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Amanhã (2023, Marcos Pimentel) - É Tudo Verdade 2023

Amanhã (2023, Marcos Pimentel) - É Tudo Verdade 2023

Por Davi Galantier

 

Resgatando registros de 2002, que misturam  as realidades sociais de crianças dos dois lados da Barragem em Santa Lucia, de Belo Horizonte, o diretor Marcos Pimentel promove  um reencontro das amizades projetadas anos antes, cujos obstáculos  indicam profundos abismos sociais, escondidos na relação entre imagem e realidade.

 

A intersecção entre realidade e ficção é muito comum no documentário cinematográfico, fácil de ser identificada no depoimento de qualquer falante enquadrado por detrás da lente. Convidados a falar de suas memórias, muitos se veem presos entre lapsos que se espalham pela mente e a performance exigida pela câmera. A verificação dessa nuance documental permite a elaboração de diversos debates, que suspendem a transparência das imagens obtidas  e autorizam uma problematização do mundo.

 

Influenciado pela expansão de Belo Horizonte como um dos maiores polos do cinema brasileiro contemporâneo, tal questão sempre emergiu nas obras de Marcos Pimentel, grande explorador do espaço em que cresceu e das dificuldades nele presentes. Ciente desse ruído deixado entre a veracidade e a aparência, o diretor revisita imagens captadas em 2002 para associar o abismo que existe classes sociais a esse interstício entre o personagem e a sua verdadeira essência. Ele se aventura por temáticas de um tecido social bastante amplo, mas sem nunca abandonar o ponto de partida íntimo das duas personagens, e que permite essa mistura entre o individual e o coletivo.

 

Lançado 21 anos após essa captação inicial, o documentário acompanha um momento na vida de Julia e Cristian, duas figuras da periferia da cidade, que o diretor conheceu quando ainda eram crianças. A ideia é explorar o retorno do diretor à sua terra natal  para apresentar esses registros a elas, na esperança de dar continuidade aos laços projetados anos antes. No processo, todavia, surgem rupturas ainda maiores, que se desdobram pela diferença entre as pessoas reais e as personagens criadas para elas.

 

Em um primeiro momento, é especialmente interessante testemunhar a reação dos dois às imagens de arquivo. As emoções genuínas que despontam enquanto assistem se misturam à afinação imposta pela câmera, o que os leva a questionar até que ponto foi verdadeira a captura daquela infância. Fica muito claro o contraste entre a espontaneidade daquelas crianças, tomadas por um sentimento de pureza, distante do controle imposto pelo instrumento ali presente, e a retenção de suas versões adultas, domadas pela dificuldade de um mundo que lhes permitiu ir pouco além da favela.

 

Essa mesma linha de raciocínio também se aplica à presença de Zé Tomás, garoto de classe média alta que fez parte do experimento de 2002. A ideia original de Marcos era proporcionar uma breve mistura, de duração de um ou poucos dias, de duas realidades sociais. Conforme as filmagens, Julia teve a oportunidade de conhecer o apartamento e ir ao shopping com Zé Tomás, enquanto este brincou por longas horas na laje do Morro do Papagaio. Essa inversão se faz com muita disposição no material antigo, naturalizada pela visão sem preconceitos dos pequenos, e se choca com a frieza da realidade descoberta duas décadas mais tarde.

 

Imbuído de uma força tão grande, tal choque chega, inclusive, a produzir fantasmas, criados pela invasão da câmera, que ousa se aventurar pelos limites entre a dura verdade sociológica e a fabulação como tentativa de avanço sociocultural. Tal aspecto fica muito claro na passagem em que o contato entre Julia e Cristian é interrompido, levando o diretor a refletir sobre a condição mágica que estaria os impedindo de estar juntos um com o outro. Surgem inseguranças, medos e conflitos psicológicos nessas ausências, que revelam as esferas fora do alcance da câmera e atentam para a incompletude de ilustrações que tentam representar totalmente a quem se vinculam.

 

Outro grande exemplo dessa dificuldade se apresenta no desaparecimento de Zé Thomas, que se recusou a reencontrar a dupla em função de seu avesso amadurecimento como cidadão. É curioso observar, na forma como o filme é estruturado, a surpresa com que surge tal obstáculo, revelando um grau de imprevisibilidade - o qual, mais uma vez, flerta com a narrativa ficcional -, mas que surge da  realidade material de uma sociedade estratificada. 

 

Ainda em relação à forma como os fatos são narrados, Pimentel trabalha com uma montagem lírica que sobrepõe dramas das duas linhas temporais. Através dos cortes, ele compara as imagens antigas, assombradas por complexidades das quais seus sujeitos até então sequer suspeitavam, com o espaço negativo que ocupa os planos onde as personagens atravessam momentos de muita dor. É como se o diretor questionasse se essa relação seria complementar, capaz de oferecer algum tipo de abrigo, ou redutora, gerando feridas impossíveis de serem tratadas.

 

Mesmo neste âmbito, talvez seja interessante mencionar o grau de participação que ele permite à moça, pedindo que ela liste uma série de situações em que gostaria de se ver retratada. Para além de interferir no próprio DNA do documentário, embora nem todos os desejos da lista sejam concretizados, é interessante como o diretor convida as personagens a interferir diretamente nessa tônica fantasiosa. Ele as instiga a imaginar, por elas mesmas, as possibilidades que teriam em uma dimensão mais idealizada - caso do momento em que Cristian improvisa um rap em uma rádio local, por exemplo -, mesmo não conseguindo afirmar que elas existiriam longe do prisma cinematográfico.

 

Não que haja a intenção de responder tais questões. Embora exista um uso mais prático do trabalho de campo, presente nos depoimentos que retira dos moradores daquele espaço, repletos de histórias verídicas, é nítida a maneira como a direção reconhece a própria incapacidade de comunicar a realidade com um todo. Do voice off especulativo ao ensaio de fotos de Julia e Cristian ao final, Pimentel não esconde a sua fé com relação à importância desses exercícios fabulatórios.. A ânsia por um amanhã menos denso, e que permita aos habitantes daquela comunidade abandonarem o estado entre a existência marginalizada e uma sobrevivência imaginada.



Um amanhã que permita a recuperação da inocência infantil de uma Julia amedrontada pela criação dos filhos, e de um Cristian envolvido com o mundo do crime. Um amanhã em que o objeto de captação não seja o único filtro livre de julgamentos. Pimentel compreende que essa crença não é suficiente, e que ela se afasta do real tanto quanto as suas imagens, incompletas na maneira como esculpem personalidades humanas, tal como as crianças de 2002. 

 

No entanto, nem por isso ele abandona esse lado da ilustração, antes compreendendo seu poder como meio de preservação histórica. Por mais que lide com espectros, figuras aprisionadas entre o sumiço repentino e o retorno inesperado, a obra sabe o que deve ser observado. Ela se atenta a esse espaço vazio, tão presente quanto a barragem que separa o bairro urbanizado da favela do Morro do Papagaio, e que fragmenta as personagens entre a sua complexidade verdadeira e o seu aprisionamento ilustrado no exercício de fabulação.

 

Biografia:

Davi Galantier Krasilchik é estudante de Cinema e Jornalismo na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), onde já roteirizou e dirigiu dois curtas-metragens. Ele também já fotografou dois projetos curriculares, além de produções por fora, e escreve críticas e reportagens para meios como a revista universitária Vertovina e o site Nosso Cinema. A sua paixão pela Sétima Arte se manifesta desde a infância, e atualmente ele trabalha na Filmoteca da TV Cultura, onde ajuda a preservar esse material por qual tem tanta paixão.

 

A cobertura do 28º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

 

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

 

Coordenação idealização: Flávio Brito

 

Produção e edição adjunta: Bruno Dias

 

Edição: Luca Scupino