logo mnemocine

vertigo.png

           facebookm   b contato  

Rua Aurora - Refúgio de Todos os Mundos (2023, Camilo Cavalcante) - É Tudo Verdade 2023

Rua Aurora - Refúgio de Todos os Mundos (2023, Camilo Cavalcante) - É Tudo Verdade 2023

Por Cecília Coêlho 

 

Em seu mais recente filme, Camilo Cavalcante, recifense, enquadra em São Paulo as faces plurais de um centro marginalizado da metrópole.

 

Em seu longa-metragem mais recente, de ordem documental, o diretor Camilo Cavalcante captura a existência de pessoas que vivem hoje em uma rua marginalizada pelo tempo: a Rua Aurora - localizada no bairro Santa Ifigênia, paralela à Praça da República - , que há poucas décadas era um dos melhores pontos para viver na capital paulista, e atualmente abriga grupos oprimidos pelo sistema. O documentário estreou no festival É Tudo Verdade 2023 e, mais que uma exibição, foi uma libertação dos fantasmas da Boca do Lixo. 

 

A Boca, nasce na década de 1920 e torna-se um ecossistema do cinema nacional, desde implantação de produtoras estadunidenses à cineclubes que resistiram ao Regime Militar. A Boca transformou-se em um polo que reunia todos os tipos de marginalizados, mas que de certa forma os integrava em suas produções cinematográficas. 

 

A poucas quadras da corrente Cracolândia, encontram-se refugiados da Jamaica, do Senegal, da Nigéria e, inclusive, do Brasil. A premissa do documentário é muito simples: dar luz aos registros de seus habitantes. Contudo, a complexidade não está na forma, mas sim no texto, as histórias dos personagens da rua escancaram as contradições que é viver no terceiro mundo. 

 

Primeiro, um alfaiate de 82 anos relata sua história, oriundo de uma tradição geracional no seu trabalho. Em seguida, dá-se lugar ao retrato de  uma mulher trans, dona de um cinema pornô cuja finalidade é preservar as reminiscências do submundo erótico paulistano - segundo a dona, um lugar de liberação das fantasias. O enquadramento chama atenção:  enquanto, em primeiro plano, ela relata as dificuldades de existir enquanto mulher trans, ao fundo vislumbra-se uma cena de sexo explícito em tela. 



A rua é brutal, ao mesmo tempo que mágica, devido à solidariedade entre os que habitam no submundo. Em seus momentos mais serenos, o filme fala do desemprego de um saxofonista que toca na rua, a quem, por poucos minutos, observamos tocar. Nesse momento, a mágica acontece. Em meio ao brutalismo do concreto e à violência da noite, a música parece acalmar não apenas os moradores, mas também o espectador. Coincidentemente, um homem em situação de rua interrompe a entrevista do músico para passar uma mensagem positiva à câmera e agradecer. No relato, o saxofonista diz que seu som já tirou dependentes químicos das paranoias causadas pela droga, e conclui que, em suas palavras, “a rua tem muita magia”, que os que a habitam convivem com fraternidade. A compreensão das “personagens” aponta  que, para os que pouco têm, a sintonia da escassez se faz importante como forma de sobrevivência. Compreender a precarização da vida do outro é também entender a sua própria vida precarizada. O comentário político do filme reside aí, a decadência do modelo econômico, falha com o progresso social. 



Essas histórias se tornam os mitos da Rua Aurora. Por isso, São Paulo carrega suas próprias especificidades, como megalópole. Uma cidade em que a pobreza está na periferia, mas que também reside em  seu coração, no quadrilátero da Estação da Luz. Uma contradição econômica: onde se produz mais é também onde se verifica uma distopia feroz.  Desse modo, o filme documenta as contradições da rua - desde um imigrante jamaicano, proprietário de uma lanchonete descolada de sucesso, até as arbitrariedades de uma “justiça cega”, nas palavras de uma pensionista da região que fora encarcerada. Essa situação nos leva à conclusão de  que o crime é inevitável, nas condições relatadas. Ademais, São Paulo está elevada à condição de “cidade estrangeira”, pois nela se abrigam brasileiros de todas as regiões, refugiados dentro de sua própria nação. 



Em outro depoimento, a drag Nagheska Naghaska - e seu longuíssimo sobrenome que não consigo recordar - diz que, para ela, São Paulo é equivalente aos Estados Unidos, onde os paulistanos pouco sabem sobre as diversas culturas brasileiras, não apenas devido à ignorância dos conterrâneos, mas também pelo fato de trazer consigo a ilusão falsa  de uma terra com grandes oportunidades. Sonhar com uma vida próspera na capital do estado seria o “brazilian dream”? 



A Rua Aurora é um sonho, que inculca em seus ocupantes a falta de um passado mitificado, sem violência e idílico. Onde “the brazilian dream” se tornou um pesadelo, que impossibilita o regresso para as antigas terras, como no caso do cearense preso na capital, há anos em situação de rua, embora seja  formado em letras na UFC. 



São Paulo nunca foi um oásis. Todavia, a Rua Aurora só é o “refúgio de todos os mundos”, pelas inúmeras formas que resiste nessa máquina de moer esperanças. Desse modo, o documentário se encaminha para o fim, mostrando a marginalidade intrínseca ao cinema nacional, que resistiu a todos os trancos, barrancos e tiranias. É feita uma homenagem ao cinema realizado na Boca, um cinema em que, na declaração da atriz Débora Muniz, a vida estava lá. Muniz relembra sobre como Império dos Sentidos (1976),  filme de Nagisa Oshima, chamava o Brasil a produzir um gênero de chanchada erótico, que em algum tempo tornou-se completamente pornográfico e sintomático da cultura brasileira. 



Por mais que a pornochanchada tenha subvertido a moralidade conservadora da época,  tal como as convenções da linguagem cinematográfica, muitos profissionais do cinema se opuseram a ela. Em  uma das entrevistas, um ex-trabalhador da área afirma que, com a chegada da pornochanchada, concluiu que não via mais sentido naquele cinema e que não  podia continuar a produzir filmes assim na Boca.



O homem termina afirmando que fazer cinema na Boca do Lixo significou toda a sua existência, na  qual teve oportunidade de trabalhar nas produções de Bandido da Luz Vermelha (1968, Rogério Sganzerla)  e em diversas obras de José Mojica Marins, o “Zé do Caixão”. O cinema não apenas reflete o universo dos residentes da Rua Aurora, mas ele o é, propriamente. Quem não consegue integrar com o resto da cidade será marginalizado e, nesse contexto, o cinema marginal foi o modo de integrar e subverter essa lógica. 



Dessa forma, o diretor Camilo Cavalcante mostra-se apaixonado por compreender e documentar as formas de existência desse povo diverso, mas unido por sua magia. A obra caminha de maneira clássica: não há grandes experimentalismos, ou abordagens fora do convencional. Ela é completamente voltada ao texto, às formas de falar de cada personagem retratado. Sua narrativa é forte e se mostra meta-linguística próxima ao fim. , Como o afirma Débora Muniz: “[a câmera] é a melhor moça que já contracenou”, olhando no fundo da lente da de Cavalcante, diretamente para os espectadores, equiparados a uma câmera que ela chama de moça. O longa encerra com uma cena que foge do dispositivo até então estabelecido, um momento poético em que há um travelling pelas ruas do centro, enquanto são projetadas cenas de pornochanchada nos muros, paredes e ruínas das ruas. O momento em que a rua e o cinema viram uma coisa só.

 

Biografia:

Cecília Coêlho é obcecada por filmes e os enigmas da imagem. Graduanda em cinema na FAAP, onde realiza curtas independentes. É inclinada à área de roteiro, a qual tende ao experimental e ao vulgar.

 

 

A cobertura do 28º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro

 

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

 

Coordenação idealização: Flávio Brito

 

Produção e edição adjunta: Bruno Dias

 

Edição: Luca Scupino