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Godard Cinema (2023, Cyril Leuthy) – É Tudo Verdade 2023

Em Godard Cinema, Cyril Leuthy utiliza os padrões do formato documental para contar um recorte da história de Godard como homem diante do cinema, mas não se mantém fiel à própria análise, muito menos ao objeto principal de seu estudo.

Por Henrique Guimarães

Na recente filmografia de Cyril Leuthy, já constam documentários sobre o diretor Jean-Pierre Melville (Melville, le dernier samouraï, 2020) e o ator Maurice Chevalier (Rendez-vous With Maurice Chevalier, 2021), o que demonstra seu domínio sobre a forma de um documentário clássico. Mas seu novo filme, Godard Cinema, evidencia que isso não é suficiente para narrar parte da história de um dos diretores mais prolíficos e revolucionários da história do cinema, Jean-Luc Godard.

A proposta aqui é analisar o homem Godard antes do cinema de Godard. Mas é fato que cinema e vida se fundem, então Godard Cinema quer também falar sobre a arte. Para isso, Leuthy divide o documentário em quatro partes: de 1960 até 1967, de 67 até 75, de 75 até 80 e de 80 até 98, dando voz às pessoas que conheceram e trabalharam com Godard, como atrizes – Macha Méril (Uma Mulher Casada,  1964) e Nathalie Baye [Salve-se quem puder (a vida), 1980] – e críticos, tal qual Alain Bergala. 

O primeiro capítulo, que começa em Acossado (À bout de souffle, 1960) e termina em A Chinesa (La Chinoise, 1967), é o que melhor sintetiza os trabalhos do diretor, pensando na sua relação com a sociedade da época, nas influências modernistas na Nouvelle Vague e no reconhecimento do cinema como forma de arte .

Entretanto, é justamente quando passa a abordar os anos mais radicais (tanto no sentido político quanto cinematográfico) de Godard, que o documentário revela suas fraquezas em relação à compreensão deste como artista. Os anos 70 foram tempos de renovação para Godard, e é verdade que ele passou por um processo de coletivização de sua obra com o Grupo Dziga Vertov, de orientação maoísta com fortes influências brechtianas e marxistas nas questões estruturais e ideológicas, respectivamente. Nele, a direção dos filmes era compartilhada entre Godard, Jean-Henri Roger, Jean-Pierre Gorin e outros. O que não quer dizer que o primeiro tenha perdido sua autoria, se comparado aos anos de Nouvelle Vague, como sugere Godard Cinema.

Situar a realização dos filmes através de marcos históricos  (maio de 68, Guerra do Vietnã), mais afirma Godard como autor consciente do seu próprio tempo – este que necessitava, como ferramenta política, da união das artes, dos trabalhadores e dos intelectuais –  do que como diretor que perdeu seu toque para o cinema. Filmes como Vento do Leste (Le Vent d’est, 1970), Tudo Vai Bem (Tout Va Bien, 1972) e Letter to Jane (1972) não poderiam ser menos “godardianos” em seu teor crítico e dialético, mas Leuthy os cita rapidamente para ignorá-los em seguida, e resume sua análise em dizer que Godard só voltou a ser quem era nos anos oitenta. 

O fanatismo de Leuthy por Godard, então, parece residir apenas na nostalgia provocada pela lembrança de seus filmes iniciais, o que dá ao espectador, tanto pela narração quanto pelas entrevistas escolhidas, a sensação de que esse período não merecia ser discutido com a mesma atenção dada a fase da Nouvelle Vague. 

Após isso, o terceiro capítulo atinge (apesar de sua pressa) o momento mais inteligente de todo o documentário: cita Número Deux (1975) para dizer que obras como essa e JLG por JLG – Auto Retrato de Dezembro (JLG/JLG – autoportrait de décembre, 1994) serviram para Godard fazer uma análise de si mesmo diante da tecnologia e de seu cinema. São filmes em que o diretor propõe mais dúvidas que afirmações e encerra mais um ciclo de sua filmografia. O problema é que a análise se encerra aí e seu segmento é mal colocado e descontextualizado: Leuthy insere uma entrevista de Godard falando sobre seus filmes dos anos 80,  para retomar a ideia de que só então ele voltará a ser o autor que era antes, mais uma vez ignorando o que havia acabado de construir, desconsiderando os filmes supracitados.

Quando menos se percebe, o diretor já está comentando sobre História(s) do Cinema (Histoire(s) du Cinéma, 1988-1998), obra mais complexa e experimental de Godard, de maneira insuficiente se comparado ao material de análise. Não que cada filme citado durante o documentário deva ser dissecado minuciosamente, coisa que só o próprio Godard poderia fazer, da mesma maneira que apenas ele seria capaz de realizar um documentário sobre si próprio. Aliás, Godard não fez nenhum filme que seja isso em sua totalidade, mas tal perspectiva dele enquanto homem-cinema (a proposta inicial de Godard Cinema), está em várias das suas produções, tanto naquelas em que ele é personagem (documentários como Soft and Hard de 1985 e Deux fois cinquante ans de cinéma français de 1995 são alguns exemplos), quanto nas em que é representado por outros atores e personagens. 

Mas Godard Cinema, por mais que queira pensar o homem antes do diretor, não se dispõe a discorrer sobre os filmes em que o próprio faz isso. Realizar toda uma obra sobre um dos maiores autores da história do cinema necessita de um pensamento mais preocupado com seu objeto, de uma seleção e montagem de arquivos que procure o que serve ao filme, de uma narração que não diga de forma direta o que é e o que não é, e que, ao invés de levar o espectador a conclusões erradas, o faça desenvolver um pensamento próprio a partir do que foi apresentado pelo documentário e da possível curiosidade em conhecer mais do que está sendo falado. Porém, o diretor não abre espaço para a participação reflexiva do público, e não escolhe os materiais que facilitariam seu próprio trabalho enquanto observador/expositor de Godard.

Leuthy conclui afirmando que Jean-Luc queria se apagar mais uma vez após História (s) do Cinema mas não cobre o que veio depois. Se ele queria se apagar, por que não deixar que ficasse assim, ou ao menos confiar na sua análise de Número Deux e seguir até o verdadeiro último adeus cinematográfico de Godard em vida, que é Imagem e Palavra (Le Livre d’image, 2018), e de como este já é um Godard Cinema, ou um “Cinema, por Godard”? 

A forma de Godard Cinema já é inerentemente contrária ao cinema de Godard, e o que é sintetizado por Leuthy não consegue ser mais respeitoso. No sétimo episódio de História(s) do Cinema (4a: O Controle do Universo), Godard afirma que:

“As formas nos dizem o que está no fundo das coisas. O que é a arte senão o modo como as formas se torna estilo? O que é o estilo senão o homem?” 

Godard Cinema não tem estilo, nem de Leuthy, nem de Godard. Não atinge o “fundo das coisas”, tampouco compreende a relação estilo-homem em seu homenageado. Afinal, Godard foi tão autor em todas os capítulos de sua vida, que mesmo quando ofereceu seu estilo ao coletivo, ainda estava utilizando as formas para falar de cinema, política, e claro, Godard. Este que é dono de uma filmografia tão autoconsciente de seus limites e possibilidades, que até as reflexões que terceiros podem fazer a partir de seus filmes, já foram feitas por ele mesmo. 

Biografia

Henrique Guimarães é estudante, crítico e pesquisador de cinema, curioso pelas possibilidades que as imagens podem oferecer. Realiza curtas universitários e independentes, escreve para diversos portais. 

A cobertura do 28º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação idealização: Flávio Brito

Produção e edição adjunta: Bruno Dias

Edição: Luca Scupino


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