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Três possibilidades de um final feliz no filme “Amores Possíveis”

Por Rosinha Spiewak Brener

Sandra Werneck, diretora do filme Amores Possíveis (2001), vem de uma tradição de curta-metragens (Guerra dos Meninos, Comunhão, Guerra de Canudos), com os quais ganhou alguns prêmios. Naquele período, seu objetivo era trabalhar com problemas sociais. Seu primeiro longa, Pequeno Dicionário Amoroso, dedicou ao relacionamento de um casal que se encontra, se ama e se separa. O filme foi um sucesso de público, de crítica e de bilheteria.

Para o seu segundo longa, Amores Possíveis (premiado como melhor filme latino-americano no Sundance 2001, na Flórida), Sandra joga com três possibilidades de um final. Carlos (Murilo Benício) marca um encontro com Júlia (Carolina Ferraz), colega de faculdade, à porta do cinema. Ela não vem. Como seria o reencontro do casal, quinze anos depois? Com esta pequena história, a diretora cria três possibilidades de um final.

Numa entrevista a nós concedida (junho de 1999), a diretora disse: “Não nego que duas das três histórias de Amores Possíveis sejam retiradas de minha vivência pessoal, assim como algumas situações criadas em Pequeno Dicionário Amoroso. Meu projeto é autoral, embora a contribuição de Paulo Halm no roteiro e de Walter Carvalho na fotografia tenha sido de enorme valia”, diz Sandra. Para a diretora, o desafio desse filme “era encontrar uma nova maneira de armar/narrar as histórias”, diz Luiz Carlos Merten. (1)

Para coordenar a trilha musical de Amores possíveis, Sandra Werneck convidou João Nabuco. O músico foi seu parceiro em Pequeno Dicionário Amoroso.

Narrativa e música

Carlos é o centro da narrativa e as histórias se desenvolvem após um sonho que ele teve.

Os primeiros créditos do filme não informam o que está acontecendo. Num dia de chuva torrencial, Carlos, ansioso, aguarda a chegada de Júlia, com quem marcou um encontro. A próxima tomada mostra planta-de-pés. A câmera caminha sobre as pernas focalizando a de uma mulher e de um homem, deitados na cama. Com o movimento ascendente da câmera, o espectador tem contato com Carlos 1 (Murilo Benício), em close, acordado, pensativo. Maria (Beth Goulard), sua esposa, quer saber o que aconteceu. “Foi um sonho que tive”, diz Carlos. Num segundo momento, a cena que traz a planta-dos-pés se repete, mas com um casal homossexual. Carlos 2 é um dos parceiros e a frase dita por ele é a mesma da primeira história: “Tive um sonho”.

Num terceiro momento, nova repetição ocorre mas a câmera não mostra a planta dos pés; mostra somente as cobertas, estacionando, em close, em Carlos 3 dormindo. O espectador fica sabendo que o jovem não dormiu só quando sua mãe o desperta, encontrando uma jovem sob as cobertas. Nem Carlos sabe quem é a “criatura”. O sonho do qual Carlos fala na primeira história tem continuidade após a apresentação do personagem nas três histórias, em cena que se remete, novamente, à porta do cinema, com o jovem, desolado, sentado no banco, certo de que Júlia não virá. Não fica claro se a continuidade do sonho se dá com Carlos acordado, isto é, relembrando, ou se essa continuidade pertence ao sonho verdadeiro de Carlos. Voltando à primeira história, em câmera alta, duas fatias de pão pulam da tostadeira. Um travelling mostra a mesa do café posta e o casal, Carlos e Maria, sentados.

Na segunda história, a cena da tostadeira se repete com o travelling estacionando no casal Carlos e Pedro. Carlos quer a todo custo que Pedro desperte para apanhar Lucas, seu filho, e levá-lo para passear.

Na terceira história nova repetição da cena da tostadeira, só que o aparelho não é o mesmo. As torradas saem de lado, diferentemente do que acontece nas duas primeiras histórias; pulam para cima, o que pode ser uma indicação de que essa história não se desenrolará, exatamente, como as duas primeiras.

Nos poucos momentos de projeção, percebe-se que há um descontinuidade narrativa e que até esse momento, pouca coisa é explicada. Há um presente (com Carlos falando do sonho), em flashback, um passado (com o sonho de Carlos esperando por Júlia) e um futuro, com as três possibilidades de final, se Carlos reencontrar Júlia.

Michel Chion (1989: 165) fala de três tipos de obstáculos que podem ocorrer durante uma narrativa. Em uma delas menciona: “A complicação de natureza acidental e temporária”. É precisamente o que ocorre em Amores Possíveis: a chuva atrapalhou o encontro entre Carlos e Júlia.

Durante o transcorrer de Amores Possíveis, as cenas se processam com os acontecimentos se desenrolando, repetidamente, em cada uma das histórias, na mesma sequência, mas alternadas com a cena do sonho.

O filme Corra, Lola, Corra (1998), do diretor alemão Tom Tyckwer, conta uma mesma história, com três possibilidades de final. A diferença entre a narrativa do diretor alemão e a de Sandra Werneck ocorre na descontinuidade da narrativa da diretora brasileira, enquanto na obra de Tyckwer cada história é contada com um começo, um meio e um fim. Ela começa, se desenvolve e termina, sequencialmente.

Os homens

Os personagens masculinos são três: Carlos, em três tempos; Pedro, em três tempos e Lucas, o garotinho, filho de Carlos.

O primeiro Carlos é um homem introspectivo, fala pouco, usa óculos, bigode e tem a barba por fazer. É casado com Maria e se prepara para trabalhar. Sua roupa demonstra que seja um executivo.

O segundo Carlos vive uma vida sexual dupla: já foi casado com Júlia e tem um filho; agora, mora com Pedro, seu parceiro. Ele usa roupa esportiva e a narrativa não deixa claro o que faz.

O terceiro Carlos usa roupa informal e é protegido pela mãe, como ele mesmo diz: “Ela me protege do assédio das mulheres e eu lhe faço companhia”. Ele encontra defeitos em todas namoradas, está à procura da mulher ideal e assim “estará livre das noites ensandecidas”. Na realidade, a mulher ideal está ao seu lado: é sua mãe. Mas, como ela diz: “Comigo não poderá dormir”. Carlos tem um compromisso de trabalho marcado.

Na primeira história, Pedro trabalha com Carlos. É homossexual, mas discreto, e está animado com o novo contrato de trabalho assinado. O espectador fica sabendo que ambos são advogados. Pedro não acredita em sonhos, está à espera do grande amor de sua vida (e deixa claro ser Carlos).

Na segunda história, Pedro é a mulher de Carlos. Assume as tarefas da casa, sendo um companheiro fiel ao parceiro, e gosta de elogios. Ele diz: “Talvez eu queira ouvir um elogio. Que tal o espaguete?” Pedro sente ciúmes de Júlia, ex-esposa de Carlos, porque acredita que o companheiro ainda ame a mulher.

Na terceira história, Pedro trabalha com Carlos, é homossexual assumido, tem os cabelos tingidos e quer, a todo custo, mostrar a Carlos que há nele uma tendência homossexual. Pedro ama Carlos e está se “oferecendo” ao colega. Ele acha que Carlos não está preparado para encontrar a mulher ideal.

Os três Carlos e os três Pedros são homens inseguros, mas com diferentes graus de insegurança. O primeiro não está feliz com a esposa, mas ela representa a segurança que a ele falta. O segundo é o menos inseguro dos três. Sente-se seguro com Pedro, mas não descarta a possibilidade de reatar com a ex-esposa. O terceiro Carlos tem a mãe como porto seguro. Precisa dela para livrá-lo das namoradas incômodas. Nas três histórias, Pedro é solitário. Na primeira, espera por Carlos. Na segunda, se sente só, quando tem dúvidas sobre os verdadeiros sentimentos de Carlos. Na terceira história, Pedro espera por um futuro melhor. Lucas, filho de Carlos e Júlia, na segunda história, não entende o que acontece com o relacionamento de seus pais e nem qual é a participação de Pedro no contexto.

Sobre o papel dos personagens masculinos, Marvey diz: “Os heróis masculinos idealizados da tela devolvem ao espectador masculino seu ego mais perfeito espelhado, junto com uma sensação de domínio e controle” (Kaplan. Apud. 1995:50). Em Amores Possíveis, Carlos é o herói que todo espectador masculino gostaria de ser. Sofrer como ele, suas vitórias e suas frustrações, é o seu desejo.

As mulheres

As personagens femininas são: Júlia, em três tempos; Maria, esposa de Carlos na primeira história e Sônia, a mãe de Carlos, na terceira história.

Na primeira história, Júlia é uma mulher exuberante, aparentemente segura e forte. O reencontro entre Carlos e Júlia ocorre numa exposição de artes plásticas. Ela se aproxima de Carlos, perguntando se ele gostou do filme. Através do diálogo, o espectador percebe que Júlia está arrependida de não ter encontrado Carlos quinze anos atrás. Olha para a mão dele e percebe a aliança no dedo.

Júlia é uma mulher insegura. Ela tenta contar a Maria sobre seu relacionamento com Carlos, mas se acovarda e nada diz. Seus cabelos encostam nos ombros. Laura Marvey, em interessante ensaio, fala sobre o papel de personagens femininas em filmes: “Para a mulher são dadas apenas figuras vitimizadas e impotentes que, longe de serem perfeitas, ainda reforçam um sentimento básico preexistente de inutilidade” (Kaplan. Apud, 1995:50).

Na segunda história, Júlia está “machucada”. Carlos deixou-a para viver com um colega com quem jogava futebol. Ela é uma mulher fraca, ainda apaixonada pelo ex-marido. Seus temores são voltar a viver com Carlos (embora, no íntimo, seja o que deseja) e deixar Lucas com o pai. Teme um assédio sexual, por parte de Pedro, sobre o filho. Seu cabelo é curto.

Na terceira história, Júlia busca encontrar o homem ideal através de um pequeno aparelho, um localizador de alma gêmea. Reencontra Carlos, que também procura a mulher ideal, tendo nas mãos o mesmo aparelho. Júlia é uma mulher arrojada, jovem de espírito e pronta a reatar o que deixou há quinze anos: namorar Carlos. Seu cabelo é encaracolado e de corte reto.

Maria, esposa de Carlos, só aparece na primeira história. Ela é uma mulher forte, embora sua maneira de falar seja delicada. Consegue ultrapassar, com galhardia, situações difíceis: a primeira, o encontro com Júlia na exposição, onde fica claro que a antiga namorada de Carlos ainda está disponível para reatar algo que ficou incompleto; e mais tarde quando Júlia tenta contar seu relacionamento com Carlos. Maria pressente que algo aconteceu entre eles, mas está segura de que o marido voltará aos seus braços.

Sônia, mãe de Carlos, só aparece na terceira história. Ela é uma mãe controladora protegendo e preservando o filho. Cuida da pontualidade dos encontros de trabalho de Carlos, de sua vida sexual e de sua aparência. Irene Ravache explica: “Como mãe, não dá para ficar de braços cruzados diante de algumas coisas e também não dá para ficar controlando o tempo todo” (Sardi. 2001:149).

No final, Sônia dá uma virada ao encontrar um companheiro, demonstrando que não tinha olhos só para o filho. Estava também à procura do homem ideal, assim como o filho buscava uma mulher ideal. Sônia dá a indicação de que “a diferença pode ser coisa bem bacana”.

Navios

No filme, o navio tem um significado especial. Ele prefixa a vontade que os personagens têm de mudar: mudar o modo de vida, mudar de parceiro, mudar de cidade. O navio é visto, pela primeira vez, com Carlos 1 e Pedro no cais do porto, numa indicação de que ambos gostariam de estar em outra situação. Carlos, possivelmente, encontrando a mulher que espera há quinze anos, e Pedro, manter relação o amor de sua vida: Carlos.

Na segunda história, o navio não aparece, mas há um momento em que Carlos 2 e Pedro nadam. Possivelmente a água, neste caso, tenha o significado de limpeza, no sentido de “mudança”: Carlos 2, indeciso, não sabe se volta para a ex-esposa ou fica com Pedro.

Na terceira história, o espectador vê o cais e o navio ancorado, pronto para zarpar, assim como Carlos 3 irá zarpar numa aventura, que possivelmente será definitiva: encontrará a mulher ideal.

O final das histórias traz surpresas. Carlos 1 volta para o porto seguro, para Maria, sua esposa. Carlos 2 consolida sua relação com Pedro e Carlos 3 envia para Júlia um bilhete de cinema, para assistirem ao mesmo filme que deixaram de ver há quinze anos: Amores Possíveis.

Amores possíveis traz para o cinema brasileiro uma nova forma de narrar. Isto se deve ao trabalho de Sandra Werneck, que já em seu primeiro longa, Pequeno Dicionário Amoroso, demonstrou possuir característica autoral para narrar histórias. Amores Possíveis, com suas três possibilidades de final feliz tem, em cada uma, personagens com características diferentes, embora sejam os mesmos.

Na realidade, o primeira longa da diretora é um filme comercial, haja visto o número de pessoas que o assistiram. Amores Possíveis tem outra característica: trata-se de um filme mais complexo, produzido para um público seleto. Possivelmente, não terá o mesmo número de espectadores que o filme anterior.


Bibliografia

  • CHION, Michel. O Roteiro de Cinema. São Paulo, Martins Fontes, 1989.
  • HALM, Paulo. Amores Possíveis. Rio de Janeiro, Objetiva, 2001.
  • KAPLAN, E. Ann. A mulher e o cinema. Rio de Janeiro, Rocco, 1995.

    Periódicos:
  • Merten, L. C. O Estado de São Paulo, 30/03/01, Caderno 2, pg D3.

Biografia
Rosinha Spiewak Brener é Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP.

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