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Novos Olhares | De Monika e o Desejo a Acossado: a influência de Ingmar Bergman na Nouvelle Vague

De Monika e o Desejo a Acossado: a influência de Ingmar Bergman na Nouvelle Vague

Por Gabriela Saragosa

Embora a influência do diretor sueco Ingmar Bergman no movimento cinematográfico  Nouvelle Vague não seja tão enfatizada quanto a de Alfred Hitchcock ou Howard Hawks, sua obra configura um dos principais pilares do movimento. Este artigo busca explorar a importância de Bergman na formação dos chamados “jovens turcos”, principalmente na de Jean-Luc Godard.

 

Introdução histórica: a descoberta e consolidação de Ingmar Bergman pelos críticos da Cahiers du Cinéma

Em junho de 1954, o trabalho do diretor sueco Ingmar Bergman é citado pela primeira vez na revista Cahiers du Cinéma, que viria a se tornar o principal suporte editorial da Nouvelle Vague: a edição de número 36 traz um texto de Jacques Doniol-Valcroze denominado Le Sac de Couchage (O Saco de Dormir) sobre Monika e o Desejo (Sommaren med Monika), lançado em 1953. Valcroze faz uma crítica mediana ao filme que se tornaria um dos pilares de formação do cinema dos “jovens turcos” e aproveita a oportunidade para citar Juventude (Sommarlek), de 1951 — anterior a Monika e o Desejo, porém ainda inédito na França à época da publicação do texto —, ao qual se refere como “marcante” em um breve elogio.

Já em julho de 1956, pela primeira vez um filme de Bergman estampa a capa da Cahiers em sua edição de número 61 ― Sorrisos de uma noite de verão (Sommarnattens leende), lançado um ano antes. Se em 1954, através do texto de Valcroze, a cinefilia francesa se mostrava pouco impressionada com Bergman, agora a Cahiers dava início à consolidação do diretor como uma das grandes influências da Nouvelle Vague. Esse prestígio adquirido por Bergman na França foi proporcionado graças à retrospectiva de sua obra realizada pela Cinemateca Francesa e também devido ao Festival de Cannes de 1956, cuja seleção incluía Sorrisos de uma noite de verão. Anunciando a redescoberta e releitura da filmografia do diretor, logo nas primeiras páginas da revista Eric Rohmer assina um texto intitulado Présentation d’Ingmar Bergman (Apresentação de Ingmar Bergman), em que discorre sobre a filosofia dos filmes de Bergman. Mais adiante, aparece a crítica de Jean-José Richer, que elogia a complexidade de Bergman, sobre Sorrisos.

Após a edição número 61, análises sobre a filmografia de Bergman apareceriam anualmente na Cahiers. A edição número 85, de julho de 1958,  é uma das mais marcantes: Monika e o Desejo estampa a capa e a revista apresenta o texto Bergmanorama, escrito por Jean-Luc Godard ― que não economiza elogios a Bergman ― e a Retrospectiva Bergman, que conta com breves críticas de onze filmes do diretor assinadas por diferentes autores.

 

O tema da juventude

A juventude é um fator central da Nouvelle Vague: ele constrói a própria essência do movimento, cujo sentimento de renovação começa em seu próprio nome. A própria expressão “Nouvelle Vague” surgiu em “uma pesquisa sociológica sobre os fenômenos de gerações [...], publicada na revista L’Express em 1957”; e é a própria L’Express que “retoma a expressão Nouvelle Vague para atribuí-la aos novos filmes distribuídos no início de 1959 e, mais particularmente, às novas obras exibidas no Festival de Cannes do mesmo ano” (MARIE, 2012, p. 13 - 15). 

A nova onda do cinema francês propunha uma verdadeira desconstrução da tradição cinematográfica, contra o chamado “cinema francês de qualidade” do pós-guerra. Conforme afirma Godard, a Nouvelle Vague era “talvez a única geração que se encontra no meio do século e do cinema” (1998 apud BAECQUE, 2013, p. 2). Era natural, portanto, que esse sentimento de renovação se traduzisse em uma forte presença do tema da juventude, especialmente uma juventude transgressora, nos filmes, o que fica evidente em obras como Acossado. Tal relação com a atualidade se manifesta na própria forma dos filmes de Godard, criando uma verdadeira “estética do presente” que, por vezes, é “entorpecente” (BAECQUE, 2013, p. 13).

 

Juventude, Monika e o Desejo, Acossado e Pierrot Le Fou

Juventude, de Bergman, é lançado na Suécia em 1952. Seu título original é Sommarlek, que, em tradução literal, significa “jogos de verão”. Embora deixe de lado um aspecto importante — a questão do verão, que é central no filme —, o título brasileiro é de certa forma conveniente: conforme aponta Béranger em Le Sac de Couchage, o tema da juventude é muito presente no início da filmografia de Bergman. Esses primeiros longa-metragens do diretor, aponta Jonas Sima em Bergman on Bergman², têm como um de seus grandes temas a “revolta contra a convenção da família burguesa1 (1993, p. 12 - 13) — é retratada uma juventude transgressora, portanto. 

A praia, o verão e a transgressão surgem como questões centrais tanto em Juventude como em Monika e o Desejo. Em Juventude, Marie (Maj-Britt Nilsson) relembra seu relacionamento com Henrik (Birger Malmsten), seu namorado da adolescência que morreu após o único verão que passaram juntos. Em Monika e o Desejo, Monika (Harriet Andersson) e seu namorado Harry (Lars Ekborg), dois jovens da classe trabalhadora, estão insatisfeitos com suas vidas, esgotados com os empregos e as vidas familiares. Os dois pegam o barco de Harry e fogem juntos para uma região litorânea e passam seus dias namorando. Perto do fim do verão, Monika descobre que está grávida e os dois precisam voltar às vidas tradicionais para poderem sustentar e cuidar da criança. Os dois se casam. Após o nascimento, Monika está claramente muito infeliz. Ela acaba traindo Harry e, por fim, abandonando ele e a filha.

Pode-se observar paralelos entre os filmes de Bergman e O Demônio das Onze Horas e Acossado. No primeiro, Ferdinand (Jean-Paul Belmondo) deixa seu casamento infeliz para trás e foge com Marianne (Anna Karina). Os dois passam um período escondidos nas praias da Riviera. Marianne tem problemas com criminosos e acaba indo embora com seu amante. Traído, Ferdinand atira nos dois e, mais tarde, envolve todo o seu corpo com dinamites e risca um fósforo para se matar. No último segundo, se arrepende e tenta escapar, mas o fogo já havia alcançado o pavio. Ferdinand morre. Em Acossado, o criminoso Michel (Jean-Paul Belmondo) convence sua namorada Patricia (Jean Seberg) a juntar-se a ele em sua fuga da polícia. No fim do filme, Patricia acaba traindo Michel ao revelar sua localização às autoridades. Por conta disso, Michel é baleado por um policial e morre. 

Os filmes citados são alguns dos exemplos mais legítimos da representação da juventude na filmografia de ambos os diretores. Marie e Henrik, de Juventude, o mais nostálgico e melancólico desta seleção, canalizam o amor jovem, quase adolescente, da metade do século XX. Monika e Harry, de Monika e o Desejo, efetivamente desafiam as convenções da sociedade burguesa, a princípio determinados em negar ao casamento e à constituição de família tradicional. Quando Monika percebe-se obrigada a curvar-se a tais convenções, ela tenta, falha — ou desiste — e as renega, abandonando sua filha e seu casamento. Já Godard radicaliza o aspecto da transgressão ao retratar uma juventude envolvida com o crime: Michel, já imerso nessa vida, tenta arrastar Patricia consigo, o que ela enfim rejeita; enquanto Ferdinand e Marianne se unem em seus delitos, apesar da eventual traição que se revela. Todos esses casais, às suas maneiras, representam uma oposição ao convencional.

 

A figura feminina, erotismo e fetichismo: Monika e o Desejo

No papel de Monika, Harriet Andersson se tornou uma das maiores musas da geração da Nouvelle Vague. No filme Os Incompreendidos (1959), de François Truffaut, os personagens Antoine e René, dois meninos pré-adolescentes, roubam um pequeno cartaz do cinema. É uma foto de Harriet como Monika; fotografia que havia estampado a edição nº 85, de julho de 1958, da Cahiers du Cinéma. O plano do filme de Truffaut ainda estampa a edição nº 96, de junho de 1959, da revista:

      Figura 1 — Capa da edição nº 85 da              Figura 2 — Capa da edição nº 96 da            

              Cahiers du Cinéma                                                  Cahiers du Cinéma

                                                         

                                             Fonte: site da Cahiers du Cinéma.2

Harriet havia não somente atingido um status de musa bastante específico; mas também transformado a maneira como a representação e erotismo do corpo feminino eram percebidos e apreciados pela cinefilia francesa. Conforme Antoine de Baecque disseca no livro Cinefilia, no início da década de 1950 Marilyn Monroe era o epítome da sensualidade feminina, e o que a elevara a tal status não era a simples exibição de seu corpo nu e em sua totalidade na tela, mas sim a provocação que existia nos detalhes: “a sugestão, a máscara, o artifício, a fragmentação do corpo em múltiplos detalhes” (2010, p. 321). Nesse sentido, a censura do Código Hays3 vigente nos Estados Unidos não somente potencializava a sensualidade da provocação, mas constituía seu principal motor (BAECQUE, 2010, p. 307). Marilyn exalava uma sensualidade inatingível, sugerida; e sua nudez total não surtiria o mesmo efeito para os cinéfilos. 

Em Le Sac de Couchage, texto de Valcroze sobre Monika e o Desejo veiculado na edição nº 36 da Cahiers du Cinéma, em 1954, é explícita a opinião inicial que Monika gerou entre os jovens cinéfilos. Não era uma musa inatingível como Marilyn, pelo contrário (p. 50 - 51): 

Não é bonita, bonita, mas também não é feia; bastante rodada, pelo que sugere sua roupa estilo saco de batata. Antes suja, fumando como um soldado, a voz ligeiramente rouca, e, ainda assim, atraindo o macho a uma versta de distância. Então ela troca a saia por um shortinho, um desses shortinhos desfiados que tanto deleitam os adolescentes erotômanos [...].

A sensualidade de Monika não é sugerida nos detalhes, é explícita. Ela aparece nua, de corpo inteiro, ao ar livre e sob a luz do sol. Nas palavras de Bergman, “nunca houve uma garota no cinema sueco que irradiasse mais charme erótico desinibido do que Harriet.” (BERGMAN et al., 1993, p. 72). Como fica evidente na crítica de Valcroze, Monika é percebida como acessível, diferente de Marilyn. Embora a princípio não parecesse tão atraente aos jovens turcos, esse tipo de erotismo do corpo feminino, totalmente oposto à sensualidade da sugestão, não deixava de provocar fixação entre os jovens.

 

Aspectos técnicos e formais

O início da carreira de Bergman: a questão da autoria

Até 1949, todos os roteiros dos filmes dirigidos por Bergman eram adaptações de peças teatrais ou escritos por outros autores. O primeiro filme em que ele utiliza somente seu próprio material original é Prisão, de 1949, filme que Godard, em Bergmanorama, defende como uma das provas mais evidentes de que Bergman é um genuíno representante da política de autores4 (Cahiers du Cinéma, 1958, p. 2). No entanto, em uma das entrevistas presentes no livro Bergman on Bergman, ele revela que no início de sua carreira ouvia com tediosa frequência que era um mau autor (e que seus roteiros eram sempre “vistos sob suspeita máxima”), mas “um excelente diretor de filmes e produtor teatral; e quando ele vai desistir de escrever seu próprios roteiros, e quando ele vai começar a filmar as visões de seus contemporâneos?’” (1993, p. 12).

Um dos pontos que François Truffaut, crítico da Cahiers du Cinéma e um dos maiores nomes da Nouvelle Vague, criticava no que ele denominava “cinema francês de qualidade” eram as adaptações literárias ― não no sentido de que não devessem existir, mas no sentido de que os diretores que as realizavam relegavam a linguagem cinematográfica, que para ele deveria ser sempre central, ao segundo plano, e limitavam-se a simplesmente filmar as palavras escritas, numa falsa simetria entre literatura e cinema (MARIE, 2012, p. 36). Em sua entrevista com John Simon, publicada no livro Ingmar Bergman Directs, Bergman mostra-se alinhado ao pensamento de Truffaut: “eu acho que a única maneira de explicar a peça é no palco, porque um filme deve ser uma adaptação; não é a mesma coisa; você precisa traduzir. É trabalho duro; eu prefiro escrever meus próprios roteiros; não adaptar; é muito trabalho” (BERGMAN et al., p. 35). Assim como Truffaut, portanto, Bergman defende que as linguagens artísticas possuem essências próprias e deixa claro que valoriza a questão autoral. Durante outra passagem da entrevista com Simon, ele realiza uma clara distinção entre arte e técnica, afirmando que foi influenciado pelo trabalho de Alfred Hitchcock, porém somente sob o aspecto técnico (1972, p. 35).

Apesar de a premissa e o roteiro de Monika e o Desejo não serem totalmente creditados a Bergman (o roteiro do filme foi desenvolvido junto com o escritor Per Anders Fogelström e a ideia também deu origem a um livro homônimo), é devido à força autoral do filme que o público e a crítica o consideram uma obra totalmente autêntica e original ― é interessante destacar que o roteiro original de Acossado, filme que também é considerado puro e inteiramente trabalho de Godard, foi escrito por Truffaut, que o vendeu ao colega por um valor simbólico (MARIE, 2012, p. 68).

 

Bergmanorama

Bergmanorama é publicado na Cahiers du Cinéma em julho de 1958, na edição nº 85, um ano antes do início da produção de Acossado, primeiro longa-metragem de Godard. Muitos dos fatores trabalhados pelo diretor em seu texto dedicado a Bergman serão observáveis em Acossado e ao longo de toda a sua carreira. No texto, Godard consagra Bergman como “o autor mais original do cinema europeu moderno” e Juventude como “o mais belo dos filmes” (1958, p. 2). Para embasar tais afirmativas, Godard preocupa-se em explorar a personalidade de Bergman enquanto cineasta, isto é, sua forma de trabalhar. Em primeiro lugar, ele define o que é o cinema. Para o diretor da Nouvelle Vague, “o cinema não é uma profissão. É uma arte. Não é uma equipe. Estamos sempre sozinhos, sobre o palco como em frente à página em branco. E para Bergman, estar só é fazer perguntas. E fazer filmes é respondê-las” (1958, p. 2). 

Segundo Godard, Bergman é um “cineasta do instante”, pois “cada um de seus filmes nasce de uma reflexão do protagonista sobre o momento presente'' (1958, p. 2). Essa afirmação é facilmente observável em Juventude, por exemplo: o filme é composto praticamente em sua totalidade por flashbacks da vida de Marie, que, o tempo todo sentada em frente ao espelho do camarim do teatro, relembra seu relacionamento com Henrik. Nas palavras de Godard, “uma vigésima quarta parte de segundo [...] se metamorfoseia e se estica durante uma hora e meia” (1958, p. 2). À época, o recurso do flashback era comum e seu uso frequente, sempre com uma demarcação clara entre presente e passado (BERGMAN et al., 1993, p. 54), como através utilização de fade outs, por exemplo. Entretanto, Godard destaca que Bergman utiliza os flashbacks de forma que eles deixam de ser um recurso simples e pobres e se tornam “senão o próprio sujeito do filme, ao menos sua condição sine qua non” (1958, p. 3). Assim, portanto, ele se diferencia dos demais e se consagra como um autor autêntico, que se apropria da técnica e de fato a torna sua.

Godard não poderia deixar de mencionar Monika e o Desejo, tão caro a sua geração de cineastas franceses. Sobre esse filme, ele afirma: “tudo o que nós reprovávamos não ter sido feito pelos cineastas franceses, Ingmar Bergman já tinha feito” (1958, p. 3) cinco anos antes. O olhar que Harriet Andersson dirige à câmera é a representação da explicitação do cinema enquanto meio e linguagem, recurso que tanto encantava os críticos franceses ― e que havia sido inaugurado por Bergman.

 

Explicitação do cinema enquanto meio: Monika e o Desejo (1953) e Acossado (1960)

A explicitação da consciência do cinema enquanto aparato era impensável e proibida no modelo clássico de cinema. Na filmografia de Bergman, já é possível observar esse recurso em seu segundo filme, Chove Sobre o Nosso Amor, lançado em 1946. Logo no início do filme, um homem com um guarda-chuva olha diretamente para a câmera e fala sobre os demais personagens com o espectador. Em Prisão (1949), após alguns minutos de filme, uma voz off anuncia que “esse foi o prólogo do nosso filme” e passa a narrar os créditos de produção, direção e elenco. Após essa intervenção, o filme segue convencionalmente com seu enredo. 

Esses momentos anunciam aquele que viria a ser um dos planos mais significativos da história do cinema, de Monika e o Desejo: aquele em que Monika, fumando um cigarro, olha diretamente para a câmera em silêncio, no momento em que é revelado que ela está traindo seu marido. Essa cena inspira diretamente a cena final de Acossado: Patricia acaba de trair Michel, entregando-o à polícia, e o rapaz é baleado e cai no meio da rua. Antes de morrer, ele profere suas últimas palavras: “C'est vraiment dégueulasse” (traduzido para o português como “você é asquerosa”, ou “abjeta”). Patricia pergunta o que ele disse e o policial diz: “Il dit: vous etes une femme dégueulasse” (“Ele disse: você é uma mulher abjeta). Patricia, então, olha para a câmera e repete uma última vez o tipo de pergunta que vinha fazendo durante todo o filme: “Qu'est-ce que c'est ‘dégueulasse’?” (traduzido para o português como “o que quer dizer ‘asquerosa’?” ou “o que quer dizer ‘abjeta’?”). A interação direta entre personagem e espectador viria a se tornar uma das principais características da carreira de Godard, dando origem a outras cenas célebres, como em Pierrot Le Fou, quando Jean-Paul Belmondo fala diretamente à câmera e, quando perguntado por Anna Karina sobre com quem ele está falando, responde simplesmente: “com o público”.

Em Bergman on Bergman, Jonas Sima comenta sobre como Acossado foi tido como “novo e chocante” por conta da interação direta com o espectador. No entanto, Bergman afirma que, no fundo, não se trata exatamente de uma novidade (1993, p. 222):

Mas isso é tão antigo quanto o mundo, você não percebe isso? No teatro! O autor se dirige diretamente a sua audiência. É simples e encantador. Eu usei o método uma vez, em Monika e o Desejo. O motivo eu não sabia, mas achei que funcionou. Na cena em que Monika volta para a cidade e está sentada em um café com um rapaz que ela não conhece. Ele coloca a jukebox para tocar. Naquele momento Harriet Andersson acende um cigarro, vira seu rosto de repente para a câmera, e olha diretamente para nós. Naqueles tempos você não podia simplesmente fazer aquele tipo de coisa. Ela olha para nós em um close-up indecentemente longo. 

Através dessa declaração, pode-se perceber que a extensa carreira de Bergman no teatro ― que, aliás, começou antes de seus trabalhos cinematográficos ― foi o fator decisivo que o influenciou quanto à utilização desses artifícios que explicitam o meio e a linguagem cinematográfica.

Figura 1 ― Monika, de Monika e o Desejo             Figura 2 ― Patricia, de Acossado 

                            

      Fonte: Monika e o Desejo (1953)                      Fonte: Acossado (1960)

Embora sob o ponto de vista apresentado por Bergman esse artifício seja, de fato, antigo, é inegável que, no cinema, se trata de algo revolucionário. Em Cinefilia, Antoine de Baecque determina os três tabus quebrados que levaram o plano de Monika, ao qual ele se refere como “plano olhar” (2010, p. 51),  a se tornar tão marcante para a história da sétima arte: em primeiro lugar, o “tabu da mise en scène tradicional”, que proibia que o ator olhasse diretamente para a câmera, “lente sagrada e mantida a distância”; segundo, “o tabu do lugar do espectador diante do filme, que devia assumir postura de identificação mas não de participação”; e terceiro, “o tabu do decoro moral”, dado o questionamento que é estabelecido quando Monika olha para o espectador ao trair seu marido. É adquirida aqui, portanto, uma soberania de mise en scène, espectador e personagem, próprias do cinema moderno e incessantemente reiteradas pela Nouvelle Vague. (BAECQUE, 2010, p. 51).

 

Bergman sobre Godard e resposta a Bergmanorama

Em Bergmanorama, Godard afirma que considera Bergman um dos maiores cineastas da história. Já Bergman fala sobre Godard em duas ocasiões, e em nenhuma delas seus comentários são positivos. Em 1972, a primeira opinião de Bergman sobre Godard é veiculada no livro Ingmar Bergman Directs, de John Simon, que traz a transcrição de uma entrevista entre o autor do livro e o diretor. Em uma das passagens, Simon pergunta: “há algum cineasta jovem que você particularmente goste? Eu espero que você não goste de Godard?”. Bergman responde que não. Simon diz que o detesta; Bergman concorda e justifica (1972, p. 25 - 26):

Nesta profissão, eu sempre admiro pessoas que estão indo em frente, que têm um tipo de ideia e, por mais louca que seja, estão levando-a adiante; estão juntando pessoas e coisas, e elas fazem algo. Eu sempre admiro isso. Mas eu não consigo assistir aos seus filmes. Eu me sento por talvez vinte e cinco ou trinta ou cinquenta minutos e então eu tenho que ir embora, porque os filmes dele me deixam muito nervoso. Eu tenho a impressão de que ele tenta me dizer coisas o tempo todo, mas eu não entendo o quê, e às vezes eu sinto que ele está blefando, me enganando.

O segundo comentário, mais longo, aparece no livro Bergman on Bergman, inteiramente composto por transcrições de entrevistas entre o diretor e Stig Björkman, Torsten Manns e Jonas Sima. Stig Björkman pergunta sobre o texto Bergmanorama, mais especificamente sobre a passagem em que Godard afirma que o cinema é uma arte solitária. Bergman discorda completamente (1993, p. 60 - 62):

[...] Ele está escrevendo sobre ele mesmo. Você nunca deve se esquecer que a minha vida foi vivida no teatro; e o teatro — mesmo que seja um mundo protegido — é sempre um coletivo. Produzindo uma peça, o indivíduo pertence fortemente a um grupo. [...] Eu já me senti sozinho em outras dimensões, mas nunca em um contexto profissional. Eu conheci um grande maestro que falou sobre se sentir sozinho na frente da orquestra. Isso é algo que eu nunca experienciei, seja no teatro ou junto com atores e técnicos em um estúdio. Entre em um set lotado, onde umas vinte e cinco pessoas estão andando ao seu redor. [...] Todos sabem que dependem uns dos outros. Todos sabem que devem trabalhar juntos. [...]

O diretor, portanto, a princípio desmente a afirmação de Godard. Quando fala de seu trabalho, Bergman frequentemente reforça a influência e a importância do teatro em sua carreira cinematográfica; e nunca deixa de mencionar o aspecto coletivo do ofício, opondo-se ao pensamento de Godard e da Nouvelle Vague de maneira geral. Ainda em Bergman on Bergman, em outro momento das entrevistas ele comenta sobre a necessidade que sentiu de aprender sobre absolutamente todas as etapas relacionadas a sua profissão, para impedir que os técnicos que trabalhavam nos filmes sentissem que um “idiota” estava tentando lhes ensinar sua própria profissão (1993, p. 58). Ele compara a situação ao trabalho de um maestro, que deve conhecer cada um dos vários instrumentos para ser bom.

No entanto, embora nesse sentido Bergman reforce o forte aspecto coletivo de seu trabalho, nessa mesma fala ele afirma que as instruções dadas à equipe do filme (assim como aos instrumentistas da orquestra) devem ser “puramente técnicas” (1993, p. 58). Assim, de certa forma ele concorda com Godard: a parte artística do filme, sua essência, é realizada por um diretor solitário que dá comandos diretos. Em sua fala, ele não reforça ou sequer menciona a importância criativa da equipe do resultado final do filme enquanto obra de arte.

 

Conclusão

Graças à retrospectiva da Cinemateca Francesa, os “jovens turcos” puderam redescobrir a obra de Bergman. Conforme afirma Baecque em Cinefilia, Monika e o Desejo é um “filme que os ‘jovens turcos’ da nouvelle vague literalmente aprenderam a ver” (2010, p. 50). O trabalho do diretor, inicialmente recebido com uma reação morna na Cahiers du Cinéma, torna-se um dos principais representantes dos ideais dos críticos e uma peça fundamental na história da Nouvelle Vague.

 

Referências

ACOSSADO. Direção: Jean-Luc Godard. Produção: Georges de Beauregard. Intérpretes: Jean-Paul Belmondo, Jean Seberg, Daniel Boulanger, Henri-Jacques Huet, Roger Hanin, Van Doude e outros. Roteiro: Jean-Luc Godard, baseado no argumento original de François Truffaut e Claude Chabrol. França: Les Films Georges de Beauregard, 1960. 1 DVD (87 min). 

MONIKA e o desejo. Direção: Ingmar Bergman. Produção: Allan Ekelund. Intérpretes: Harriet Andersson, Lars Ekborg, John Harryson, Georg Skarstedt, Dagmar Ebbesen, Åke Fridell e outros. Roteiro: Ingmar Bergman e Per Anders Fogelström, baseado na obra de Per Anders Fogelström. Suécia: Svensk Filmindustri, 1953. 1 DVD (96 min).

JUVENTUDE. Direção: Ingmar Bergman. Produção: Allan Ekelund. Intérpretes: Maj-Britt Nilsson, Birger Malmsten, Alf Kjellin, Annalisa Ericson, Georg Funkquist, Stig Olin e outros. Roteiro: Ingmar Bergman e Herbert Grevenius, baseado em Mari, uma história original de Bergman. Suécia: Svensk Filmindustri, 1950. 1 DVD (96 min). 

O DEMÔNIO das onze horas. Direção: Jean-Luc Godard. Produção: Georges de Beauregard. Intérpretes: Jean-Paul Belmondo, Anna Karina, Graziella Galvani e outros. Roteiro: Jean-Luc Godard, baseado na obra de Lionel White. França: Films Georges de Beauregard, 1965. 1 DVD (110 min).

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TRUFFAUT, François. Uma certa tendência do cinema francês. In: O prazer dos Olhos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005

 

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1.Tradução nossa do inglês; o livro Bergman on Bergman: Interviews with Ingmar Bergman não foi publicado em língua portuguesa.

2.Disponível em: <https://www.cahiersducinema.com/boutique/produit/n85-juillet-1958/> e <https://www.cahiersducinema.com/boutique/produit/n96-juin-1959/>

3.O Código Hays foi um conjunto de diretrizes de censura para filmes que restringia fatores que fossem percebidos como inadequados à moral, como elementos de perversão sexual. O código permaneceu em vigor nos Estados Unidos entre 1930 e 1968 (CHANDLER; MUNDAY, 2011, p. 182).

4. A política de autores norteia a nouvelle vague. Michel Marie aponta as três teses que a formam: (1) só há um único autor de filme e este é o diretor; (2) alguns diretores são autores, outros nunca serão considerados como tal; e (3) não há obras, só há autores (MARIE, 2012, p. 41-42).

Este texto é derivado de uma pesquisa de Iniciação Científica realizada no Centro Universitário Armando Alvares Penteado (FAAP) durante o segundo semestre de 2022, sob orientação de conteúdo do Prof. Dr. Humberto Silva e orientação de metodologia do Prof. Dr. Diogo Bornhausen.

 

 

Biografia:

Gabriela Saragosa é estudante de Cinema no Centro Universitário Armando Alvares Penteado (FAAP), com experiência nas áreas de pesquisa, roteiro, direção, produção e direção de arte.