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Kinoforum | Mostra Brasil 12 – Que universo é esse?

Por Taline Caetano

Na Mostra Brasil XII do Festival Kinoforum, denominada “Que universo é esse?”, a curadoria apresenta filmes de olhar empático e sensível sobre as pessoas e suas relações consigo mesmas, com os outros e com o mundo.

A Mostra Brasil é a maior do festival Kinoforum, contando com múltiplas divisões que abarcam diferentes temas, tratados por seletos curtas-metragens brasileiros deste e do último ano. Na 12ª divisão, denominada “Que Universo é Esse?”, cinco filmes discutem de formas diferentes o que é estar no mundo e se entender nele, quais dificuldades nos são postas e o que elas causam.

No primeiro filme da mostra, O Chá de Alice (2022) dirigido por Simone Spoladore, temos uma releitura do conto de “Alice no País das Maravilhas” (Lewis Caroll), mais especificamente no chá da tarde que a garota tem com o chapeleiro maluco. O filme exalta o torpor do local mágico que é o País das Maravilhas, uma vez que Alice passa a maior parte do tempo dormindo ou andando de forma sonambúlica. Enquanto dorme, os personagens ao seu redor discutem o seu destino e a sua situação, lhe impedindo de interferir por não estar acordada. O grande questionamento posto é que na verdade ela tem muito mais controle de  si do que os seus companheiros de aventura julgam, se colocando como tal ao desenvolver do idílico filme, entretanto, seu cansaço e dormência são obstáculos para que ela consiga se expressar. Esse estado nos traz uma relação com a juventude atual, com o status da mulher contemporânea que luta por seu lugar mesmo sendo superestimulada. 

Com visuais interessantes e uma fotografia estilizada, o curta sabe como tratar, através de uma alegoria psicológica, a visão de uma jovem mulher que, apesar de parecer perdida, sabe muito bem para onde vai.

Em seguida vem o filme Tapuia (2022), dirigido por Begê Muniz e Kay Sara. A história remonta ao sangrento passado da colonização, imigração e exploração dos povos indígenas e suas terras no Brasil. Arú é uma mulher indígena que foge de dois exploradores brancos logo após as suas tropas terem destruído sua aldeia e matado todos os seus habitantes. Apesar de ser a única sobrevivente, ela tem ferimentos profundos e é encontrada por Bianca, uma italiana imigrante que vive em uma fazenda próxima. Bianca a ajuda e lhe fornece comida, mas a sua família não aprova a decisão e se preocupa com a chegada dos matadores. 

O curta-metragem trata de um assunto muito importante e apagado na história brasileira,  fazendo-o de forma bela ao contemplar os espaços em que se passa.  A relação de Bianca e Arú é bem didática e traz o peso das diferenças em como as suas origens são tratadas, a do imigrante europeu que invade  terras contraposta ao habitante originário que é expulso e morto. É um filme potente e de grande relevância sobre a formação histórica brasileira.

Deixa (2023), de Mariana Jaspe, é o terceiro filme da divisão. Ele aborda a história de Carmem, uma mulher de cerca de 60 anos que recebe uma ligação do  marido preso, que lhe diz que irá voltar. Ela  fica furiosa e tensa, interferindo  em seu relacionamento atual com Pedro, um homem mais novo que a ama muito. O curta  trata de diversos limites que são impostos à mulher, desde a  suposta devoção a um marido ausente e inconsequente até a sua insegurança em  se relacionar com um homem mais jovem do que ela e todos os preconceitos consequentes disso. 

O romance entre Carmem e Pedro é acolhedor, as suas cenas trazem uma conexão que vai além das aparências e moldes da sociedade. Enquanto isso, mesmo longe e sem contato com ela, seu marido ainda a coloca em um lugar de submissão e servidão. Ao trazer esses questionamentos, o filme retrata com delicadeza a situação dessa mulher, que apesar da grande força , demonstra  fragilidades e medos, tentando manter  a esperança de  ser feliz à sua própria maneira. 

O papel da mulher é um dos temas mais discutidos nos dias de hoje, mas muitas vezes falta um olhar carinhoso para as personagens femininas no cinema. Mariana Jaspe traz esse  frescor e uma liberdade importantes para as telas de cinema atualmente,. Isso faz de Deixa um filme belo e potente em seu equilíbrio e crítica.

O próximo filme da 12ª divisão da Mostra Brasil é Quentinha (2022), de Rwanyto Oscar Santos. De forma vibrante e divertida, o filme nos mostra um pouco da vida do jovem casal Wesley e Simone, que ganha a vida cozinhando e entregando marmitas em sua região. Wesley não está satisfeito com os ganhos e tenta expandir a sua área de entrega. Por sua vez, Simone também demonstra interesse em aumentar os ganhos mensais, mas ainda não sabe  como. Logo vemos que Wesley não apenas entrega marmitas, e sim oferece serviços íntimos junto às entregas de comida.

A relação do casal se dá de forma casual e informal, dando aos dois uma intimidade muito interessante. As dificuldades econômicas e suas implicações não se colocam acima da união dos personagens, trazendo uma leveza e descontração á história. É muito interessante ver filmes que tratam do Brasil como ele é, com suas contradições e qualidades, sem que se tente  esconder as suas condições  ou mudá-lo. Rwanyto acerta na direção contemplativa e focada nos locais compartilhados pelo casal, dedicando muita empatia aos  seus personagens ao  inseri-los naquele universo tão real e brasileiro.

As Miçangas (2023), de Emanuel Lavor e Rafaela Camelo, é o filme que fecha essa divisão e traz um outro olhar sobre a relação entre a mulher, seu corpo e seu espaço no mundo. Também exibido na Mostra Competitiva da Berlinale de 2023, o curta-metragem tem um ritmo e um entendimento de tempo muito aguçados. Através da  relação de duas irmãs que fazem um retiro em uma fazenda, o filme revela aos poucos os seus motivos e intenções. A relação das irmãs é marcada por uma apatia vinda do desconforto com uma gravidez indesejada e o possível aborto que está por vir. O espaço da mulher como genitora é colocado pela sociedade como o mais importante de sua vida, mas a dicotomia entre o amor e o distanciamento das irmãs explicita como este espaço pré-concebido ignora e põe em jogo as outras relações em suas vidas.

Enquanto as duas mulheres convivem naquele espaço, é mostrada uma cobra que vagueia pela  casa,  quase  uma miragem que invade lentamente o espaço tão pessoal daquelas garotas. Na mitologia (principalmente ocidental e cristã), a cobra é geralmente colocada como símbolo de perigo, pecado e traição. No filme, ela surge justamente como uma invasora na casa pela qual passa despercebida de início, mas é expulsa ao final, sem sofrer qualquer julgamento. O animal vem como uma dicotomia nesta narrativa: a invasão e o pertencimento. Ela diz muito sobre como algo indesejado e que pode causar extremo medo, pode ser expulso de forma não-violenta, apenas é recolocado para seguir seu curso natural. Sendo assim, a forma como  o filme trata o aborto e a relação entre mulheres é de extrema compaixão, abrindo um olhar sutil sobre a mulher jovem, em crise com o seu próprio corpo, e o papel na família e sociedade, que aqui não julga mas lhe dá a possibilidade de se mostrar como é. 

A seleção de filmes da 12ª Mostra Brasil do Festival Kinoforum: “Que universo é esse?” consegue abranger estilos cinematográficos e pautas muito distintas, mas que se interligam de forma a criar uma curadoria perspicaz, que celebra as diferenças e como elas convivem em na sociedade, trazendo filmes que nos oferecem um olhar empático e sensível sobre as pessoas e suas relações consigo mesmas, com os outros e com o mundo.

Biografia

Taline Caetano é formada em Cinema na FAAP. Tendo seu trabalho enfocado na Direção de Arte, sempre busca explorar a relação entre a narrativa e a imagem. Entrou na Mnemocine em 2023, ao cobrir a Berlinale e a Mostra Kinoforum do mesmo ano.

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