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O Mal Não Existe (2023, Ryusuke Hamaguchi) | 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

O Mal Não Existe (2023, Ryusuke Hamaguchi) | 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

Por Davi Krasilchik

 

É difícil descrever aquilo que não se vê. Pairando sobre a humanidade por meio de diferentes  códigos morais, a maldade talvez seja um dos maiores mistérios de nossa espécie. É comum questionar até onde essa condição pode nos levar, e debates do gênero são especialmente frutíferos no cinema. O Mal Não Existe (2023) discute a relação entre o homem e a natureza e traz interessantes contribuições do diretor Ryûsuke Hamaguchi para esse assunto.

 

O filme acompanha a vida de um pequeno vilarejo do interior japonês, onde o equilíbrio ecológico se coloca como máxima e o humilde Takumi (Hitoshi Omika) cria sua filha pequena, Hana (Ryo Nishikawa). A convivência autossuficiente da comunidade passa a ser ameaçada pela chegada de uma empresa hoteleira que planeja implementar um projeto de glamping — espécie de “camping” com “glamour” — na região. Quando dois representantes da iniciativa resolvem pedir dicas para Takumi, uma série de confrontos são revelados.

 

Propondo diferentes formas de se observar o meio ali exposto, Hamaguchi não tem pressa em introduzir o seu microcosmo, invertendo a lógica de observação de seus bens naturais. O filme inicia com uma longa sequência em que acompanhamos, de cima para baixo, galhos de árvores banhadas pela neve. A obstrução do céu simboliza a perspectiva dos habitantes da região, renegados pela lógica histórica de determinação de dominados e soberanos.

 

Ainda que a filmografia de Hamaguchi esteja em um campo mais lúdico — o que, nem por isso, impede que determinadas passagens incorporem o debate ambientalista de maneira bastante explícita —, essa dinâmica da dominação se encontra nas atitudes da empresa empreendedora, que destila completa ignorância para com as necessidades particulares de organização da região. É como se a lógica do capital se impusesse sobre o ritmo paciente dos moradores, e a intromissão desses empresários se responsabiliza pela desestruturação do filme em si.

 

Esse fator entrega alívios cômicos e um esclarecimento, pelo menos na aparência, do tema ali em debate — procedimento que seria até de se estranhar na cinematografia de Hamaguchi, que propõe aqui o choque entre um cinema de dilatação do tempo e uma estrutura narrativa mais convencional, que exige conflitos claros e motivações evidentes para todos os acontecimentos. 

 

Se O Mal Não Existe parte justamente de uma intriga metafísica, insuficiente na afirmação vazia do próprio título, não surpreende que o maior dote do filme estaria na análise dessa intersecção entre o abstrato e o habitual, na investigação do ruído que se encontra entre o óbvio e o escondido. Após estabelecer com bastante calma a rotina de Takumi — que descobrimos ser uma espécie de faz-tudo local —, a tentativa de um dos agentes hoteleiros de aprender estratégias para uma melhor implementação do projeto, visto que o planejamento original destruiria a principal fonte de água do território, acaba desconfigurando as aparências mantidas durante a maior parte da duração da obra.

 

Em primeiro lugar, é perceptível como a câmera passa a ler aquele espaço de uma maneira diferente. Se antes as composições priorizam um preenchimento pictórico dos enquadramentos — havendo sempre diferentes camadas em um mesmo plano, moldado por galhos, amontoados de neve, folhas e afins, ditando um eterno diálogo entre as personagens e aquilo que se vê —, a partir desse momento, o filme anuncia  um esvaziamento. A incerteza quanto às intenções dos forasteiros cria uma atmosfera de insegurança que se esconde através das aparências. É como se a continuidade da proposta de glamping fosse posta em suspensão, e a dubiedade com relação às intenções dos funcionários, supostamente interessados em se adaptar ao modelo sustentável local, passasse a nos perseguir.

 

Para evidenciar a futilidade dessa interação entre representante do meio urbano e uma organização de vida mais ligada ao meio-ambiente, inclusive, Hamaguchi sugere que o exercício dos funcionários da empresa traz uma espécie de desequilíbrio, que paira na aldeia como uma ameaça invisível. O espaço vazio substitui as telas iniciais extremamente preenchidas e domina as noites sombrias de um vilarejo prestes a ser assolado.

 

Isso culmina no desaparecimento súbito de Hana, para o qual surgem pouquíssimas explicações. Esse evento delicado suspende a moral seguida por alguns até aqui, e leva a um final explosivo que deve, preferivelmente, se manter guardado. Basta dizer que a conclusão é a maneira encontrada pelo diretor de retratar o que é impossível de ser retratado, o que é súbito e inexplicável.

 

Da harmonia inicial até a eclosão de tensões enraizadas no universo do próprio filme e no tecido social que este se propõe a discutir, O Mal Não Existe reinventa a paciência de um diretor reconhecido por sua habilidade de dilatar o tempo e incorporar o estado metafísico de suas personagens na narrativa. Ainda que se arrisque por uma estrutura convencional em algumas de suas discussões, flertando com um discurso ambientalista bastante direto, o filme caminha rumo a uma conclusão inevitável, investigando um ruído gerado pela própria porosidade da moral humana.

 

 

Biografia:

Davi Galantier Krasilchik é estudante de Cinema e Jornalismo na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), onde já roteirizou e dirigiu dois curtas-metragens. Ele também já fotografou dois projetos curriculares, além de produções por fora, e escreve críticas e reportagens para meios como a revista universitária Vertovina e o site Nosso Cinema. A sua paixão pela Sétima Arte se manifesta desde a infância, e atualmente ele trabalha na Filmoteca da TV Cultura, onde ajuda a preservar esse material pelo qual tem tanta paixão.

 

A cobertura do 47º Mostra Internacional de Cinema São Paulo faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos a toda a equipe da Assessoria da Mostra por todo o apoio na cobertura do evento.

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik, Luca Scupino, Fernando Oikawa e Gabriela Saragosa

Edição Adjunta e Assistente de Produção: Davi Krasilchik e Rayane Lima