Trilogia Silenciosa (2024, Juho Kuosmanen) | 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo
Por Giuli Gobbato
No cenário cinematográfico atual, com uma abundância de filmes carregados de sons e efeitos, é de se chamar atenção quando o cinema mudo aparece — principalmente quando se é o único filme mudo de uma longa lista da Mostra Internacional de São Paulo. Trilogia Silenciosa (2024), do diretor finlandês Juho Kuosmanen, cujo objetivo era apenas fazer uma homenagem ao Primeiro Cinema, tão amado pelo diretor, alcançou essa façanha por acidente. Produzido ao longo de uma década, o longa é uma junção de três curtas: Romu-Mattila e Uma Mulher Bonita (2012), Os Destiladores (2017) e Um Planeta Distante (2023), que foram apresentados juntos, pela primeira vez, numa estreia no Festival de Cinema de Tampere, com acompanhamento ao vivo de foley dos artistas Heikki Kossi and Pietu Korhonen e do grupo musical Ykspihlajan Kino-orkesteri.
Co-produzido pela Aamu Film Company, responsável pelo Grande Prêmio que Kuosmanen ganhou em 2021 no Festival de Cannes, Trilogia Silenciosa também foi exibido no Festival de Karlovy Vary. Apesar dos grandes feitos do diretor, esta tríade é modesta, tanto em narrativa quanto em técnica. As obras, que recriam os primeiros filmes do cinema, tornam-se estrelas da memória, o comum ganha destaque. E apesar de constituírem, a princípio, uma grande homenagem ao cinema mudo, os curtas tematizam as diferentes presenças do som numa história. Uma grande coincidência, já que não foram inicialmente feitos para estarem juntos, em um único longa-metragem. No entanto, ao incorporar a gravação da performance sonora na distribuição das obras para festivais, os sons sincronizados criam um curto ensaio a respeito do espaço sonoro no cinema: o som que se manifesta molda nossa forma de ver. Parece ter algo a dizer ao se tornar parte permanente de uma obra autointitulada “silenciosa”. Irônico.
Na Finlândia, a trilogia também foi apresentada como “Triângulo da Esperança”, tema comum entre os filmes, ainda que a esperança se origine a partir da justaposição das três partes. Romu-Mattila e Uma Mulher Bonita apresenta um senhor angustiado pela perda de sua casa e, desprezado por sua comunidade, encontra em uma cantora a esperança de ter alguém que se importe com ele. Já Os Destiladores recria o primeiro filme finlandês, da fábula de dois irmãos que veem na venda de álcool uma oportunidade de enriquecer. E Um Planeta Distante retrata uma faroleira que constrói um foguete para encontrar seu irmão após a morte, porque se recusa a viver o fim.
As narrativas são melancólicas, acompanhadas de um humor desconfortável, recorrente no cinema finlandês, como em Reunião de Família (2023, Tia Kouvo). O elenco atua de forma naturalista, mais comum ao cinema atual, com menos expressões faciais intensas e com gestos mais sutis. E entre poucos letreiros de narração, os efeitos sonoros de foley invocam o mundo real na imagem preto e branco. Ao ouvir o som de moedas tilintando na mão de um protagonista, de um carrinho de madeira andando na neve ou de um martelo batendo na bigorna, é impossível não imaginar como seria aquela cena sem áudio. Mas há palavras não ditas no silêncio, e um sentimento encontrado no ato de apenas observar.
É por recriar a tradição que Kuosmanen desperta sua própria nostalgia, de uma experiência que não viveu. Afinal, o diretor nasceu em 1979, décadas após a consolidação do cinema sonoro, da montagem rítmica de Eisenstein e da trilha sonora já composta previamente. Ousa-se sonhar que, durante a projeção do filme no Festival de Tampere, a efemeridade, o improviso e a performance da projeção cinematográfica foi sentida num vislumbre pela audiência lá presente. A trilha gravada para a versão exibida na Mostra de São Paulo ressoa uma parte dessa saudade, porém gera outro sentimento melancólico: a angústia de perder uma experiência única do cinema. O som é algo passageiro e efêmero, e ao ser improvisado como era, era parte de um momento único, um espaço que o teatro musical ainda preserva. Graças a essa gravação do som, Kuosmanen registra e preserva o trabalho por completo, inclusive de outros profissionais do cinema além do visual, como músicos e artistas de foley. Um lamento pelos primórdios do cinema, perdidos no tempo, finitos e esquecidos. Um eco da protagonista do terceiro curta: há esperança de prolongar a vida.
A Trilogia Silenciosa tem tudo, menos silêncio. Juho Kuosmanen recria um espaço onde ainda se fascina com a técnica simples e improvisada. Cômica, familiar e sensível, a recepção do filme torna nítido como cativou das mais variadas audiências: de leigos aos espectadores mais versados em história do cinema. Mesmo que tenha sido visto majoritariamente no circuito de festivais — algo mais recente que o cinema mudo — até na recepção do público, o filme repetiu um feito característico dos primeiros cinemas: agrada e muito.
—
Biografia
Giuli Gobbato é cineasta e escritora. Bacharel em Cinema pela FAAP-SP, foi montadora e diretora de som em diversos projetos, além de dirigir e roteirizar dois curtas independentes. Na escrita de ficção e crítica, busca discutir a acessibilidade no audiovisual, partindo da sua vivência com dor crônica e TEA. Também faz parte da equipe administrativa da plataforma literária Maratona.app, que pensa a leitura de forma acessível e emocional.
Share this content:
Publicar comentário