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Bons Sonhos (2023, Ena Sendijarević) | 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Bons Sonhos (2023, Ena Sendijarević) | 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Por Fernando Oikawa Garcia

Embora ainda pouco conhecida, mesmo em circuitos cinéfilos, Ena Sendijarević é dona de uma obra dotada de impressionante coesão, ainda que breve. Nascida na Bósnia e tendo vivido uma série de mudanças até se radicar na Holanda, talvez seja por sua experiência enquanto imigrante que seus filmes tragam personagens ou em deslocamento constante — como no road-movie Me leve para um lugar legal (2019) —, ou em espaços de trânsito e impermanência — a loja de conveniência de Viajantes da Noite (2011,) ou os refugiados de Import/Export (2016). Habitar, portanto, nunca é em seus filmes uma questão simples ou pacificada. E dessa impossibilidade de existir plenamente nos espaços, surge em seus filmes uma consciência de um mal-estar civilizacional, o qual só pode ser respondido, no drama, através do estranhamento.

 

Os espaços de trânsito, o estranhamento e o mal estar estão no cerne do retrato colonial de Bons Sonhos (2023), segundo longa-metragem da cineasta. Desde a primeira cena, quando os criados de um senhor de terras preparam a seu mando uma armadilha para matar um tigre, é nítido que esta é uma crônica de uma tragédia anunciada. Não apenas para o felino, claro; a morte alcança o tigre, mas depois se torna um elemento que, aos poucos, passa a permear todos os espaços daquela realidade ocupada: estamos no início do século XX, em uma plantation nas Índias Orientais Holandesas, atual Indonésia. É este mundo, fundamentalmente, que dá origem à dialética central do filme, que se encontra entre a pulsão de morte que toma tudo e a consciência acerca dos absurdos que dão origem a essa pulsão. 

 

Quando o patriarca inesperadamente morre, sua partida se torna catalisadora de instabilidades na ordem colonial, estabelecendo uma disputa sobre o futuro daquelas terras. Há, aqui, um entrelaçamento de tramas pessoais, de holandeses e indonésios: ao redor da viúva Agathe (Renée Soutendijk, vencedora como Melhor Atriz no Festival de Locarno), giram seu filho e sua nora, a concubina indonésia Siti — com quem o patriarca teve um filho ― além de os trabalhadores da cana, um padre holandês e várias outras figuras. Tal estrutura de coro, bem como a natureza da história, poderia sugerir uma inclinação ao épico histórico, mas o longa sobrepõe a grandiloquência do drama de época ao revisionismo, temático e formal, por meio da farsa, em que procedimentos estéticos ironizam os modos dos holandeses, sem todavia perder de vista a violência das estruturas de poder. 

 

Se uma leitura mais superficial pode tentar aproximar Bons Sonhos da Nova Onda Grega, como em Yorgos Lanthimos (A Favorita, 2018), ou mesmo das provocações sociais de Ruben Östlund (Triângulo da Tristeza, 2022), qualquer comparação do tipo perde de vista que o choque, no trabalho da cineasta, não nasce da mesma misantropia habitual desses cineastas, aprecie-se ou não suas obras. Onde Lanthimos, Östlund e companhia exibem frequentemente um cinismo gratuito, que encontra o prazer no choque pelo choque, Sendijarević apoia-se no oposto — uma consciência humanista que critica a barbárie e encontra no absurdismo o signo capaz de traduzir em narrativa o fracasso dos modelos de sociabilidade. Tal como no teatro de Samuel Beckett, o absurdo nos devolve ao humano, não nos aliena dele.

 

“Alienação” talvez seja um termo central para refletir sobre Bons Sonhos. São recorrentes, no longa, cenas em que as personagens surgem anestesiadas ao insólito, ao improvável; em um dado momento, chega-se ao ponto que um tiro é dado numa festa, mas ninguém interrompe a dança. Avessa ao drama realista, essa falta de reação, reminiscente do cinema deadpan do finlandês Aki Kaurismäki, se traduz em lentos gestos, piadas inconclusas e tempos distendidos, valorizados em estranheza pelas composições centralizadas e o formato acadêmico 4:3 — ambos marcas estilísticas de Sendijarević, que aqui são articuladas em exercício pleno da autoralidade absurdista. Mesmo os intertítulos, separando as passagens do filme em capítulos, como os de um livro, remetem também a um estranhamento que, em última instância, aponta para os procedimentos constitutivos do caráter alegórico do filme.

 

O que isso sugere é a opacidade do drama, cerrado em si mesmo; daí a lembrança de Bertold Brecht. Porquanto o dramaturgo alemão elabora o conceito de Verfremdung, usualmente traduzido como “distanciamento” ou “estranhamento”, é essa a prática que modula o drama de Bons Sonhos. Distanciar é relembrar o público de sua posição diante da obra; a alienação das personagens, paradoxalmente, é a desalienação do público. Não deixa de ser curioso que, na composição da palavra, Verfremdung traga, dentro de si, a palavra fremd (estrangeiro). Aplicado ao filme holandês, é como se a elaboração brechtiana, realizada por meio do absurdismo, pudesse explicitar a condição de “estrangeiros” dos colonizadores, alheios e deslocados em terras que ocuparam — em outras palavras, elementos insólitos.

 

Na forma revisionista de Bons Sonhos, a plasticidade visual parece se tornar confirmação do caráter farsesco, improvavelmente estranho, de um filme cuja tensão estética reside no choque entre a imagem e a essência da realidade. E, nisso, Sendijarević destaca-se novamente como uma artesã de imagens: são memoráveis os planos que se obtêm através de um espelho rachado. No filme, os caleidoscópios de cores nos ambientes internos, justapostos ao verde ensolarado da plantação de cana, marcam os contrastes entre o natural e o fabricado; os planos vazios, quando dilatados, criam esperas vãs e delineiam, no fim, a própria impossibilidade (também política, diga-se de passagem) daqueles espaços.

 

Não à toa, há uma crescente de elementos surrealistas, alcançando a apoteose na sequência final, em quase dez minutos sem diálogos. As imagens deliram, em signos plásticos que entrelaçam a realidade e o onírico, encontrando nessa permuta a possibilidade de um desfecho para essa realidade de impossível conciliação. O que Sendijarević parece dizer é: diante do impossível e do absurdo, resta às histórias se tornarem sonhos, bons ou maus.

 

 

Biografia: 

Fernando Oikawa Garcia é graduando em Cinema na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), onde realizou projeto de pesquisa sobre o cineasta Fernando E. Solanas. É diretor e roteirista de três curta-metragens, buscando refletir nas produções seu interesse pelas possibilidades de diálogo entre cinema e literatura.

 

A cobertura do 47º Mostra Internacional de Cinema São Paulo faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos a toda a equipe da Assessoria da Mostra por todo o apoio na cobertura do evento.

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik, Luca Scupino, Fernando Oikawa e Gabriela Saragosa

Edição Adjunta e Assistente de Produção: Davi Krasilchik e Rayane Lima