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Excursão (2023, Una Gunjak) | 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

Excursão (2023, Una Gunjak) | 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

Por Fernando Oikawa Garcia

A adolescência é um período difícil. Diante do crescer, começam crises de identidade, o desejo sexual aflora e gera inseguranças, as relações com colegas de escola frequentemente são permeadas por crueldade. É esse universo o retratado por Excursão (2023), dirigido por Una Gunjak e representante da Bósnia no Oscar de Melhor Filme Internacional. Nele, Iman é uma jovem de quinze anos que se vê presa em sua própria mentira após contar, num jogo com colegas de sala, sobre uma suposta primeira relação sexual. A farsa ganha novas proporções e Iman a alimenta, inventa uma gravidez que se torna catalisadora de uma histeria coletiva, de pais a alunos. A premissa até acena para comédias populares, como A Mentira (2010, Will Gluck) ou Oitava Série (2018, Bo Burnham), mas Gunjak dá tratamento sóbrio a este coming-of-age que opera sob a lógica da angústia crescente: o resultado de uma radiografia dos modos como uma sociedade conservadora trata o desejo feminino.

 

Embora não alcance, nem propriamente almeje, originalidade em sua realização, a obra é bastante feliz em compor um retrato autêntico dessa juventude, para além de um olhar externo. As dinâmicas de aula, as conversas, as festas: tudo isso encontra naturalidade no modo livre, quase dispersivo, com que a diretora permite o desenrolar das cenas — as conversas se sobrepõem e os jovens se deslocam como quem de fato habita aqueles espaços, sensação valorizada pelas escolhas de fotografia. Preferem-se planos de pouco movimento, com a câmera, porém, sempre na mão, o que confere um caráter testimonial às imagens: somos igualmente parte dessa realidade. Trata-se de um filme “slice of life”, em que o conflito progressivamente se inscreve no cotidiano até implodi-lo.

 

São os contrastes que marcam Excursão, presentes desde o título: a viagem dos jovens, celebrando a formatura no Ensino Fundamental, nunca deixa de ser um plano futuro — ela nunca chega, é o desejo dos jovens e o temor dos pais diante da possibilidade do sexo. A excursão, rito de pasagem à maturidade, traz à luz o dogma moralista que veta a discussão sobre a sexualidade, catalisando uma crise no microcosmo retratado pela cineasta. Há uma sobreposição do opressivo ao familiar: Iman está quase sempre nos extremos do quadro, isolada do coletivo, mas essas mesmas imagens claustrofóbicas são carregadas, paradoxalmente, em azuis e rosas de uma juventude doce. O desejo de Iman é ingênuo, seu quarto com paredes de estrelas também; as consequências de sua invenção não. Por esse procedimento, inscreve-se, nesse universo de nostalgia, a fratura dada pela ordem patriarcal. 

 

 

Gunjak está menos interessada na psicologia da protagonista, em entender suas motivações, que analisar a reação social misógina ao caso. Seu diagnóstico é trágico, porque percebe que garotas são, simultaneamente, infantilizadas e sexualizadas. E, se tabu e objetificação coexistem, os dois se tornam fontes de opressão; não à toa, Excursão é  permeado por uma violência profunda, das relações entre colegas até a histeria moralista dos pais e das instituições. As microagressões estão nos jogos de verdade ou desafio, nas festas, nos assédios praticados por um professor em plena aula — e, se Gunjak dá o peso necessário a essas sequências, sua condução nunca permite o filme que o filme caia em um regime exploratório, de modo que preserva, antes de tudo, um olhar de alteridade.

 

A violência não é elemento de catarse na estrutura do drama, ela surge inaudita e por isso se torna mais opressiva, naturalizada na ordem social. Pela impossibilidade de purgar seu conflito, Excursão tem uma qualidade anticlimática. O espaço de acolhimento surge num balanceamento necessário, mas Gunjak sabe que o privado não consegue ser salvação. Não poderia ser mais irônico terminar a jornada de Iman justamente num 8 de março, Dia da Mulher, em meio a vendas de rosas, com comentários machistas disfarçados de elogio na televisão. Contraposto a isso, o horizonte surge como possibilidade aberta. Tal qual o desfecho do cine-ensaio clássico da segunda onda feminista, Resposta das Mulheres (1975, Agnès Varda), há uma abertura do final ao futuro, à medida que as demandas contra a desigualdade de gênero se estendem para além da tela do cinema e se reinventam diariamente. Gunjak parece sugerir o mesmo que lá diz Varda: “e continua…”

 

 

Biografia: 

Fernando Oikawa Garcia é graduando em Cinema na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), onde realizou projeto de pesquisa sobre o cineasta Fernando E. Solanas. É diretor e roteirista de três curta-metragens, buscando refletir nas produções seu interesse pelas possibilidades de diálogo entre cinema e literatura.

 

A cobertura do 47º Mostra Internacional de Cinema São Paulo faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos a toda a equipe da Assessoria da Mostra por todo o apoio na cobertura do evento.

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik e Luca Scupino

Edição Adjunta e Assistente de Produção: Rayane Lima