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Afire (2023, Christian Petzold) | 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

Afire (2023, Christian Petzold) | 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

Os Amantes de Pompeia

Por Luca Scupino

 

Volta e meia nos encontramos diante de obras que desafiam nossa capacidade de percepção, que geram sentimentos conflitantes e parecem maiores que a habilidade de colocar uma impressão em palavras. Se há algo em comum nos filmes de Christian Petzold, talvez seja este sentimento. Embora sua obra, especialmente a partir de Phoenix (2014), beire a perfeição no que diz respeito ao domínio da encenação e na construção do drama, há nela um certo mistério, uma indefinição por sua ordem que escapa à mera codificação dos gêneros. Petzold parece unir a rigidez estética da tradição literária e cinematográfica alemã com uma abordagem moderna, autoconsciente de sua posição histórica e diretamente ligada ao mito.

 

Afire (2023) se apresenta, inicialmente, como um filme distante. Há um afastamento aqui das obras anteriores de Petzold, deixando de lado a abordagem histórica de Em Trânsito (2018) e o melodrama puro de Undine (2020); mas também é evidente que Afire nasce de uma experiência de isolamento. O cineasta escreveu o roteiro durante a pandemia do Covid, após ter sido infectado pelo vírus e passado um mês doente reassistindo aos filmes de Éric Rohmer. Essa informação, porém, não é necessária para entendermos o conflito que o permeia. Afinal: faz sentido procurar o amor, ou buscar inspiração para escrever, quando o mundo parece estar chegando ao fim?

 

Diante de uma cidade que enfrenta uma série de incêndios florestais, os personagens de Afire parecem sempre estar sozinhos, isolados. O protagonista, Leon (interpretado por Thomas Schubert), é um jovem escritor que precisa trabalhar em seu próximo livro, “Club Sandwich”, e por isso realiza uma viagem para o litoral da Alemanha com seu amigo Felix, fotógrafo. Seja se isolando em um quarto de hotel, seja chamando seu editor para jantar à procura de uma rápida solução para os problemas do livro, Leon sabe que é incapaz de extrair qualquer verdade de suas palavras. Há uma tensão sempre corrosiva entre a necessidade de expressão do artista e a sua introspecção, que esbarra certamente em questões de ego. A insegurança de Leon o torna apático e isolado em relação ao mundo, o que, por sua vez, debilita o artista, como Petzold bem mostra — de modo que, ironicamente, para Leon a escrita se torna uma desculpa para não viver e acovardar-se da própria transformação enquanto personagem.

 

Quando Leon e Felix chegam à casa no litoral, deparam-se com uma surpresa: a bagunça na sala e a máquina de lavar funcionando indicam que há alguém também morando lá, uma mulher que, por muito tempo, a câmera vê apenas à distância. Nadja, personagem interpretada por Paula Beer, em sua terceira colaboração com Petzold, faz um contraponto à antipatia do protagonista, na medida em que possui uma disposição quase incompreensível para lidar com as manias de Leon — ao mesmo passo em que derruba o protagonista, sem muito esforço, de seu pedestal de arrogância. Este, por sua vez, embora irritante em boa parte do filme, gera simpatia por sua relação com Nadja: há algo de um amor à primeira vista que faz este personagem sério perder o controle de suas reações. São recorrentes, e um tanto cômicas, as cenas em que Leon ouve desconfortavelmente barulhos de sexo vindos do quarto de Nadja, durante a noite. 

 

A influência de Éric Rohmer, citada quase universalmente em textos sobre o filme, é clara desde os nomes dos personagens, Leon e Nadja, que remetem diretamente aos títulos de duas obras do início de carreira do cineasta francês. Assim como Rohmer, Petzold demonstra aqui um talento inato para retratar a sensualidade e o lazer nos campos e praias, investigar a dinâmica moral da guerra dos sexos (homens asquerosos, mulheres indecifráveis), e em encenar a partir do diálogo, com uma intuição quase demiúrgica para a disposição dos corpos no espaço e sabendo o momento exato para cortar de um plano à sua reação. Do mesmo modo, há também a ironia cósmica de um escritor/criador que não consegue vencer a própria obra, enquanto também não resolve sua vida íntima — questão que chega a lembrar os recentes A Ilha de Bergman (2021, Mia Hansen-Love) e Anatomia de uma Queda (2023, Justine Triet), este último também exibido nesta edição da Mostra.

 

Há também um último personagem, oculto: o fogo. Ele sempre está à espreita, embora muitas vezes não o vejamos (são também constantes os sons de helicópteros de resgate aos incêndios florestais). Tudo no filme, ao que parece, está fadado a queimar, a morrer sem oxigênio. De modo que, neste ambiente, Leon vê-se acossado por um amor com o qual é incapaz de lidar, na medida em que não se dispõe ao mundo, tanto enquanto escritor como enquanto sujeito. As referências dizem tudo: dos amantes de Pompeia, que morreram abraçados pela lava, a um poema do século XIX de Heinrich Heine sobre “aqueles que morrem quando amam”. E, se Leon se mostra inafetado em boa parte do filme, algo parece mudar no momento em que ele presencia a morte de um bebê javali, atingido pelo incêndio — o contato direto com a violência do mundo, o belo e o grotesco lado a lado.

 

“Existem cheiros nos sonhos, ou apenas imagens e sons?”: esta frase do livro de Leon pode ser também uma chave para entender o cinema, na visão de Petzold. Afinal, apesar de privilegiar uma abordagem bastante sintética em sua decupagem e até manter-se fiel a elementos realistas ao longo do filme, o diretor enfatiza sempre o que é estranho: uma natureza com cores e elementos voláteis, gestos que não parecem naturais, momentos de suspense com elementos dissonantes, como se a própria realidade fosse uma espécie de sonho e os personagens estivessem confinados em um globo de neve do cineasta (deve-se lembrar da chuva de cinzas, quando Nadja sai de casa no clímax do filme). Mas, afinal, mesmo a vida real pode ter algo de milagre, como Rohmer também mostrava — e Leon só entenderá isso na medida em que a aceite conforme se apresenta. Problema moral, como não poderia deixar de ser.

 

 

Biografia:

Luca Scupino é graduado em Cinema pela FAAP, onde realizou quatro curtas-metragens como diretor e roteirista. Atualmente é crítico e editor da Mnemocine, e pesquisa no campo da história do cinema e estética, além de colaborar na produtora Pena Capital e em diversas publicações online, como a Revista Galérica.

 

A cobertura do 47º Mostra Internacional de Cinema São Paulo faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos a toda a equipe da Assessoria da Mostra por todo o apoio na cobertura do evento.

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik, Luca Scupino, Fernando Oikawa e Gabriela Saragosa

Edição Adjunta e Assistente de Produção: Davi Krasilchik e Rayane Lima