Na 12° edição da Mostra Ecofalante, a sessão de Mostra Histórica contemplou filmes como Emitaï (1971), A batalha de Argel (1966), I heard it through the grapevine (1982) e Cabra marcado para morrer (1984). Seguindo o tema de fraturas pós-coloniais, os clássicos escolhidos constroem contra-documentos sobre o chamado Plantacionoceno.
Por Bianca Ayuri
Apesar de não retratarem os períodos históricos em que foram realizados, os filmes selecionados pela curadoria da mostra Lutas do Plantacionoceno foram todos produzidos dentro de um recorte que se estende da década de 1960 à de 80. Eles falam de suas realidades nacionais específicas e fazem um esforço no sentido de retomar a própria História e refletir a causalidade entre um mundo globalizado e os problemas sócio-políticos que enfrentam. Cada qual constrói, assim, um retrato do plantacionoceno – que, como explica a filósofa e zoóloga estadunidense Donna Haraway, descreve um período a partir das transformações devastadoras no sistema de extração intensivo das plantations, baseada no trabalho escravo e outras formas de mão-de-obra transportada.
O fato relevante na seleção desses filmes não é, no entanto, meramente suas datas de lançamento, senão a escolha por obras de cineastas que falam a partir do lado mais fraco das trocas comerciais sob o capitalismo global. Suprimidos por narrativas amplamente comercializadas que constroem a História oficial, oferecem sua versão da opressão enquanto contra-documento à história do cinema. Como defende o historiador Marc Ferro, filmes constituem um contra-poder autônomo em face dos diversos poderes que submetem uma sociedade, baseando-se na liberdade para exprimir uma ideologia independente que se manifesta mesmo nos regimes totalitários, resistindo, portanto, para além deles.
Nesse sentido, foi possível observar Emitaï (1971), do diretor senegalês Ousmane Sembène, enquanto narrativa sobre a reorganização que esse sistema impôs a muitas das comunidades da África Subsaariana como parte do projeto de colonização europeu. Aproximando-se do final da Segunda Guerra Mundial e com pelo menos quatro séculos de tráfico transatlântico de pessoas e escravização sistemática dos povos desse continente, o filme retrata o alistamento compulsório de jovens senegaleses para lutar pela França, no front europeu contra os nazistas. Sembène se preocupa, contudo, para que a identificação se dê pelo ponto de vista da comunidade senegalesa, explicitando as injustiças e hipocrisias de um colonizador que, além de sequestrar a juventude de uma aldeia para que esta lute suas guerras, impõe também que entregue sua colheita para alimentá-lo no ultramar.
Sembène demonstra, assim, os impactos sentidos às margens do capitalismo global e a trágica extinção de povos inteiros que se recusam à integração. Trata-se de um filme de guerra cujo campo de batalha vai desde o secularismo imperialista, até a coletividade feminina, ainda na década de 1970. Porém, a censura francesa que a obra sofreu logo após seu lançamento fez com que os filmes de Ousmane Sembène, considerado pai do Cinema Africano, fossem relegados a uma repressão estrutural e se tornassem conhecimento apenas de uma minoria cinéfila. Daí a relevância que possui a participação de Emitaï em uma programação sobre narrativas decoloniais no século XX.
Ainda no tópico do imperialismo francês e contribuindo para a construção de uma História que vem a contrapelo da oficial, o filme A batalha de Argel (1966), do italiano Gillo Pontecorvo, atendendo a certos moldes do cinema clássico, permanece um marco no retrato da luta decolonial. Mesmo se aproximando do cine-jornalismo, com narrações in-off que parecem ler manchetes e panfletos da FLN, dispondo de iluminação natural e locações urbanas reais, ressalta-se: não há nada de documental no filme. As escolhas do diretor são tomadas no sentido da hiper-dramatização de eventos que, neste caso, implicam em um compromisso estético que se sobrepõe ao fato histórico retratado em certos momentos.
Ao tratar da individualidade das visões políticas dos personagens líderes da Frente de Libertação Nacional (FLN) da Argélia, e concedendo o mesmo espaço ao comandante do exército francês, para que este defenda seus próprios métodos de tortura, A batalha de Argel se recusa a levantar bandeiras. O filme foi bem sucedido, em seu contexto de lançamento, e padeceu ainda pelos mesmos motivos de ambiguidade moral, interpretado tanto como uma defesa dos métodos radicais contra o colonialismo e pela soberania nacional, como também enquanto apologia à prática de tortura para manutenção do poder. Em 2003, por exemplo, houve uma emblemática exibição fechada do filme no Pentágono, Estados Unidos, pela forma com que trata de assuntos como o contra-terrorismo, a repressão de insurgências e a eficácia da tortura na obtenção de informações estratégicas.
Essa ambivalência do filme de Pontecorvo e sua qualidade técnica são, talvez, os motivos pelos quais a narrativa dissidente do filme – isto é, a humanização daqueles que lutaram pelas causas argelinas e o debate decolonial – tenha conseguido se difundir pelo meio cinematográfico e contrapor-se à história oficial na época em que foi produzido. Assim, à argumentação em favor da libertação da Argélia foi permitido um nível de transitabilidade perante as narrativas dominadas pelas potências imperialistas que o filme teria experimentado, fosse apenas uma propaganda da FLN.
Por sua vez, I heard it through the grapevine (1982), de Dick Fontaine e Pat Hartley, trata exatamente da hipocrisia com que, ao longo do tempo, as narrativas dissidentes são absorvidas e passam a integrar também o discurso oficial de forma vazia. Ao longo do filme, a meticulosa atuação de James Baldwin, famoso escritor e crítico estadunidense, vem para relacionar os efeitos políticos gerados pelas contradições do plantacionoceno. Nesse road movie, entrevistas com ativistas e estudiosos do Movimento por Direitos Civis nos EUA são mescladas com imagens de arquivo, progredindo por uma retomada histórica para explicar a falsa sensação de equidade racial que se experimentava no país e mascarava a permanência da desigualdade.
O filme constrói um retrato complexo dos efeitos sociais gerados dentro de um sistema que organizou a natureza e as comunidades para a acumulação de capital, em que a democracia é experimentada por minorias enquanto fachada política. Há um ponto de inflexão no filme que concentra a discussão proposta, quando Baldwin se aventura a dizer que o monumento a Martin Luther King Jr. em Atlanta “se tornou absolutamente tão irrelevante quanto o Lincoln Memorial”. Ele parte, então, para demonstrar o difícil argumento da falibilidade da luta de duas décadas anteriores em um sistema disposto a realocar e comercializar, inclusive, narrativas dissidentes quando estas se mostrarem rentáveis.
A obra retrata a morte fria de um movimento social e os efeitos políticos de uma integração superficial, com impactos sócio-econômicos que não acompanham a sensação propagandeada pelo governo de equidade racial. Há uma tentativa de demonstrar as contradições que enfraqueceram a luta, ao passo que as os discursos potentes de líderes do movimento negro foram repropositados e esvaziados para fazer parte da História oficial do país. Não obstante, I heard it through the grapevine busca tornar acessível o complexo debate sociológico que propõe, conciliando a demonstração de contra-documentos com um didatismo que permite uma fácil identificação com a lógica decolonial.
Paralelamente à observação dos impactos políticos e sociais gerados pela submissão a uma forma exploratória de organização do mundo, a Ecofalante exibiu ainda um dos clássicos de Eduardo Coutinho, Cabra marcado para morrer (1984). O filme é emblemático da censura que se impôs no cinema brasileiro uma vez que, iniciado em 1964 como obra de ficção, é paralizado por ocasião da ditadura militar e retomado somente em 1981 enquanto documentário, com a reabertura política do país, com um argumento disposto a incorporar os eventos políticos desse meio-tempo.
Dessa forma, “Cabra-84” se desdobra não mais apenas sobre a luta no campo, senão também sob o signo da censura de um governo autoritário que sempre esteve à procura de bodes expiatórios para enfraquecer a oposição. Assim, enquanto a equipe de filmagem é perseguida e tem de deixar a locação em que filmavam o Cabra original, acompanhamos a publicação em fontes oficiais da apreensão de material subversivo – filmes, armas e holofotes – no Engenho da Galileia, localizado na cidade de Vitória de Santo Antão (PE) onde o filme se passa. O tom irônico, entretanto, não diminui a severidade da situação enfrentada no campo durante a ditadura, que foi capaz de sufocar todo um movimento e apagar completamente a existência de trabalhadores recontando os fatos.
A versão do filme na década de 1980 passa a retratar a incongruência desse sistema baseado em injustiças e a supressão de minorias através da apresentação de entrevistas e contra-documentos, que vão de encontro com a narrativa oficial disseminada sobre João Pedro Teixeira, um líder camponês assassinado a mando de latifundiários. Assim, Cabra apresenta um dos efeitos diretos da relação predatória existente no campo, propiciada pelo governo militar.
Os filmes ressaltados aqui fazem parte de uma seleção de 17 obras que constituíram a seção de Mostra Histórica da Ecofalante, por serem emblemáticas como discurso sobre as fraturas pós-coloniais em diversas sociedades sujeitas à globalização. Os clássicos escolhidos corroboram para um esforço coletivo de conscientização sobre nosso momento histórico e nosso lugar dentro de um sistema de organização e exploração orientado pela acumulação primitiva, a partir de importantes fragmentos de um período avançado do plantacionoceno, que vão na contramão da história oficial.
Biografia
Bianca Ayuri é estudante de Cinema na FAAP. Atualmente, dedica-se à montagem de filmes universitários e edição de vídeos institucionais, produzindo conteúdos multimeios.
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A cobertura da 12ª Mostra Ecofalante de Cinema faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.
Agradecemos à Atti Comunicação e Ideias e Francisco Cesar Filho por todo o apoio na cobertura do evento.
Equipe Jovens Críticos Mnemocine:
Coordenação e Idealização: Flávio Brito
Produção: Bruno Dias
Edição: Luca Scupino
Edição Adjunta e Organização: Rayane Lima
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