capitalistas, que haviam acabado de sair da Primeira Guerra; a expansão de ideais bolcheviques revolucionários para regiões nas fronteiras da Rússia, o que serve como estratégia para a formação da URSS, fundada pouco após o fim do conflito interno. Tendo, então, a figura de Lênin na liderança, junto com a Rússia, outras quatorze repúblicas formaram a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

 Portanto, para pensar o cinema soviético, é necessário primeiro considerar o cenário conturbado e conflituoso em que a nação se encontrava após uma série de disputas, mudanças sociais e políticas, uma vez que toda forma de expressão artística é diretamente afetada pelo momento histórico em que se insere.

O cinema soviético como instrumento de propaganda política

 Antes mesmo das revoluções de 1917, da Guerra Civil e da formação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o cinema russo já havia se estabelecido como um dos mais antigos e importantes da Europa. A filmagem pelos Irmãos Lumières da coroação do Czar Nicolau II em 1896 é um marco. Mas não ficou nisso, pois efetivamente o governo czarista estimulou a produção cinematográfica, de modo que o cinema russo se tornasse bastante produtivo e revelasse importantes cineastas com grande apelo popular antes da mudança de regime, muitos dos quais trabalhavam com adaptações de obras da rica literatura russa. Yakov Protazanov, por exemplo, foi um cineasta russo responsável pela produção de diversos longas, entre eles, Rainha de Espadas, uma adaptação cinematográfica de um conto de Aleksandr Pushkin, lançado em 1916.

 Dessa forma, o processo revolucionário não apenas quebrou com um regime político, mas também com o meio cinematográfico já consolidado. Com a formação da URSS após a guerra civil, o cinema passou a ser utilizado como recurso para divulgar propagandas ideológicas. Nisso não havia propriamente novidade, pois o cinema na Alemanha foi utilizado na Primeira Guerra como instrumento de propaganda com a criação da UFA (Universum Film AktienGesellschaft), que na década de 1920 seria o mais poderoso estúdio de cinema na Europa. Assim, embora os laços entre o cinema e o estado russo já existissem desde o czarismo, servindo para divulgar imagens que favorecessem sua permanência, com os bolcheviques no poder, o cinema foi de fato utilizado como um importante instrumento de propaganda da revolução.

 “O cinema é, para nós, a mais importante das artes”, citação atribuída a Vladimir Lênin em 1922 e divulgada no jornal Pravda pelo Comissariado do Povo e da Educação (Narkompros), evidencia a compreensão que o líder apresentava sobre o potencial de doutrinação ideológica do cinema. Dessa forma, a sétima arte não representou apenas uma forma de arte ou entretenimento, mas também uma poderosa ferramenta política.

 A atribuição desse papel ao cinema garantiu a mobilização de grandes investimentos do governo para produzir filmes e, ainda mais importante, formar novas gerações de cineastas em instituições de ensino. A fundação da VGIK, a Escola de Cinema do Estado Soviético e a mais antiga escola de cinema do mundo, foi essencial para concretizar tal objetivo, funcionando, na época, como centro aglutinador e estimulador de debates e servindo como “laboratório” de preparação que revelou muitas figuras importantes para o cinema soviético.

  Além da VGIK houve o surgimento de muitos órgãos, empresas e instituições atuando nas mais diversas áreas para garantir a popularização e incentivo à arte nesses primeiros anos de regime comunista, quando a revolução política deu as mãos à revolução na cultura. Em 1922, a produtora Goskino ou Comitê Estadual de Cinematografia foi fundada, servindo como órgão central do estado para a produção de filmes soviéticos, e revistas como LEF e Kino-Fot se tornaram extremamente populares propondo discussões sobre cinema e artes no geral.

 Devido ao teor político, os filmes desse período refletem sobre histórias coletivas, sobre as massas, sobre a construção de uma nova sociedade sob a bandeira do comunismo. O cinema russo revolucionário, portanto, não dará protagonismo ao indivíduo, a um herói anônimo como no cinema norte-americano. A partir dos pressupostos do movimento artístico Construtivismo Russo, os cineastas vão se orientar para uma aproximação entre situações vividas pelo povo e o cinema. A expressão do que é coletivo é o elemento central nos filmes realizados nos primeiros anos após a revolução, enquanto o singular é visto como contra revolucionário e burguês. Os representantes dessa forma de cinema buscavam eliminar caprichos burgueses da arte e retratar o povo como sustentáculo das transformações sociais. Dentre diversos cineastas, Dziga Vertov se destaca como um dos maiores defensores da capacidade do cinema de retratar a realidade.

 Considerado um dos precursores do Documentário, Vertov advogava pelo registro de cenas não-ficcionais e se tornou uma das figuras principais do início do cinema soviético. Ele rejeitava simbolismos e montagens que considerava artificiais e buscava retratar a realidade da forma mais crua possível. Vertov afirmava que o cinema deveria cumprir o papel de contar a verdade, correspondendo ao “Kino Pravda”, ou Cinema Verdade. Ao contrário de outros cineastas, fazia um cinema não encenado, mais espontâneo, muitas vezes filmando pessoas que não sabiam que estavam sendo objetos em um filme. Suas obras mais famosas como Cinema Olho (1924) e Um Homem com uma Câmera (1928) são consideradas referências até os dias atuais.

 Assim, Dziga Vertov e outros cineastas que se alinhavam aos propósitos de um cinema mais semelhante aos atuais documentários, procuravam evitar a todo custo recursos que consideravam artificiais em seus filmes. Entretanto, quando se trata do grupo de cineastas daquele período, nomes representativos como Esther Shub, Lev Kuleshov, Vsevolod Pudovkin e Serguei Eisenstein, tinham como característica que os unia e que se consolidou como um dos principais elementos estéticos que definem o cinema soviético, a experimentação com a montagem.

A montagem soviética

 Muitas das teorias formuladas pelos cineastas soviéticos se firmaram como suportes para a montagem do cinema desde então. Para estes, a verdadeira força de um filme reside mais na montagem dos planos do que em seu conteúdo. Ou, melhor, o conteúdo é determinado pela montagem, pois o mesmo conteúdo com outra montagem daria um sentido diferente ao filme. Dessa forma, a simples apresentação de uma sequência de imagens pode produzir ideias complexas na cabeça do espectador, dando sentido ao que está sendo assistido.

 Esther Shub, começou inicialmente como auxiliar de Vertov, depois, envolvida com nos debates sobre montagem, realizou A queda da dinastia Romanov (1927). Nessa obra, ela compila imagens de arquivo sobre o cotidiano aristocrático na época do czarismo e aplica princípios de montagem. Vsevolod Pudovkin igualmente envolvido nos debates sobre a montagem realizou A Mãe (1926) e O Fim de São Petersburgo (1927). Nessas obras pode-se observar o modo peculiar com que concebeu os princípios da montagem. Tanto Shub quanto Pudovkin foram diretamente afetados pelas proposições teóricas Lev Kuleshov, que se destaca entre os teóricos por ter formulado o chamado “Efeito Kuleshov”.

Ivan Mozzhujin é o ator visto no experimento conhecido como Efeito Kuleshov. Domínio público.

 O experimento feito por Lev Kuleshov determina a importância da montagem na manipulação das emoções e nas possíveis interpretações que o espectador possa fazer quando se tem um encadeamento de imagens orientado pelo princípio da montagem. Ele apresentou uma sequência com a mesma imagem do rosto de um ator, que não tem qualquer expressividade, intercaladas com imagens que tinham significado para o espectador. Assim, contrapostas ao rosto do ator, foram usadas as imagens de um prato de sopa, seguida pela de uma criança dentro de um caixão e, em seguida, a de uma mulher em um sofá. 

 A impressão do espectador é a de que o rosto, exibido entre as apresentações dessas três imagens, têm expressões diferentes a cada momento, representando emoções diferentes a partir delas. Após a sopa, o rosto demonstraria fome, assim como após a criança morta ele expressaria alguma forma de luto e, após a imagem da mulher, desejo ou luxúria. Na verdade, a imagem do rosto é a mesma e tais percepções se devem à interpretação da cena apresentada pela atribuição de um sentido através da montagem. 

 A conclusão de Kuleshov a partir do experimento foi, portanto, que a edição é tão ou mais importante para a construção do sentido nos filmes quanto o papel desempenhado pelo ator. A edição sugere diferentes sentimentos e ideias para quem assiste a um material. O posicionamento dos planos induz e manipula o espectador a ter diferentes interpretações sobre uma mesma expressão.

A montagem de Serguei Eisenstein e a sequência da escadaria de Odessa em O encouraçado Potemkin

 Apesar de outros grandes cineastas da época apresentarem enormes contribuições para a sétima arte, Serguei Eisenstein é considerado o mais importante cineasta soviético da década de 1920 atrelado aos movimentos artísticos da vanguarda russa. Isso porque além de cineasta ele foi também teórico e, muito influenciado por Kuleshov, sendo o mais ousado e inovador entre os que fizeram usos revolucionários das teorizações e debates em torno da montagem.

 Ao contrário de Dziga Vertov e outros cineastas que valorizavam o realismo acima de tudo em seus filmes, Eisenstein apreciava a capacidade de ilusão do cinema, apresentando influência do cinema de atrações de George Meliès. Desse modo, por mais que os temas retratados em seus filmes correspondessem aos dos outros cineastas da época, se utilizando da população, da revolução e de temáticas políticas no geral como matéria prima, seu método e propósitos eram diferentes. Ao invés de buscar montar cenas “verdadeiras” não encenadas como fizeram Vertov e Shub, Eisenstein fez um cinema encenado, utilizando-se da ficção, de atores e do falseamento de uma situação. A se levar em conta a esse respeito, que muito mais outros cineastas de sua geração, Eisenstein teve seus primeiros trabalhos no teatro, onde foi fortemente marcado pelas cenografias arrojadas e vanguardistas de Vsevolod Meyerhold.

 Serguei Eisenstein passa do teatro para o cinema através da escrita de artigos teóricos em revistas como LEF e Kino-Fot sobre a montagem de atrações, no mesmo período em que lança seu filme, A Greve em 1925, defendendo a capacidade encenada do cinema. Em seu texto, Eisenstein retoma a ideia de cinema de George Mèlies, juntamente com o elemento do espetáculo e da magia. Porém, sua tese foi contestada por Dziga Vertov. Devido às suas visões extremamente diferentes sobre o papel da montagem no cinema, Eisenstein e Vertov vão se acirrar, um defendendo a capacidade ficcional do cinema em oposição à realidade retratada na tela.

 A montagem de atrações surge a partir de uma necessidade de manter a atenção do espectador nas imagens, não devido à sua veracidade, mas devido ao seu impacto. Essa técnica apresenta a mesma lógica de uma montanha-russa, uma jornada em que o público sabe que o que está experienciando é seguro, mas que é capaz de causar sensações reais e diversas apesar disso. O cinema seria da mesma forma. O espectador sabe que tudo que está sendo exibido é falso e encenado, mas ainda sim apresenta uma jornada de emoções. A tese de Eisenstein defende, portanto, que o cinema ficcional pode ser até mais verdadeiro do que uma obra em formato documental, uma vez que gera emoções reais no espectador a partir de situações falsas.

 A montagem intelectual representa uma das teorias mais populares e estudadas de Eisenstein, que consiste na justaposição de imagens para criar um sentido lógico a partir da associação entre planos que, separadamente, não fariam sentido algum. Esse tipo de montagem não busca representar as coisas como de fato são, mas sim as relações que estas apresentam com a sociedade, através da aproximação de imagens para comunicar um ponto de vista, sentimento ou ideologia. 

 Tal método, portanto, consiste em reconstruir a realidade intelectualmente, dependendo de uma análise profunda do espectador para não apenas ver e sim compreender o que está sendo exibido. Dessa forma, a montagem pode se tornar responsável por estabelecer relações de lugar, tempo, causa e consequência, ou seja, conceitos e metáforas por meio de imagens paralelas. A formação de uma sequência entre dois planos que aparentemente não apresentam nada em comum, por exemplo, funciona para gerar um choque no espectador.

 Assim, as contribuições de Serguei Eisenstein para a compreensão dos usos da montagem, tanto na teoria quanto na prática, foram inovadoras a ponto de continuarem a ser estudadas e aplicadas no cinema atual. Em seus filmes, a codificação da linguagem da montagem é exemplificada com maestria. Em A Greve, por exemplo, uma obra que aborda a luta dos trabalhadores russos por direitos antes da ocorrência da revolução, Eisenstein se utiliza de metáforas visuais para, por meio da montagem, construir sua crítica às relações de classes. A sequência formada no momento final do longa exibe uma cena de abate de um porco, seguido pelo assassinato em massa de trabalhadores. Ao exibir tais situações em sequência e separadas no espaço e no tempo, o espectador é incitado a refletir sobre o modo como a classe no poder numa sociedade burguesa age em relação à classe trabalhadora.

 Um dos exemplos mais famosos para exibir a aplicação da montagem intelectual de Eisenstein em um de seus filmes é, sem dúvida, a montagem na sequência da escadaria de Odessa em O Encouraçado Potemkin. A obra lançada em 1925 trata de um levante de marinheiros, durante o período anterior à revolução, mais precisamente em 1905. A sequência exibe soldados czaristas investindo e massacrando uma manifestação da população que apoia o levante dos marinheiros no encouraçado.

 Como no teatro, o Encouraçado Potemkin é separado em Atos. A sequência da escadaria, que compõe o quarto Ato, se inicia com os marinheiros rebeldes sendo festejados alegremente pela população da cidade, que os congratula e evidentemente apoia a rebelião contra o regime czarista. A sequência inicial faz uso da montagem alternada com um ritmo que se acelera à medida que a tensão atinge o clímax. A sequência tem então como ponto de partida a justaposição entre as navegações e os rostos de diversos cidadãos sorridentes no meio da multidão. Esse procedimento permite que os espectadores se familiarizem com as figuras exibidas, sendo assim um recurso para aflorar a humanidade e empatia do público, para que este se conecte com os sentimentos dos personagens muito além da tela.

 Entretanto, tal sensação de esperança construída nos primeiros minutos da sequência logo é interrompida por um corte abrupto que exibe o rosto de uma mulher gritando como se estivesse em dor. A música, antes épica e otimista representando a possibilidade de um futuro melhor, é substituída por uma trilha tensa e desesperadora. Os rostos que antes haviam sido exibidos com o objetivo de fazer o espectador se apegar à população, se diluem no movimento desordenado de uma massa desesperada que corre escada abaixo, fugindo dos soldados czaristas que a persegue devido ao apoio que estavam dando aos revoltosos.

 As cenas com a multidão correndo são alternadas com cenas de indivíduos específicos, alguns que já haviam sido exibidos anteriormente, correndo ou mesmo caindo mortos no chão. Em um primeiro momento, a intenção de Eisenstein foi justamente provocar a humanidade dos espectadores. Agora ele busca exibir a falta de humanidade da situação, instigando o público a se indignar diante dos eventos e exigindo ainda mais de sua empatia.

 Raramente a multidão se encontra presente no mesmo enquadramento que os soldados czaristas, dessa forma, criando mais uma forma de oposição visual entre os dois grupos. Nos momentos em que estes são retratados juntamente, porém, a câmera é posicionada atrás dos soldados que perseguem os civis indefesos, como se estes estivessem expulsando-os do plano, contribuindo para o sentido da cena.

 Em um dos momentos mais tocantes da sequência, uma mãe e seu filho, que já haviam sido exibidos acenando para os marinheiros, são retratados descendo as escadas quando o menino de repente é atingido por um tiro. Em um primeiro momento, a mãe não percebe que ele ficou para trás, mas então escuta seus gritos e se depara com o garoto deitado na escadaria sendo pisoteado. A cena provoca extrema angústia, alternando entre momentos da multidão desesperada correndo e pisando no filho, e o rosto horrorizado da mulher. 

 Quando a mãe finalmente consegue alcançá-lo, ela pega o corpo morto da criança e caminha em direção aos soldados, percorrendo degraus cheios de corpos. Ao se encontrar cara a cara com as tropas, ela pede para eles não atirarem. Nesse instante, o plano exibe a mãe clamando por misericórdia enquanto apenas as sombras dos soldados preenchem o espaço. Vários civis também pedem para que não atirem, no entanto, após um momento de hesitação, os militares o fazem mesmo assim e a mãe cai para trás com o garoto em seus braços. Os rostos dos soldados não são exibidos em nenhum momento e sim suas sombras, silhuetas ou apenas suas armas, como se desumanizando-os devido à sua crueldade. 

 Outro momento extremamente conhecido ocorre quando outra mãe, carregando um carrinho com um bebê dentro, se encontra sem ter para onde ir, devido às complicações do transporte do carrinho. Ela protege o bebê com seu corpo e também encara os soldados desesperada e pedindo por clemência, mas é atingida. Ferida mortalmente, a mãe se dobra em dor e solta o carrinho que passa a cair escada abaixo.

 O carrinho segue desenfreado e as imagens do bebê chorando indefeso são alternadas pelos rostos horrorizados dos civis que observam a cena, a caminhada dos soldados e as massas ainda correndo. Desse modo, a sequência contribui para a construção da tensão e desespero dos espectadores. Através da montagem, Eisenstein é capaz de manipular os sentimentos do público.

 No final da cena, uma das mulheres que observa o bebê recebe um tiro no olho, a cegando parcialmente, mas deixando o suficiente de sua visão para esta observar o fim da criança que, ao finalmente cair do carrinho, é atingida pela espada de um dos soldados. Assim, a mulher presencia a crueldade máxima antes de morrer. Esse último momento antes da sequência acabar exibe o único plano em que o rosto de um dos soldados é visto, revelando uma expressão quase monstruosa devido ao ódio e violência.

 “O encouraçado Potemkin” segue sendo uma das obras mais importantes na história do cinema, além de uma das mais chocantes devido à sua violência para os padrões da época. A sequência da escadaria de Odessa, exatamente devido ao seu impacto, marcou a carreira de Eisenstein exemplificando perfeitamente sua teoria sobre o poder da montagem na construção de sentimentos e associações por parte do espectador, além de comprovar sua tese de que situações encenadas no cinema podem ser encaradas até como mais verdadeiras que cenas autênticas, uma vez que são capazes de comover o público.

Conclusão

 Desde o Cinema Novo no Brasil até o surgimento dos chamados “docuficções”, os elementos estéticos característicos do cinema soviético se fazem presentes em diversas correntes cinematográficas, com a construção de narrativas exibindo preocupações sociais ou usos diferenciados para a montagem. 

 As obras de grandes figuras como Serguei Eisenstein, Lev Kuleshov e Dziga Vertov ocupam posições de referência na história do cinema mundial. Esses grandes diretores e teóricos do cinema influenciaram diversos cineastas em todo o mundo. Alfred Hitchcock aplicou o Efeito Kuleshov em seus filmes para explorar a ambiguidade no comportamento de personagens como Norman Bates em Psicose (1960). Jean-Luc Godard, por sua vez, foi um dos fundadores do coletivo Dziga Vertov, que tinha o objetivo de realizar filmes políticos marcados pela quebra de encenação proposta por Vertov.

 Portanto, a importância do cinema soviético para os avanços atuais da sétima arte é inegável, principalmente quando se trata de estudos práticos e teóricos sobre a montagem e avanços no gênero documental. Seu impacto é percebido nas instituições de ensino do meio audiovisual que ainda divulgam suas teorias para as gerações atuais, responsáveis por dar continuidade a esta forma de arte e, assim, manter o legado do cinema soviético vivo.

Fontes Bibliográficas

KREUTZ, Katia. Cinema Soviético. Academia Internacional de Cinema, São Paulo, 20 novembro 2018. Disponível em: https://www.aicinema.com.br/cinema-sovietico/. Acesso em: 28 maio 2024.

MIRANDA, Lucas Pilatti. Montagem Soviética. Canto dos Clássicos, São Paulo, 28 junho 2018. Disponível em: https://cantodosclassicos.com/a-montagem-sovietica-no-cinema/. Acesso em: 28 maio 2024.

EISENSTEIN, Serguei. Métodos de montagem. Kino-Fot, 1929. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/eisenstein/1929/12/montagem.htm#topp. Acesso em: 30 maio 2024.

Biografia

Beatriz Panico é estudante do curso de cinema na FAAP. Apaixonada por leitura e escrita desde cedo, desenvolveu um interesse especial pelas áreas de história do cinema, roteiro e, acima de tudo, críticas cinematográficas durante a faculdade. O presente artigo resultou de trabalho apresentado na disciplina de Cinema e História ministrada pelo Prof. Dr. Humberto Silva.

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