Dando continuidade à documentação da memória do cinema moderno brasileiro, Eugenio Puppo realiza um ensaio sobre os primórdios da formação acadêmica cinematográfica no Brasil.
Por Luca Scupino
Os que têm familiaridade com a obra de Eugenio Puppo sabem a recorrência com que o cineasta aborda temas relacionados ao cinema brasileiro dos anos 1960 e 70. De documentários como O Bom Cinema (2021), sobre o dito Cinema Marginal, às homenagens aos diretores Carlos Reichenbach, Ozualdo Candeias e José Mojica Marins, e até mesmo o canal no Youtube de sua produtora Heco Filmes (https://www.youtube.com/@hecofilmes8721), existe toda uma tentativa de documentação da memória desse período. Como já dizia o citado Carlão, vivia-se uma vida completa dentro de menos de uma década, e Confissões de um Cinema em Formação é mais uma investida nesse contexto histórico, que tem como foco o surgimento do ensino de cinema no Brasil e o impacto que ele teve nos jovens cineastas que, em pouco tempo, mudariam o que se entende por “cinema brasileiro”.
Desde o longo título, há muito a se discutir. Em primeiro lugar, o tom confessional se faz presente ao longo dos 76 minutos, majoritariamente compostos de entrevistas com diretores, historiadores e ex-alunos dos cursos de cinema abordados, assim como extratos raros de filmes do período. A impressão é que a própria proximidade de Puppo com os entrevistados garante um tom anedótico, como se fossem amigos conversando. E são essas múltiplas confissões que tecem a estrutura de um ensaio, formato em que a tese não é dada a priori, mas busca a reflexão a partir da própria escritura – no caso, a montagem que junta os relatos pessoais de maneira a dar rosto à experiência da formação cinematográfica no Brasil. Não parece existir uma agenda por parte do cineasta, que mais possui um interesse genuíno em documentar essas vozes, fixar a memória através do registro.
A própria palavra “formação” talvez seja a mais curiosa do título. Afinal, o que estava em formação, os cineastas ou o cinema brasileiro como o entendemos hoje? A verdade é que, para Puppo, não existe diferença, pois estamos falando de uma geração que encarava o cinema como práxis vital, como a única forma possível de pensar a relação entre estética e política, entre o erudito e o popular. É curioso o filme iniciar a partir de um clipe caseiro em que uma jovem lê, em um livro do teórico Christian Metz, um trecho que fala sobre a diferença entre o que é filme e o que é cinema.
Ademais, esse termo também pode ser entendido em um sentido mais amplo, compreendendo o contexto como o momento em que meninos se transformam em homens, vão de cinéfilos a cineastas. Nesse processo, a noção de cinema também emergia com seu verdadeiro propósito, aplicando as narrativas à problemática nacional – cumprindo o que ensinava Paulo Emílio Sales Gomes a respeito da eterna situação de subdesenvolvimento do Brasil (que não deixa de ser um fenômeno estético, na medida em que estamos falando de uma arte de alta despesa), e também profetizara o cineasta Glauber Rocha em seu manifesto Estética da Fome (1965): “uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado; somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora”.
Mas voltemos ao início, que é de onde o filme parte: o primeiro curso de cinema do Brasil. Inaugurado em 1954, o Seminário de Cinema se deu em vários espaços da cidade de São Paulo, rememorado a partir de depoimentos de Rodolfo Nanni e Máximo Barro. Desde já, dois fatores dessa trajetória se evidenciam. O primeiro é a estranha relação entre o ensino de cinema no país e a Igreja Católica, que identificou essa lacuna e logo fomentou tanto cursos de formação técnica como também a atividade cineclubista, geralmente ligada aos interesses da religião. Isso atraiu uma legião de jovens cinéfilos que não se interessavam pelas profissões convencionais, em um contexto que o cinema já estava consolidado propriamente como manifestação artística.
O segundo fator, onipresente nos depoimentos do filme, é a influência do Neorrealismo Italiano no imaginário estético desses novos cineastas. Tanto sua lógica amadora, que trazia as cenas para as ruas movimentadas de um mundo pós-guerra, como também a perspectiva crítica acerca dos problemas sociais de seu tempo foram combustíveis para a compreensão de que o tal fracasso histórico no desenvolvimento de uma indústria nacional (até então evidenciado pela falência dos sistemas de estúdio da Cinédia, Atlântida e Vera Cruz) poderia se transformar em fundamento criativo para as obras do cinema moderno. Ideia que, claro, caiu como uma luva para estudantes como os da UCMG (Universidade Católica de Minas Gerais), que abrigou o primeiro curso superior de cinema do país e no qual mal havia câmeras para a realização dos curtas.
É muito pertinente, por sinal, a comparação que o filme faz, através da montagem, entre Ladrões de Bicicleta (1947, de Vittorio de Sica) e O Grande Momento (1958, de Roberto Santos), ambos utilizando a figura da bicicleta como um elemento a partir do qual se pode entrever a problemática social de cada país. Afinal, foi através do cinema também que ficou claro, para toda uma geração, que os conflitos de classe e as relações de trabalho guardam similaridades supranacionais dentro do Estado capitalista.
Os novos espaços de formação se tornaram rapidamente um oásis da cultura cinefílica, como a extinta Escola de Cinema São Luís na capital paulista, na qual se formaram cineastas como Ana Carolina e Reichenbach, sob a figura exótica do Padre Lopes e professores como Luís Sérgio Person, Vilém Flusser, Décio Pignatari e tantos outros. Seguida, é claro, pela criação da Universidade de Brasília, que pretendia ser a representação ideal da modernização tardia empreendida pela ditadura militar, que viria logo a desmontar sua constituição de docentes a partir de uma greve dos professores precedida pela demissão política de alguns membros, como explica Jean-Claude Bernardet.
É nesse contexto que também surge a Escola de Comunicações e Artes da USP, buscando atender às novas necessidades de comunicação de massa do regime militar. O tiro saiu pela culatra, evidenciado pela subversão de curtas-metragens acadêmicos como os de Djalma Limongi Batista e na fala de Ismail Xavier sobre a ocupação da ECA por parte dos estudantes, que no auge da repressão teve a presença de intelectuais como Edgar Morin e os cineastas Roberto Rosselini e Glauber Rocha (que não perderia a oportunidade de rever o mestre italiano).
O documentário se dá nesse tom que vai do relato histórico à fofoca interna, de modo que, para Puppo, quase não existe a necessidade de produção de novos materiais. Muitos dos depoimentos são evidentemente arquivos de mais de dez anos atrás – o filme, inclusive, adota uma estética vintage, usando uma proporção de tela mais acadêmica e uma coloração desbotada nos arquivos digitais. É assim que entendemos a sua lógica: a memória do que aconteceu já existe e está distribuída sob a forma de cultura, viva naqueles que a presenciaram. O que falta, e é onde entra o documentarista, é alguém para organizá-la, para registrar os fatos e transformá-los em uma narrativa de modo que a História não se perca em seus detalhes, de forma que ela tenha o que dizer ao presente. O trabalho do documentarista é levado ao pé da letra: aquele que documenta e, ao invés de produzir uma tese sobre suas imagens, deixa a palavra com quem é registrado.
Apesar de acabar um tanto subitamente, o filme tem uma espécie de clímax na apresentação de um curta-metragem realizado por Ana Carolina enquanto ainda nos anos 1970. O filme segue uma mulher e a questiona sobre seus hábitos, verificando que a retratada vai ao cinema para se distrair com um musical de Gene Kelly ou um lançamento estrangeiro do momento. Vemos uma cidadã brasileira indo à sala de cinema, mas para ela os filmes de seu próprio país talvez não digam muita coisa.
E voltamos à famosa tese de Paulo Emílio Sales Gomes de que no cinema brasileiro o subdesenvolvimento não é um estágio, mas sim um estado. Muito mudou de lá para cá, mas o problema de público, necessário para a subsistência de uma indústria nacional, permanece o mesmo. E, como bom documentarista, Eugenio Puppo nos deixa com uma pergunta: o que fazer? Talvez a resposta esteja antes nos relatos vivos desse cinema revolucionário do que propriamente em um discurso do cineasta. O que, além de moderno, não deixa de ser enormemente generoso.
Biografia:
Luca Scupino é cineasta independente, pesquisador e crítico, formado em Cinema pela FAAP, onde dirigiu e roteirizou 4 curtas-metragens. Atualmente pesquisa na área de história do cinema e teoria estética, e escreve artigos para diferentes meios. É cinéfilo desde que se entende por gente.
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A cobertura do 28º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.
Equipe Jovens Críticos Mnemocine:
Coordenação idealização: Flávio Brito
Produção e edição adjunta: Bruno Dias
Edição: Davi Galantier
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