Amor, mulheres e flores (1984, Marta Rodriguez, Jorge Silva) | 13ª Mostra Ecofalante de Cinema Por Francesco Felix
O documentário colombiano Amor, mulheres e flores (1984), incluído no Panorama Histórico da 13ª Mostra Ecofalante de Cinema, se inicia com um poema. Jorge Silva, que realizou o filme junto de sua companheira, Marta Rodriguez, escreve sobre a simbologia da Flor. “Uma flor, todo um universo”, uma voz narra, sobre imagens de buquês lotados de cravos coloridos, vermelhos, brancos e rosas. O texto traz as clássicas imagens associadas às flores, feminilidade, delicadeza, sensualidade, mas, ao fim, questiona: “Quanto custa para produzir essa beleza?” É essa a pergunta que o casal de diretores do Novo Cinema Latino-Americano busca responder ao ir atrás das trabalhadoras por trás da indústria multimilionária de produção de flores na Colômbia. O filme que eles encontram nos relatos dessas funcionárias é um duro retrato das contradições em que essas mulheres estão imersas, em um diário embate entre a violência e as precariedades do trabalho com o amor, que resiste em pequenos atos e em lutas particulares.
Por trás de cada flor, há a morte. Os fungicidas utilizados pela industrialização do cultivo de flores são tóxicos e destrutivos, danificando o patrimônio natural, no solo, e causando danos irreversíveis à população trabalhadora. Nos relatos que os diretores captam, as mulheres estão inconformadas – se sentem merecedoras de tanto cuidado e zelo quanto as flores que produzem em massa. A lírica natural de seus depoimentos, carregados de imagens e figuras de linguagem, contrasta diretamente com o espanhol carregado de sotaque na fala decorada do CEO da empresa que as emprega, na qual ele orgulhosamente relata seus lucros e expansão de alcance internacional. Os diretores não evitam o elefante na sala: o capitalismo e o imperialismo são naturalmente os responsáveis pela lista de problemas que afligem a classe operária.
Todos sofrem com as dificuldades, mas o filme lança uma luz nas mulheres grávidas, que buscam estabilidade financeira e são especialmente atingidas pelas toxinas dos agrotóxicos utilizados. Estes são banidos na Europa, por seus danos comprovados à saúde, mas vendidos para uso na América Latina. A desumanização é constante e estrutural, a violência sexual é vista como inevitabilidade e parece que não há saída dessa somátoria de opressões. A câmera procura, pelos detalhes, trazer de volta a humanidade para essas trabalhadoras – um close no par de talheres no bolso traseiro da calça já é uma lembrança de que elas precisam almoçar, descansar, respirar. A violência é contraposta com o amor pela família, pelos filhos, a esperança de poder provê-los com uma vida mais fácil.
Mas os olhos irritados e inchados deixam claro que esse amor não está sendo suficiente, que a conta não está fechando. Os relatos são melancólicos, os diagnósticos médicos são irreversíveis e o trabalho não para. “A vida desacelera”, um dos fumigadores relata. Envelhecem mais rápido, se sentem incapacitados, inúteis após apenas alguns anos de trabalho. A contraposição vem no campo das ideias, no imaginário desses trabalhadores. O poema para a flor Margarida, declamado por um deles, a coloca como inalcançável, resistindo como símbolo mais do que como razão das mazelas. Surge a Flor e a Anti-Flor: uma cena de uma banca de rua parisiense, com as flores sendo compradas por namorados e crianças, é cortada direto para uma cena do descarte, ainda na Colômbia, das flores doentes, que não puderam ser vendidas, em grandes blocos de massa orgânica jogados em um caminhão de lixo. A violência é colocada ao lado da gentileza. Qual dessas é a flor que se busca, que se imagina? Qual dessas flores vale os sacrifícios cometidos pela sua produção?
O filme busca entender a condição da mulher trabalhadora dentro desse impasse, dentro de um sistema construído para a oprimir. O plano definitivo desse embate chega após o relato de uma das funcionárias que, mesmo após o diagnóstico de leucemia causado pelas toxinas, decide se casar. Proibida de ter filhos, cercada de todas as adversidades, ela decide continuar vivendo, e, na cerimônia, lá estão as flores, ornando a festa. Elas são alvo de olhares desviados, da lembrança de sua responsabilidade, mas ainda são presentes, inevitáveis – a tese do filme, em um só frame.
Quando essa mulher que se casou engravida, precisa deixar de tomar os remédios para o câncer, ou o bebê não vai nascer. Os motivos para não se revoltar deixam de existir. E, assim, elas se revoltam. Os diretores acompanham o início do movimento popular dessas trabalhadoras, suas manifestações, seu anúncio de greve. Elas têm sucessos iniciais, lutam por seus direitos unidas, e há um tom de esperança. Vemos sorrisos largos e lágrimas que não podem mais ser contidas quando elas falam sobre a importância de voltar a trabalhar, da situação difícil que passam, do quanto precisam do dinheiro, mas também viver, se alimentar, cuidar dos que amam. Esse amor, por hora, parece ter vencido o conflito.
O Novo Cinema Latino-Americano de Jorge Silva e Marta Rodriguez era influenciado pelos companheiros do cinema cubano com o ICAIC (Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica) e tinha um caráter contestador e anti-imperialista, atento às classes trabalhadoras. Mesmo que os militares tenham interrompido a felicidade, retirando as mulheres à força da fábrica, o movimento revolucionário não acabou ali. Nas palavras de uma delas, “a luta continua”. O paralelo que acontece no epílogo é com a história do próprio Jorge Silva, que tragicamente morreu antes da finalização do filme, perseguido pelos militares.
A luta das trabalhadoras de flores é a mesma luta do cinema colombiano, a luta do cinema político, contra a supressão e o autoritarismo. Essa luta foi travada na forma do documentário: foi a produção do filme que mobilizou a greve, a coleta dos depoimentos que iluminou a situação para as próprias vítimas dos abusos da empresa. A documentarista Gabriela Torres, em entrevista para o lançamento dessa restauração no festival de Cannes de 2023, disse que a diretora Marta Rodriguez considera este um de seus filmes mais efetivos, por ter despertado essas mulheres para a realidade e para os perigos de seu dia-a-dia no trabalho. Décadas depois, este continua a ter importância ímpar, trazendo essa luta para os olhos de toda uma nova geração com um trabalho de nível excelente.
Biografia
Francesco Felix concluiu o curso de Cinema pela FAAP e atualmente estuda Letras na FFLCH. Interessado em tudo que envolve a cinefilia, da preservação e restauração de clássicos até a invenção de futuros experimentais. Quando vê um filme, torce sempre para um encantamento, que divida o tempo entre o antes e o depois dos créditos rolarem. Felizmente, acontece muito.
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Coordenação e Idealização: Flávio Brito
Produção e Edição: Bruno Dias
Edição: Davi Krasilchik, Luca Scupino e Gabriela Saragosa
Edição Adjunta e Assistente de Produção: Davi Krasilchik e Caio Cavalcanti
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