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Taxibol (2023, Tommaso Santambrogio) - Festival Internacional de Documentário de Melgaço em São Paulo 2023

Taxibol (2023, Tommaso Santambrogio) - Festival Internacional de Documentário de Melgaço em São Paulo 2023

Por Davi Krasilchik

 

Em uma viagem pelas ruas de Cuba, o prestigiado diretor filipino Lav Diaz conversa com o humilde taxista, Gustavo Fleita. Intimista, a câmera nos aproxima dos dois personagens, que discutem a respeito de suas convicções. Sem rumo aparente, eles trocam ideias sobre suas relações pessoais, origens e pretensões, despreocupados com o destino e a passagem do tempo: o importante ali é o que compartilham, a forma como a lente extraie os constrói.

 

Popularizado por seu estilo que propõe uma dilatação do tempo narrativo — e pelo preto e branco gráfico que aqui também se faz presente —, através do qual disseca espaços reais e traços específicos da cultura de seu país, Diaz explica a sua visão de cinema para Fleita. Seus filmes trazem um ritmo particular na maneira como investigam rostos, grupos e situações, sempre sustentados por acontecimentos reais, mas flertando, de alguma forma, com o misticismo. O diretor entende o cinema como ferramenta social, instrumento de conexão de histórias, sentimentos e reflexões, capaz de unificar indivíduos, crenças e até sistemas. É o efeito dessa simples troca entre plano e contraplano, unindo passageiro e motorista como sujeitos de uma mesma jornada.

 

Tem-se a introdução de Taxibol, projeto sucinto, de pouco menos de uma hora, que retorna ao uso mais primordial das imagens como reflexo de medos e memórias que transbordam entre diferentes consciências. Dirigido por Tommaso Santambrogio, o filme abandona o documentário quando Lav Diaz revela a intenção de sua vinda ao país: a busca pelo mitológico ex-general filipino, Juan Mijares Cruz, apoiador cruel da ditadura de Ferdinando Marcos, que jamais teria sido punido. Comovido pela suposta injustiça, o taxista Fleita decide ajudá-lo. 

 

Os dois logo desaparecem, e são substituídos pela construção ficcional de uma suposta mansão onde o criminoso viveria escondido, isolado em profundezas cubanas. Ainda que se atentem à materialidade desse ambiente, esses enquadramentos trazem uma dimensão fantástica, a aura de um lugar afastado da realidade. Funcionários lavram quilômetros e quilômetros de uma plantação, e preparam refeições solitárias para o dono da residência vazia. Nada lhes resta além dos cômodos vazios e dos gritos que ecoam em seus pesadelos.

 

Inventado ou não para o projeto, Juan Cruz simboliza um sistema de opressão legitimado durante mais de duas décadas nas Filipinas, responsável pela destruição de incontáveis vidas. Mais que a relação entre a casa, como lugar metafórico, e a sua presença fúnebre — sendo o ator Mario Limonta sempre desenhado com luzes suaves, que pouco o recortam de um espaço que parece sempre engoli-lo —, é interessante perceber como essa representação é conjurada, de alguma forma, pela dupla anterior.

 

Ao detalhar uma ansiada vingança, Lav Diaz destila remorso, ódio e até ingenuidade, sensações que tomam conta de seu parceiro de viagem e revelam a  universalidade do que é discutido. É nessa transmutação entre interior e representação que Taxibol se manifesta, dividido entre a observação objetiva de duas figuras reais e a encenação vampiresca de um regime de dores até hoje preservadas por registros de arquivo - não por acaso escolhidos para o desfecho pela montagem, que recorda a realidade por detrás dessa fabulação.

 

É curioso perceber uma certa infantilidade na maneira como o general acorda, amedrontado pelos fantasmas de seu passado, nas noites que o consomem, artifício dentro de um jogo entre traumas e plastificações. Existe ali uma pureza que remete às imagens como uma crença até primitiva, capaz de capturar e domesticar certas cicatrizes, ou simplesmente dar continuidade ao seu peso. Resta esse ciclo de descontinuidade entre autor e criação, que pela universalidade de interpretações, nunca deixará de se repetir. 

 

 

Biografia:

Davi Galantier Krasilchik é estudante de Cinema e Jornalismo na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), onde já roteirizou e dirigiu dois curtas-metragens. Ele também já fotografou dois projetos curriculares, além de produções por fora, e escreve críticas e reportagens para meios como a revista universitária Vertovina e o site Nosso Cinema. A sua paixão pela Sétima Arte se manifesta desde a infância, e atualmente ele trabalha na Filmoteca da TV Cultura, onde ajuda a preservar esse material pelo qual tem tanta paixão.