logo mnemocine

fellini.png

           facebookm   b contato  

Mostra Brasil XIV (Fé na Vida, Fé na Luta) | 34º Festival de Curtas Kinoforum

Mostra Brasil XIV (Fé na Vida, Fé na Luta) | 34º Festival de Curtas Kinoforum

Por Cecilia Coelho

 

“Fé na vida, fé na luta” reúne o melhor do cinema nacional contemporâneo: a volubilidade do compromisso com a ficção e o ímpeto de rebelião. O Kinoforum selecionou quatro filmes que dialogam diretamente com a sua audiência nesta mostra.

 

A Mostra Brasil 14 do Kinoforum inicia com Cabana (2023, Adriana de Faria). Trata-se de um curta seguro em questões estéticas, clássico, com  beats narrativos ditando o fluxo da decupagem, plano-contraplano, close-up em falas reveladoras: nada de novo. Todavia, a sua potência reside no discurso - um discurso não dito, ou melhor, não escutado. 

 

A narrativa se debruça no acontecimento histórico da “Cabanagem”, revolta sanguinolenta que se deu após a Independência do Brasil, causada pelo desejo de emancipação em relação ao governo central. A revolta popular se deu na província de Grão-Pará (atual região do Pará, Amazonas, Roraima, Amapá e Rondônia), fato que ajuda a entender o elo entre a roteirista/diretora e sua obra, já que esta é paraense, e se apropriou da História para poder contar um sonho. Duas mulheres, uma negra e outra parda: a primeira foge  dos colonos em direção à rebelião, e a segunda resiste em adotar os ideais revolucionários, pois tem de cuidar de seu recém-nascido.  

 

(Cabana, Adriana de Faria)

 

A sacada estética está na direção de som: as duas mulheres falam, mas não é possível ouvi-las, apenas acompanhá-las pelas legendas que tomam forma conforme a  entonação da atuação, mudando de tamanho e se deslocando  pela tela. A alegoria é clara, mas o que enriquece o filme é justamente  a apropriação de um evento histórico que até os  dias de hoje busca reconhecimento. 

 

O ímpeto revolucionário está aí, mulheres nortistas fazendo revolução e sendo caladas. Nasce  um sonho, assim como a estética onírica da obra, onde as pessoas tentam falar mas não conseguem emitir som, e os únicos que têm voz são os portugueses. 

 

O filme tem seus momentos líricos e simbólicos. Maria Lira, a mulher escravizada, ao fim do curta resgata o recém nascido -  signo da revolta -  e corre tanto que a câmera a capta em menos quadros por segundo, deixando mais clara a relação com o onírico. Até que ela para de correr, quando chega a  2023, no meio de uma rodovia barulhenta, e acorda do sonho revolucionário. O filme termina com  um berro que, pela primeira vez, é audível. Nesses momentos finais, é abandonada a linguagem clássica,  abraçando o cinema novíssimo onde a realidade é muito real.

 

E do mundo dos sonhos, a mostra caminha para o confronto da ficção com a sua autoconsciência enquanto ficção. A autoconsciência leva ao entendimento que o cinema é inútil, não serve propósito revolucionário nenhum, só serve para fantasiar. É dessa forma que o último curta da renomada diretora Anna Muylaert se faz, trazendo O Nosso Pai (2023) como um retrato datado do lockdown da era pandêmica. 

 

Os estereótipos narrativos da quarentena causada pelo Covid-19 são cansativos, pois só fazem sentido se o filme tivesse sido visto naquele exato momento em que foi produzido. Contudo, a obra se salva pela atuação brilhante de Grace Passô, tão magnética e carismática que se torna dona da narrativa. 

 

O curta tem muitas similaridades com República  (2020), de Passô, que de fato é um filme pandêmico realizado e exibido neste período, mas que transcende as suas relações com apenas um recorte histórico. Ambos os curtas assumem a consciência de serem ficções para fins libertários. O Nosso Pai quebra a quarta parede e bem didaticamente diz “isso é um filme, podemos fazer o que quisermos então”. A partir daí, a narrativa se faz pela realização de uma fantasia: matar o presidente. Matar Bolsonaro, em 2020, parece muito revolucionário. Agora, exibir este curta durante o governo Lula aparenta ser somente uma propaganda social democrata nada revolucionária. 

 

Fundamentado na fantasia e na realização, matar o presidente era um sentimento comum a milhares de cidadãos da época, mas é uma revolta sem organização, e por isso o filme consegue muito bem assimilar a sua inutilidade. Pois o cinema não irá mudar o mundo, o cinema é “faz de conta”. Este é o ponto positivo da direção de Anna Muylaert - cuja colaboração com Passô é claramente perceptível que Grace Passô corrobora para a linguagem -, e assim vai ao encontro de  República.

 

Ainda dentro do olhar político, o curta Provisório (2023, Wilq Vicente)  se passa na Ocupação Vila Nova Palestina, situada no extremo da zona sul de São Paulo, terreno de um imenso latifúndio ocioso ocupado pelo movimento MTST - e traz consigo grandes discussões, especialmente no que diz respeito a pensar do que seriam as vidas dos beneficiados sem a presença do movimento para garantir moradia. Val é uma delas, a personagem travesti que “tem que deixar seu passado para trás”, assim como outros personagens que têm relações ambíguas com a memória.

 

(Provisório, Wilq Vicente)

 

A memória gira em torno dessas pessoas, e a consciência delas com a câmera à sua frente. Os personagens quebram a quarta parede e falam de suas experiências com a memória e o ato de lembrar. Chega-se à conclusão de que o Brasil é feito de memórias dolorosas de se relembrar e que, por isso, há uns que fingem não lembrar. Sendo assim, o filme passa o tempo todo lembrando de que é importante ir ao ato para poder protestar as suas moradias indignas e suas existências apagadas, dando a entender que protestar é a solução para esses problemas. 

 

O final culmina em um ato no centro de São Paulo, agora com uma linguagem documental, que se apresenta sem força, sem sentimento de mudança ou de esperança. Logo, a intenção do diretor cai na ambiguidade e na confusão, seria um final cínico? ou seria um final cuja linguagem não contempla as possibilidades da narrativa? A partir deste ponto, a curadoria do Kinoforum, que vinha selecionando curtas com um fluxo cativante, perde o espectador em Provisório, um curta muito longo que, a todo momento, deixa em suspenso qual a verdadeira intenção da obra.

 

A mostra fecha com Arrimo (2023, Rogério Borges)l já coberto pela Mnemocine, na 11º Mostra de Tiradentes. No caso do  Festival de Curtas, o filme toma novos olhos para a ciência do cinema enquanto ficção. O diretor assume vários recursos estéticos que enriquecem e deixam a obra mais complexa, como a escolha por não-atores, passagens com câmera subjetiva, plano holandês, quebra da ficção com a realidade, entre outras. Ele assume esses aspectos de maneira frenética, carrega certo teor de caos. O protagonista é Sasá, um pedreiro gago que trabalha para ausentar seu sonho de fazer cinema: novamente cinema como sonho, e como um sonho inalcançável. 

 

Na parede da academia pessoal de Sasá, há um poster escrito “Lost Dream”, que resume a relação que o filme quer trazer. O cinema não é trabalho (ao menos não é visto como tal), o cinema, no Brasil, é um sonho perdido - isso é sempre lembrado a Sasá (“cinema não dá dinheiro”). A partir do rompimento com a ficção, a metalinguagem mostra a realidade de Sasá como o seu sonho: fazendo cinema. Mas esse cinema é a sua própria vida, e não há nada que difere a realidade e a ficção. Neste caso, a realidade é mais ficcional do que a própria ficção.

 

Se não se trata de um caso de curadoria minuciosa por parte do Kinoforum, ao menos é possível ver uma tendência no cinema contemporâneo brasileiro, que diz respeito à ligação do reconhecimento do artista com sua obra - ou melhor, pensar que sua obra tem consciência da própria existência. O compromisso do cineasta com seu público se faz muito importante nesta curadoria, tal como a reflexão de que  o cinema tem de ser feito para quem vê, e não apenas para quem o faz.

 

 

Biografia:

Cecília Coêlho é obcecada por filmes e os enigmas da imagem. Graduanda em cinema e realizadora de curtas independentes. É inclinada à área de roteiro, a qual tende ao experimental e ao vulgar.

 

 

A cobertura do 34ª Festival Internacional de Curtas de São Paulo - Curta Kinoforum faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos à Atti Comunicação e Ideias e a toda a equipe da Associação Cultural Kinoforum por todo o apoio na cobertura do evento. 

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik e Luca Scupino

Edição Adjunta, Apoio de produção e Transcrição das entrevistas: Rayane Lima