Em Histoire(s) du Cinéma, Jean-Luc Godard expõe sua consciência diante do cinema através de música, pintura, literatura, gravura, escultura, filosofia, poesia, história, imagem e palavra. Arte para arte, o homem-cinema sobre cinema e si mesmo.
Por Henrique Guimarães
Em setembro de 2022, quando Jean-Luc Godard se foi, parte do cinema foi com ele. Mas a outra parte que ainda resta reside também na obra do diretor, principalmente em Histoire(s) du Cinéma, documentário dividido em oito episódios que remontam a história do cinema mundial e da luz sob a perspectiva experimental e desolada de Godard.
O primeiro episódio, Todas as Histórias (Toutes les Histoires, 1987), trata da origem do cinema americano, o princípio de Hollywood, sua era de ouro, até seu declínio. É o episódio mais comedido de Histoire(s), uma apresentação em que Godard não deixa de fora seu lado crítico e pessoal, que seguirá por toda a série. Porque o autor parte de imagens que não são suas – ora frames, ora cenas completas de filmes, e pinturas são os principais componentes -, para contar a história da história, e assim o cinema encontra o mundo, e Godard diz: Hollywood se baseou na figura da pistola e da mulher para construir dinheiro, os soviéticos construíam sonhos.
Não será a última vez que as afirmações sobre cinema não são somente sobre cinema. Afinal, estamos falando de Godard, de política, de representações: “o cinematógrafo nunca quis criar um acontecimento, mas uma visão”, e a história, ou o cinema, não limpa sua sujeira. Já há, aí, uma certa observação sobre a relação condenada com a criação de imagens, essas que eternizam visões comprometidas, porque acompanham a história. E o cinema, em sua origem, sem saber para onde ir e o que filmar, mas já como a arte mais popular, filma sem perguntar para que filmar. No final do episódio, Godard intercala pinturas mortuárias com uma trilha sonora fúnebre, e conclui sem clarificar:
“Esquecemos aquela vilazinha e as suas paredes brancas cercadas de oliveiras, mas lembramo-nos de Picasso, ou seja, de Guernica. Esquecemos Valentin Feldman, o jovem filósofo fuzilado em 43, mas quem não se lembra pelo menos de um prisioneiro, ou seja, de Goya? E se George Stevens não tivesse utilizado o primeiro filme 16mm a cores em Auschwitz e Ravensbrück, nunca, certamente, a felicidade de Elizabeth Taylor teria encontrado um lugar ao sol.”
Sem obviedades (“Por que fazer simples quando se pode fazer complicado?”, diz o autor no terceiro episódio), com dialéticas, dúvidas e metáforas, isso é Histoire(s).
O segundo episódio, dedicado a John Cassavetes e Glauber Rocha, Uma Só História (Une Histoire Seule, 1989) já é mais radical: sobreposições, multiplicidade de vozes, colagens e trilhas sonoras confusas, o barulho de uma máquina que não para de escrever. É um avanço acelerado, mas que busca sua matéria na história antes mesmo do primeiro episódio: cinema como herdeiro da fotografia e do impressionismo. Uma Só História é a história da luz.
História da evolução da arte que busca cada vez mais revelar o que está entre a solidão e o silêncio, o sexo e a morte – não por acaso uma das primeiras imagens do episódio é de O Desprezo (Le Mépris, 1963), filme do próprio Godard que aborda esse intervalo entre o som e a imagem, em que habita o tempo. Por mais caótico que seja, se o episódio anterior era fúnebre, esse é da ressurreição, da luz que está na natureza, passa pela câmera e sai pelo projetor.
Otimismo que percorre também o terceiro episódio, Apenas Cinema (Seul le Cinéma, 1997). Nele, Godard é entrevistado pelo crítico Serge Daney e perguntado do porquê de Histoire(s) du Cinéma, e porque é Godard quem deve contá-la. A resposta confere um dos momentos mais poéticos e apaixonados de todo o documentário, em que Godard coloca o cinema como única forma de contar histórias, como arte totalmente só no universo: assim como o homem, que “sozinho corre desesperadamente” no mundo perdido, e devolve ao cinema (e apenas o cinema) a luz que este um dia lhe ofereceu. Godard sobre o universo, mas também sobre si.
Jean-Luc como personagem está mais uma vez no próximo episódio (aqui particularmente cômico: sem camisa, de viseira e fumando um charuto), que desde o título expõe a principal relação nele contida: Beleza Fatal (Fatale Beauté, 1997). Godard se baseia novamente na ideia de que o cinema nasceu da morte, e aqui no que está entre ela e a beleza. Por que o cinema sempre envolveu o homem filmando uma mulher, e por que o technicolor não serviu apenas para colorizar?
“E o plano americano, o enquadramento à altura da cintura, era para o revólver, portanto para o sexo. Mas o do homem, porque as mulheres eram sempre enquadradas à altura do peito. E no fundo de cada história de amor, advinha-se sempre uma história de amamentação.”
Porque a figura feminina no cinema é bela, mas não se desprende da fatalidade, e os filmes em technicolor, por mais bonitos que fossem, faziam o cinema, ou o funeral, ser mais decoroso. Por isso, “nem uma arte, nem uma técnica, um mistério”. Toda a história do cinema até ali resumida em beleza – luz – cor – morte. Mais uma vez, por que o cinema filmou, o que filmou, e como filmou? Godard se complementa e expande:
“Oh, quantos roteiros sobre um recém-nascido, sobre uma flor em rebento, mas quantos sobre rajadas de armas automáticas. Porque foi isto que se passou. A fotografia podia ter sido inventada a cores, elas existiam, mas aí está, na madrugada do século XX, as técnicas decidiram reproduzir a vida. Inventou-se, portanto, a fotografia . Mas como a moral ainda era forte, e o que se preparava era retirar à vida mesmo sua identidade, carregar-se-á o luto desta exposição à morte. E é com as cores do luto, o preto e o branco, que a fotografia se fez existir. Não por causa da gravura, o primeiro ramo de flores de Nadar não copia uma litografia de Doré, nega-a. E, rapidamente, para mascarar o luto, os primeiros technicolor tomarão as mesmas dominantes das coroas mortuárias.”
Sendo assim, se parte do cinema se deu por refilmar a violência, o que ele pôde fazer quando a situação do mundo era ainda mais grave? “Alguma coisa”, responde Godard quando chega aos anos 1940 em A Moeda do Absoluto (La Monnaie de L’Absolu, 1998), quinto episódio, que é o mais próximo ao primeiro por ser “cronologicamente histórico”, além de mais contido em sua linguagem (ritmo desacelerado, mais referências a diretores e filmes, e até uma clareza maior no discurso – aliás, como o próprio afirma, “a língua criou as imagens”).
A Moeda do Absoluto é uma grande homenagem ao neorrealismo italiano, que, segundo Godard, diante dos genocídios da Segunda Guerra Mundial, se fez como um cinema de resistência, que não precisava manipular as coisas que estavam por lá, apenas dar a luz – a verdade inerente no realismo de Roma, Cidade Aberta (Roma, città aperta, 1945, Roberto Rossellini) e Umberto D (1952, Vittorio de Sica). Em episódio algum Godard deixa algo escapar, e mesmo quando é pessimista, tanto em relação à história, quanto ao cinema, sua paixão ali é visível, tanto pelo que suas influências fizeram no cinema deste período (Rossellini, Visconti, De Sica), quanto pelo próprio trabalho realizado por Godard posteriormente, do qual ele não se exclui.
Uma Nova Onda (Une Vague Nouvelle, 1998), remonta a quando ele e os enfants terribles (crianças terríveis) se tornam protagonistas na história do cinema, pela Nouvelle Vague francesa do final dos anos 1950 e começo dos 60. Godard dá a César o que é de César, coloca o movimento como responsável por inscrever o cinema na história das artes, tendo a montagem como ferramenta de mudança nesse novo mundo; não mais “só o cinema”, mas “sempre o cinema” como ferramenta transformadora.
Discute também o papel da revista Cahiers du Cinéma, da Cinemateca Francesa, e claro, do diretor da instituição, Henri Langlois, que, mais como guia de pessoas do que como cineasta, também fez luz ao iluminar as mentes dos curiosos e dos criadores. “O homem tem, no seu pobre coração, lugares que ainda não existem, e onde a dor entra, a fim de que sejam.” A fim de que sejam tocados, de que o cinema entre e mude o panorama do mundo: “Uma noite nos reunimos na casa de Henri Langlois e então fez-se luz.” Aqui, mais do que em qualquer outro momento, Godard atua como agente na história do cinema e da luz.
Os episódios passados foram marcados por afirmações, admirações e esperança, mas O Controle do Universo (Le Contrôle de L’Univers, 1997) quebra em partes com isso. Voltam as dicotomias, o terror e os questionamentos, principalmente sobre o poder: primeiro o poder do homem para a criação de armas, ferramentas da violência. Godard fala mais uma vez das guerras – tema frequente não só em Histoire(s) du Cinéma, mas em toda sua filmografia, vide Je vous salue, Sarajevo (1993), Tempo de Guerra (Les Carabiniers, 1963), Aqui e em Qualquer Lugar (Ici et ailleurs, 1976), por exemplo.
Godard também fala do poder do homem na criação da beleza, usando Hitchcock como sujeito – este que praticava o controle do universo por meio das imagens, e que, além de Dreyer, fora o único a conseguir filmar um milagre, para Godard -, pois ele estava presente em tudo que seu olhar registrava. Mais uma vez, não apenas um diretor, mas um manipulador da luz – a câmera e as armas: ferramentas de manipulação do homem pelo homem. Em suma, O Controle do Universo é um estudo antropológico e inquietante, porque cinema somos nós:
“No ‘Penso, Logo Existo’, o eu de ‘existo’, não é o mesmo do eu de ‘penso’. Por quê? Porque falta demonstrar que há uma relação entre o corpo e o espírito, entre pensamento e existência.
As formas nos dizem o que está no fundo das coisas. O que é a arte senão o modo como as formas se tornam estilo. E o que é o estilo senão o homem?”
Godard está o tempo inteiro presente em Histoire(s): é ele quem narra, escreve, seleciona, monta, e com breves exceções, é apenas ele quem aparece em tela, além de se referenciar ao longo dos episódios. Nada mais justo que o episódio final, Os Signos entre Nós (Les Signes parmi Nous, 1998), seja dedicado ao próprio e à sua esposa, Anne-Marie Miéville. Não apenas dedicado, como também é um episódio sobre Godard. Ele, que no começo do documentário tinha uma voz firme, agora sussurra. O episódio é um prelúdio de morte do cinema, em que o autor, além de retomar todos os anteriores, discorre sobre as produções da época, que estavam “em declínio”, segundo ele.
Mas nem tudo são trevas. Da morte, surge a volta da esperança, pelo amor que está em Miéville e no cinema em que “pode-se fazer tudo”, inclusive ser a primeira pessoa:
“Algo mais. Sem palavras para isso. Nenhuma frase pode incorporá-lo. Ou melhor, se eu começar uma frase pensando que tenho na ponta da minha língua a imagem, o momento, a cor, o vestido caído, aquele brilho no corpo da mulher, sua alça do ombro deslizando para baixo, aquele sentimento de medo misturado com pressa, os seus braços, sua mente errante… minha memória fica desordenada. Eu não esqueço, mas as coisas escapam. Se eu forço minha memória, eu de repente entendo o que acontece comigo. Eu imagino. Sim. Eu não lembro mais. Eu imagino.”
Todos os processos de Histoire(s) du Cinéma (fusões de artes, justaposições de filmes, pastiches, piadas, colagens, textos, subtextos, imagens, vozes), todos os sentimentos (amor, otimismo com o cinema, pessimismo com o cinema, paixão, desânimo, admiração, rebeldia…), toda a síntese da história do cinema e do homem – que acaba sendo mais um desbravamento daquilo que não é próprio deles: a luz e suas modulações no antes e durante arte. Tudo para chegar, enfim, à análise de um só homem, mas sua finalidade é a mesma finalidade do cinema.
Voltamos à relação condenada com a criação de imagens, do espaço entre beleza e fatalidade, esperança e desolação. Cito Goethe para tentar entender cinema e Godard: “Por que aquilo que representa a felicidade do homem acaba se transformando, um dia, na fonte de sua desdita? Por que tem de ser assim?” (Os sofrimentos do Jovem Werther, p. 58).
Godard remodela Borges para tentar entender Godard, e o cinema fica por ali:
“Se um homem passasse pelo paraíso em seus sonhos e recebesse uma flor como prova de passagem, e ao acordar, encontrasse essa flor em sua mão… O que há para dizer? Eu era aquele homem.”
O que concluir daquilo que não se conclui, como explicar o que é um tanto anti-didático, ou resumir o que é mais um capítulo do que a síntese da história do cinema? Talvez não procurando intenções e afirmações, mas buscando a luz antes da projeção, ouvindo Godard quando este quer ouvir a si mesmo. Está aí um por cento de Histoire(s) du Cinéma. Mais uma vez, por enquanto a última, fim do cinema. Entre 1960 (quando Acossado veio ao mundo) e 2022 (quando Godard deixou nosso mundo), fez-se e acabou-se a luz. Mas nada em Godard pode ser dado como acabado, suas obras se juntam com o passar do tempo e cada filme é complemento do outro. Histoire(s) du Cinéma, assim como seu último filme, Imagem e Palavra (Le Livre d’image, 2018), é sim um adeus à linguagem, mas é mais uma tentativa de se manter vivo. “O que há para dizer? Eu era aquele homem.” E continuará sendo.
Biografia
Henrique Guimarães é estudante, crítico e pesquisador de cinema, curioso pelas possibilidades que as imagens podem oferecer. Realiza curtas universitários e independentes, escreve para diversos portais.
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A cobertura do 28º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.
Equipe Jovens Críticos Mnemocine:
Coordenação idealização: Flávio Brito
Produção e edição adjunta: Bruno Dias
Edição: Luca Scupino
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