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Vire Cada Página: As Aventuras de Robert Caro e Robert Gottlieb (2022, Lizzie Gottlieb) – É Tudo Verdade 2023

Em Vire Cada Página, a cineasta Lizzie Gottlieb investiga a relação peculiar entre dois titãs da literatura americana: o escritor político Robert Caro e seu editor Robert Gottlieb, e prova a efetividade das narrativas clássicas.

Por Luca Scupino


Se eu escrevesse que um dos filmes mais interessantes do ano é um documentário sobre a relação entre um autor de não-ficção de 87 anos e seu editor quatro anos mais velho, certamente alguns leitores ficariam com o pé atrás. Dizer que um momento em que ambos brigam sobre o uso do ponto e vírgula (;) é capaz de provocar um nível alto de tensão parece igualmente improvável, tal qual é o desejo profundo que nutrimos ao longo do filme de vermos os dois homens trabalhando juntos, em uma sala de edição. Mas, novamente, a trajetória do escritor Robert Caro e seu editor Robert Gottlieb pouco possui de convencional. Antes, Vire Cada Página prende a curiosidade a cada nova cena.

Praticamente desconhecido no Brasil, devido à carência de uma tradução e certo americanismo inerente em suas narrativas, Robert Caro é autor de uma série de calhamaços que investigam as dinâmicas de poder na democracia dos Estados Unidos no século XX. Entre eles, se destacam The Power Broker (1974), sobre o urbanista milionário Robert Moses e sua influência política descomunal, e quatro de uma série de cinco livros sobre o ex-presidente Lyndon B. Johnson (1982-2012), que possui uma legião de fãs aguardando ansiosamente para que Caro termine de escrever o último volume. 

Caso não conheça o autor, alguns desses fiéis seguidores aparecem no filme e certamente irão soar familiares: o ator Ethan Hawke, o apresentador de talk show Conan O’ Brien, e os ex-presidentes Barack Obama e Bill Clinton. O estranhamento que causa a enorme empolgação dessas celebridades é apenas igualado pela surpresa de se constatar que os livros se tornaram fenômenos durante a pandemia, quando foram avistados nas estantes de uma série de analistas políticos, em videoconferências.

No entanto, é impossível falar de Robert Caro sem citar o tal  homônimo que foi igualmente responsável por seu sucesso: o editor Robert Gottlieb,  não coincidentemente o pai da diretora Lizzie Gottlieb e editor de quase 700 obras que vão de Michael Crichton a Toni Morrison. Este segundo Robert, além de acompanhar a trajetória de Caro pelos últimos 50 anos, solidificou uma parceria e uma amizade com ele que não é desprovida de atritos – inclusive, até o final da obra, Caro se recusa a ser entrevistado ao lado de Gottlieb, o que não é surpresa para quem entende a difícil cumplicidade entre esses dois homens. 

Ao traçar um retrato dos dois personagens, de suas idiossincrasias (a coleção de bolsas de plástico kitsch de Gottlieb é algo de ordem fascinante) e das diferentes maneiras com que cada um construiu sua carreira, o filme também procura compreender essa relação peculiar que há entre escritor e editor, comparada por Gottlieb à da transferência entre analista e paciente, na psicanálise.

Mas a pergunta que permanece é: por que o filme é tão bem sucedido em despertar interesse por um assunto pelo qual  muitos dos espectadores apenas percorreriam os olhos em um artigo online, e passariam adiante?

A resposta, sobretudo, reside na atualidade e eficácia que a diretora encontra no formato do documentário clássico, conduzindo, a partir de entrevistas, uma narrativa que é sustentada por materiais de arquivo, registros do cotidiano dos personagens, e também passagens dos livros, lidas por convidados. De todos os elementos do filme, talvez a montagem seja a maior responsável pela fluência da narrativa, ao operar por uma dinâmica que levanta um assunto, atiça a curiosidade, e imediatamente se propõe a desenvolvê-lo, de modo que uma cena engata na outra com muita facilidade. 

Por exemplo, assim que Caro menciona em entrevista seu interesse em compreender as dinâmicas de poder que operam nos bastidores da política americana, o filme inicia uma passagem que remonta ao início de seu trabalho extensivo de pesquisa e a descoberta, a partir de documentos da repartição pública em que trabalhava na juventude, do pacto entre poder público e privado que é capaz de driblar os devidos processos institucionais. Foi nessa mesma época que Caro recebeu a dica, de seu chefe, que dá nome ao filme: “vire cada página”, para não perder nenhuma informação.

Do mesmo modo, assim que sentimos a necessidade de uma leitura de trechos de Caro, surge um corte seco e lá aparece o ator Ethan Hawke com o livro em mãos, pronto para recitar um excerto. É uma dinâmica que, a despeito de sua previsibilidade, sempre responde ao que a estrutura determina e encontra o momento certo para introduzir um novo assunto – o que novamente prova a necessidade de todo documentário possuir um bom roteiro, e atesta que o formato clássico o é assim por um motivo.

Por vezes, o balanço entre os dois personagens tende mais para um e esquece do outro. A impressão é que, na falta de um gancho que conceda uma unidade, um sentido para a história que guie todas as cenas, o filme opta por focar em detalhes que não necessariamente são o foco da narrativa – miolo que é sustentado pelo carisma de Caro e, em especial, de Gottlieb, sempre o primeiro a reconhecer suas virtudes e defeitos. Quando o filme reencontra o gancho, ele vem através da pressão sofrida pelo primeiro, já em seus 87 anos, para terminar o último volume da série sobre Lyndon B. Johnson, e assim a obra volta a tocar em seus assuntos centrais.

Há, ainda, uma terceira personagem que ora se anuncia, ora se elide: claro, a cineasta Lizzie Gottlieb, que, como filha de um dos personagens centrais do filme, bem sabe que há uma dinâmica pessoal envolvida na feitura, especialmente no que tange ao acesso privilegiado que ela e sua câmera possuem à vida privada dos dois homens. No entanto, sua presença muitas vezes apenas paira sobre a obra,  sem dar o passo além para reconhecer a própria interferência naquele processo. Interferência que, claro, é limitada pelo próprio formato, longe de ser um modelo performático ou assumir uma narrativa em primeira pessoa que guie a história, mas que também indissocia-se dos modos pelos quais o filme foi concebido e operacionalizado.

O final, em que finalmente temos acesso à sala de edição para observar o trabalho dos dois Roberts, é uma espécie de mea culpa, um momento em que a voz da diretora ressurge e impõe o próprio desfecho, após acharmos que o filme irá acabar. Ele é, ao mesmo tempo, uma recompensa, um presente. Pela primeira vez, temos acesso à sala de edição, com uma condição: que a diretora não grave o diálogo entre Caro e Gottlieb, apenas as imagens do processo de trabalho. Claro, antes disso, esses dois homens de 90 anos percorrem o escritório à difícil procura de um lápis para corrigir os manuscritos datilografados: a perfeita representação desses gigantes que permanecem ativos, carregando uma presença de outra época, de uma Nova York que fundou a concepção moderna da cadeia editorial e em que, como as obras de Caro demonstram, a caneta era mais poderosa que a espada.

E, quando os microfones são desligados, parece que de fato era desnecessário ouvirmos as vozes, visto que já sabemos o que era preciso sobre esses dois homens, graças à eficiência do filme. Em dada entrevista, Gottlieb afirma que, quando o leitor deseja mais páginas, e não menos, tem-se um bom livro em mãos. Pois, do mesmo modo que o documentário acaba e resta uma vontade insaciável de conhecer toda a bibliografia de Robert Caro, a impressão restante é que, pelo sucesso de suas estratégias, o filme poderia continuar por muito mais tempo. Que estejamos vivos para presenciar o lançamento do quinto Lyndon B. Johnson.

Biografia

Luca Scupino é cineasta independente, pesquisador e crítico, formado em Cinema pela FAAP, onde dirigiu e roteirizou 4 curtas-metragens. Atualmente pesquisa na área de história do cinema e teoria estética, e escreve artigos para diferentes meios. É cinéfilo desde que se entende por gente.

A cobertura do 28º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação idealização: Flávio Brito

Produção e edição adjunta: Bruno Dias

Edição: Luca Scupino

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