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Mostra “Dialético: carrego o esporão e o ovo” | FUCINE 2025

Por Miguel Singer

Na abertura da segunda edição do Festival de Cinema Universitário (FUCINE), foram exibidas duas mostras que compõem o conjunto intitulado “Dialético: carrego o esporão e o ovo”. Os filmes desse primeiro dia, 13/05, são, em sua maioria, experimentais: filmes-ensaio, found footage, experimentações com diferentes materialidades e linguagens. 

Entre os 16 curtas programados para aquela noite, não imaginava que nenhum deles iria superar a condição, por vezes burocratizante, do “filme universitário”. A perspectiva do amadorismo não me incomoda. Muito pelo contrário, o que me aflige, quando se discute cinema universitário, é a perspectiva de uma geração de jovens cineastas que, no momento em que enfrentam poucas restrições, sofrem de crises de imaginação. Felizmente, a tela se acendeu e um estranho mockumentary em inglês passou diante dos meus olhos. É assim que se inicia Pálido Ponto Vermelho (UFPA), de Kalel Pessoa, Lucas Parijós e Arthur Oliveira, filme paraense sci-fi, horror, regional, cósmico. 

A narrativa não é nada simples: no campus da Universidade Federal do Pará, em 1991, surge, aparentemente do espaço, um grande objeto triangular escarlate formado por uma liga de um metal desconhecido e carne humana. A trama distópica se desenrola por meio do found footage, sendo composto por imagens de arquivo “adulteradas”, simulações de telejornais e gravações em vídeo. 

O found footage se tornou icônico no gênero terror por conta de filmes como A Bruxa de Blair (1999, Eduardo Sánchez e Daniel Myrick) e Cloverfield (2008, Matt Reeves). Ambos, como no filme da UFPA, utilizam do artifício para estabelecer um certo realismo dentro da situação fantástica em que a trama se desenrola. A Bruxa de Blair faz uso dessas imagens para construir um microcosmos crível, nas condições do amadorismo, por meio da identificação e do espaço íntimo. Utilizando-se em abundância da câmera em primeira pessoa. Seja por questões financeiras da produção ou por escolha autoral, A Bruxa de Blair oculta a antagonista. Já, Pálido Ponto Vermelho mostra o obelisco que cai na universidade, a nuvem vermelha que descende sobre Belém. No filme americano, o found footage e a instabilidade da câmera subjetiva formam dispositivos que ocultam elementos custosos do filme, sem sacrificar sua verossimilhança. Já o filme paraense usa do found footage e do vídeo, justificado pelo tempo diegético (anos noventa), para mostrar seus elementos mais custosos. O tratamento digital usado em vídeo, talvez pela “baixa qualidade” do material, confecciona uma imagem crível e, pode-se supor, com relativo baixo custo de produção. 

Pálido Ponto Vermelho, como o título indica, tem como intenção um escopo maior. O artifício aqui não opera na identificação, não busca um olhar mais íntimo entre espectador e filme, mas sim cria uma teia de representações e deturpações (de imagens reais) do ciclo midiático. O início do filme, em inglês, parece, de forma irônica, querer afirmar a veracidade das imagens que seguirão. Afinal, o mockumentary não busca apenas enganar e fazê-lo acreditar estar vendo imagens reais (o que seria, ainda mais nesse caso, impossível). O que o filme faz, seguindo uma tradição dos mockumentary,  é satirizar a própria credulidade que se tem com as imagens televisivas e o circo midiático que se cria ao redor delas, de uma catástrofe.  O espectador preenche as lacunas dadas pelas imagens jornalísticas: o horror não precisa ser mostrado; apenas sugerido, ele existe no extracampo. 

O filme se estrutura em camadas sucessivas de afastamento. No início, um falso documentário em inglês — sobre a relação entre o ser humano e a natureza — já antecipa a dimensão cósmica que o filme adotará. Em seguida, a descoberta do objeto e sua manipulação pelos estudantes, o que gera uma reação em cadeia: a cidade de Belém é tomada por uma nuvem vermelha; o presidente aparece em um pronunciamento desesperançoso; e, finalmente, a Terra inteira é engolida por uma mancha escarlate. O desfecho nos projeta para o espaço: ficamos diante da famosa imagem capturada pela sonda Voyager I, o “Pálido Ponto Azul”, feita a pedido de Carl Sagan. Se a imagem original era um alerta sobre a necessidade de preservação do planeta, no filme ela perde qualquer quê esperançoso; nada mais pode ser mudado, tudo está perdido… é um grande lembrete da nossa impotência, seja na relação ser humano-planeta ou espectador-filme.  

Por mais que o discurso ecológico esteja presente com força em Pálido Ponto Vermelho, a sua vitória real está nos pontos de vista. Os mecanismos (muito bem) utilizados do found footage permitem a um filme universitário, de uma região periférica na produção cinematográfica brasileira, a criação de uma narrativa das maiores proporções. 

Seguindo na categoria do experimental, o terceiro filme da noite, Denominador Comum, dirigido por Henrique Guimarães, da FAAP, lida de forma muito interessante com a película, com o Super 8. A imagem é montada e deformada no tratamento digital, cor e forma se alteram, digitalizam-se, e no final são postas lado a lado com o mar. Faz pensar sobre o que vemos quando estamos diante de uma imagem projetada em 35mm e uma digital: afinal, qual seria a diferença material entre elas? Na projeção em película estamos diante do quê? Uma luz forte que atravessa aquela matéria sensível e projeta uma sombra. Se antes a imagem tinha ruído próprio, marcas de tempo, matéria; hoje, nas palavras de Abel Ferrara, vemos só o pixel, valores binários, vemos uns e zeros. Há uma polidez desmaterializada, completamente fluida. Denominador Comum olha de perto, destrinchando essas matérias fílmicas à procura de texturas que elas contêm. E, nessa experimentação, imagens das mais diversas, sons e formas criam uma plasticidade intrigante. 

À primeira vista, Trivakra (UFF), de Sofia Angst, é plasticidade pura. A imagem “crua” mal é mostrada, temos lampejos em meio a uma desintegração completa de todo o campo fílmico. O frenesi e a violência do tratamento digital ofusca tudo – uma verdadeira overdose. Descamando todo o aspecto sensorial, percebemos um corpo sendo transfigurado. O dispositivo de Trivakra é desconcertante e hiper-estimulante  – a imagem se canibaliza; o uso do digital pulveriza o corpo humano e cria uma estranha combinação entre o espaço biológico e o cibernético. A primeira imagem, a única “íntegra” que o filme nos mostra, é um vídeo de um menino, exibido no visor de uma filmadora. No plano seguinte, manipulado digitalmente, uma menina trans (supõe-se que a mesma mostrada anteriormente), aplica em si uma seringa de tratamento hormonal e, citando a própria diretora, a matrix do gênero falha.

 Trivakra é uma representação da experiência trans, habita um espaço abstrato, da videoarte, em que a sensorialidade é protagonista. O êxito maior do filme está nos seus artifícios, que se apoderam de tudo que é visto. Artificiosamente artificial, Sofia Angst emprega técnicas de manipulação da imagem que me são inéditas e indecifráveis. 

Diferente dos curtas citados anteriormente, de caráter mais experimental, Máquina de Lazer, de Italo Zaccharo (UFSC), é um documentário ensaístico, com narração em primeira pessoa que dá continuidade a um trabalho fotográfico realizado pelo diretor na sua cidade natal, Turvo (Santa Catarina). O diretor explora a simbiose homem-máquina, a interdependência que se cria de um pelo o outro. 

Em Turvo, a plantação de arroz trouxe progresso e toda a cidade se entregou às máquinas, não só no trabalho, mas no tempo de lazer.  Enquanto o trabalho é árduo, mecânico e repetitivo, no ócio, o trabalhador busca liberdade total e adrenalina. Empinar motocicletas, fazer rachas e travar corridas com tratores tunados. Em certa cena, vemos, repetidamente, um motoqueiro empinando sua moto. A última repetição do plano termina em um corte brusco, sugerindo um possível acidente. Concomitantemente, o motoqueiro detalha as precauções que toma. O contraste entre o discurso racional e a ação imprudente expõe o comportamento obsessivo desses homens, cegos frente aos perigos de seus prazeres. Máquina de Lazer poderia muito bem ser resumido nessa sentença: se vive para trabalhar ou se trabalha para viver? 

Por fim, a última exibição da noite foi uma surpresa. A Última Visita, de Lucas Tavares e Thomas Kenji (FAAP), parte de uma premissa simples: um senhor de idade aproveita, de forma prosaica, os últimos momentos de sua vida campestre – contempla a natureza, os seus arredores. E então parte para um encontro com a morte personificada. Existe apenas um asterisco: o filme inteiro foi realizado no jogo Minecraft. A terra, o sol, tudo é quadrado. Ainda assim, o curta não perde sua sensibilidade, graças ao cuidado com a decupagem. O discurso existencialista, casado com as texturas do jogo, cria um contraste interessante. Se espera certa comicidade, mas o que se recebe é um discurso carregado. 

Os filmes dessa exibição do FUCINE foram prova do potencial imaginativo do cinema jovem que, aliado com as técnicas e artifícios da atualidade, se mostra capaz de superar as limitações econômicas do contexto universitário em que foram realizados. É por meio do found footage, do vídeo game e da manipulação digital que novas texturas são criadas e os cineastas se permitem ser radicalmente imaginativos, enfrentando os entraves que os restringem. 

Biografia

Miguel Singer é estudante de Cinema na FAAP, em São Paulo. Apaixonado por cinema e fotografia, explora tanto a escrita sobre esses temas quanto a realização.


Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik, Luca Scupino e Gabriela Saragosa

Edição Adjunta e Assistente de Produção: Davi Krasilchik e Caio Cavalcanti

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