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A Caverna de Platão e o Cinema Clássico

Por Cláudia Bavagnoli

Introdução

Este trabalho aborda a relação entre o mito da caverna de Platão e o cinema clássico americano. São desenvolvidos os seguintes assuntos: o valor do mito em si, a comparação de seu mecanismo com o do cinema, os métodos do cinema clássico e seu tipo de abordagem, a identificação do homem na caverna e do espectador no cinema clássico, as divergências entre o homem na caverna e no cinema clássico.

O mito da caverna

No Livro VII de A República, Platão relata o diálogo de Sócrates e Glauco sobre a condição humana em torno da oposição instrução versus ignorância. Sócrates descreve o percurso que o homem deve fazer para, a partir do mundo sensível, formado pelas imagens e aparências — cópias do mundo das Ideias —, atingir esse segundo — o mundo inteligível, formado pelas Ideias eternas. A ascensão é obtida por intermédio da razão: pela busca de conhecimento, da Justiça, da Verdade e do Belo se atinge o Bem, fonte de toda luz.

Sócrates expõe esses pensamentos através do mito alegórico da cavernaO comportamento do espectador talvez não pudesse ser diferente. A vida contemporânea – marcada por uma sociedade predominantemente massificada, por trabalho mecanizado, e pelo constante desafio de permanecer no mercado – necessita de sensações e de emoções que façam o homem voltar a se sentir humano, deixar o estado “máquina” e retornar ao estado “indivíduo”. E isso o cinema clássico realiza com total habilidade: ele acorda o homem para uma vida mundana, mas sensível.
Contudo, talvez as situações comparadas sejam contrárias quanto aos fins: na caverna, a luz exterior é almejada visando o abandono do mundo sensível em prol do inteligível; no cinema, a luz interior é procurada com o intuito de satisfazer a condição humana em relação às emoções que nem sempre são sentidas no dia a dia. Mas os mecanismos utilizados são semelhantes e extraem o homem de uma certa ignorância, confrontando-o com outra realidade.. Num primeiro momento, relata a situação na qual o homem se encontra no mundo.

“Agora imagina a maneira como segue o estado da nossas natureza relativamente à instrução e à ignorância. Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoço acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construído um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas.

Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de toda espécie, que o transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio.

E se a parede do fundo da prisão provocasse eco, sempre que um dos transportadores falasse, não julgariam ouvir a sombra que passasse diante deles?” (Platão, 2000, 225-6)

Sócrates identifica a vida do homem sem acesso à educação, e portanto ignorante, com a vida do prisioneiro da caverna que acredita e se satisfaz com as sombras, as ilusões e aparências. Os dois vivem no escuro, conformados com o mínimo de luz-conhecimento que recebem.

A vida na caverna a partir do século XX

Pensando o mecanismo ilustrativo utilizado no mito a partir do mundo moderno, pode-se aproximá-lo ao mecanismo cinematográfico. Durante o desenvolvimento do cinema, desde 1895 (quando foi oficialmente inaugurado em Paris com os irmãos Lumière) até a contemporaneidade, diversos pensadores abordam tal aspecto:

  • L. Irigary (apud Machado 1997, 31) fala em “montagem cinematográfica” a propósito da projeção de Platão;
  • Baudry (1991, 395) escreve: “A disposição dos diferentes elementos — projetor, “sala escura”, tela — além de reproduzir de um modo bastante impressionante a mise-en-scène da caverna…”, e em outro discurso: “o mito da caverna é o texto de um significante de desejo que atormenta a invenção e a história do cinema” (apud Machado 1997, 34);
  • L. Garcia dos Santos (apud Machado 1997, 31) comenta a “transformação da alegoria da caverna” “num grande dispositivo teatral ou cinematográfico”;
  • A. Machado (1997, 28) relata que a “primeira sessão de cinema nos moldes que conhecemos hoje, ou seja, numa sala pública de projeções, […] teve lugar na imaginação de Platão […] como a “alegoria da caverna.”

Analisando cada um desses mecanismos propostos, a identificação é evidenciada:

  • Mito da caverna: a fogueira, localizada numa colina, ilumina as estátuas de homens e animais que são transportadas ao decorrer de um muro, projetando apenas as sombras dos objetos na parede de uma caverna escura através da única abertura à luz que possui; a voz dos carregadores ecoa dentro da caverna.
  • Cinema: o cinematógrafo, colocado a certa altura ao fundo da sala escura, através da passagem de luz, projeta imagens fictícias (onde atores interpretam determinados papéis) em uma tela localizada na parede oposta; a projeção pode ser acompanhada por diálogos entre os atores (cinema falado) ou acompanhado por música condizente com a situação (cinema mudo).

Nos dois mecanismos há uma luz artificial (resultante da manipulação do meio pelo homem) localizada ao fundo e a determinada altura da cena, projetando, num quarto escuro, imagens de simulacros, acompanhadas por sons.

Os homens que assistem às projeções na caverna e no cinema, os espectadores, também possuem comportamento e disposição física similares. Para traçar esse paralelo, alguns aspectos do cinema precisam ser considerados.

Cinema Clássico Americano

Por mais de um século, filmes são realizados em diferentes culturas e com diferentes propósitos. Diversas escolas e gêneros apareceram durante a história do cinema, mas foi o chamado Cinema Clássico Americano o responsável pela formação da indústria cinematográfica.

Com a I Guerra Mundial (1914 – 1918), a produção cinematográfica europeia foi abalada. Hollywood começava a despontar com seus grandes estúdios e realizadores (Griffith) e, em 1919, chega à liderança do mercado mundial. Hollywood, com um novo sistema de produção, trabalha os filmes numa escala industrial para serem distribuídos e exibidos mundialmente: cria o sistema de empréstimo de filmes (anteriormente pertenciam a quem os comprasse e os projetasse) e a padronização da película (35 mm) e dos filmes (criação de gêneros: fórmulas próprias e cultivo de público cativo). Atualmente, a indústria cinematográfica americana ocupa um dos primeiros lugares no ranking da economia dos Estados Unidos.

Narrativa clássica e espectador

As técnicas da narrativa cinematográfica clássica são subordinadas à clareza, transparência, homogeneidade, linearidade — técnicas que dão ao filme verossimilhança, aproximando o personagem do espectador.

“[…] o modelo hollywoodiano com suas opções individualistas (o personagem principal, a estrela), seus objetivos puramente espetaculares e comerciais, seu modo de narrativa alienante (o espectador, arrebatado pelos aspectos pseudológicos e afetivos da narrativa, não tem a possibilidade de refletir ou assumir um distanciamento crítico com relação à visão do mundo que lhe é apresentada) […].” (Vanoye e Goliot-Lété, 1994, pp.28-29)

A narrativa clássica apresenta coerência e impacto dramático, fazendo com que o espectador seja capturado pelo filme.

Hollywood inventou uma arte que não observa o princípio da composição contida em si mesma e que não apenas elimina a distância entre o espectador e a obra de arte, mas deliberadamente cria a ilusão, no espectador, de que ele está no interior da ação reproduzida no espaço ficcional do filme. (Balaz 1970: 50)

O espectador encontra-se num quarto escuro, isolado do mundo exterior: a única presença é a audiovisual — marcada pelo filme e pela resposta dos espectadores a ele através de manifestações programadas-esperadas. A projeção subjetiva do espectador no filme possibilita sua identificação com o personagem principal. O espaço da exibição, observa Machado (1997:45), é o cenário ideal para a realização artificial de uma regressão; o espectador está num estado para-hipnótico, determinado pelas condições ambientais e pela técnica desse tipo de narrativa.

Inserido na ação do filme, o espectador se realiza. Descarrega o peso do dia a dia, aliviando as próprias paixões, através das situações vividas pelos atores (canalizando seus desejos e frustrações). Vive um fenômeno primeiramente enunciado por Aristóteles em relação ao efeito provocado pelas tragédias gregas: a catarse, isto é, “suscitando o terror e a piedade, chega à purificação de tais afetos” (Aristóteles, 1449 b). Sai da sessão de cinema satisfeito e apaziguado, pronto para retomar sua vida cotidiana.

Espectador na caverna e no cinema

O espectador, assim como o prisioneiro acorrentado na caverna de Platão, realiza-se através de falsas vivências, através de projeções simulacrais.

“Na caverna de Platão, como na sala de exibição, os prisioneiros estão imobilizados por uma paralisia imposta (no primeiro caso) ou voluntária (no segundo caso). A esse estado de inibição motora se acrescenta outro, de confusão intelectual, que os faz tomarem as sombras dos objetos projetados na tela-parede pela própria “realidade”. Em outras palavras, esses fantasmas de luz que atormentam a gruta escura e que constituem os únicos estímulos percebidos pelos espectadores durante a projeção são vividos por estes últimos com a intensidade de um fato real, como se tivessem existência afetiva” (Machado 1997: 45).

A condição determinada por Sócrates aos acorrentados — submissão à falta de luz, à ignorância — pode então ser comparada à condição dos espectadores que sublimam seus sentimentos através de ilusões, de supostas realidades.

Disparidades

Até o momento, a relação desenvolvida entre os dois espaços demonstrou semelhanças entre os seus interiores: a espacialidade e o comportamento presente em cada ambiente foi discutido e relacionado, tendo como base a descrição da caverna no mito alegórico e o advento do cinema clássico. A similaridade deu-se através dos ambientes em si, mas a finalidade pela qual são propostos não foi abordada.

No mito alegórico, o homem aparece involuntariamente aprisionado durante toda sua vivência. Ele mantém uma postura passiva dentro da caverna escura, é prisioneiro e nem sequer tem ciência de sua condição. Mas Platão não se limita a essa situação: ele liberta um dos prisioneiros e o leva ao mundo iluminado pelo Sol. O homem não consegue, de imediato, encarar tal estrela: primeiro observa as sombras, passa aos reflexos dos objetos na água, aos próprios objetos, aos corpos celestes que iluminam a noite e, por último, consegue olhar o Sol, que governa o mundo sensível. Esse caminho que se aprende vagarosamente é comparado à ascensão da alma ao mundo inteligível, onde a Ideia do Bem é soberana — que engendrou a luz e o soberano da luz no mundo visível. Essa ascensão é realizada com o aprendizado das ciências; elas preparam o espírito para a abstração, sendo as Ideias as abstrações supremas.

A saída da caverna pode ser entendida como um nascimento: é a conquista da luz. E a luz nada mais é do que a presença do Sol. A saída da caverna é o ponto de partida para a ascensão.

O cinema clássico, por sua vez, já não possui esse fim. Como já foi mencionado, ele leva o espectador à sublimação, à catarse. O espectador, ao sair do cinema, não encontra as luzes reveladoras, ele julga tê-las encontrado durante o filme, do qual sai purificado e apaziguado. A sua vida continua a mesma.

O retorno às trevas também diverge nos dois casos. Enquanto o ex-prisioneiro visa libertar os outros homens, para apresentar-lhes a luz do conhecimento, por mais perigoso que possa ser desmascarar aquela realidade, o espectador retorna aos filmes para continuar com o jogo projeção-identificação.

Conclusão

O comportamento do espectador talvez não pudesse ser diferente. A vida contemporânea — marcada por uma sociedade predominantemente massificada, por trabalho mecanizado e pelo constante desafio de permanecer no mercado — necessita de sensações e de emoções que façam o homem voltar a se sentir humano, deixar o estado “máquina” e retornar ao estado “indivíduo”. E isso o cinema clássico realiza com total habilidade: ele acorda o homem para uma vida mundana, mas sensível.

Contudo, talvez as situações comparadas sejam contrárias quanto aos fins: na caverna, a luz exterior é almejada visando o abandono do mundo sensível em prol do inteligível; no cinema, a luz interior é procurada com o intuito de satisfazer a condição humana em relação às emoções que nem sempre são sentidas no dia a dia. Mas os mecanismos utilizados são semelhantes e extraem o homem de uma certa ignorância, confrontando-o com outra realidade.

Referências bibliográficas
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução Alfredo Bosi, São Paulo, Martins Fontes, 2000.
ARISTÓTELES. Poética. Coleção os Pensadores Nova Cultural, 1987.
BALAZS, Bela. Theory of the film. New York, Dover Public Inc. , 1970.
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BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Petrópolis, Vozes, 1998.
DROZ, Geneviève. Os mitos platônicos. Tradução Maria Auxiliadora Ribeiro Keneipp, Brasília, UNB, 1997.
ESPINAL, Luis. Cinema e seu processo psicológico. Tradução Sônia Maria de Amorim, São Paulo, LIC Editores, 1976 .
MACHADO, Arlindo. Pré- cinemas & pós- cinemas. Campinas, Papirus,1997.
PLATÃO. A República. Tradução Enrico Corvisieri, Coleção Os Pensadores, Nova Cultural, 1987.
VANOYE, Francis e GOLIOT- LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Tradução Maria Appenzeller, Campinas, Papirus,1994.
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.

Biografia
Claudia Bavagnoli é Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.


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