Ao reavivar trechos do cineasta Humberto Mauro para um documentário reflexivo, o diretor André Di Mauro suscita, anos depois, alguns dos mesmos debates e contradições que acompanharam a trajetória de seu tio-avô, pioneiro do cinema brasileiro.
Por Luca Scupino
“Cinema é cachoeira”, profetizava Humberto Mauro (1897-1973), cineasta pioneiro no desenvolvimento de um cinema tipicamente brasileiro, por muitos considerado o primeiro que adequou a problemática nacional à produção tanto de ficções quanto documentários. Nascido em Minas Gerais, sua longa carreira abarca desde produções silenciosas até o advento do Cinema Novo, do qual ficou reconhecido como pai espiritual dos jovens diretores – e sua trajetória no documentário é retomada no festival É Tudo Verdade, em 2023, cuja seleção de curtas-metragens contou com a curadoria de dois dos maiores especialistas no diretor, Sheila Schvarzman (Universidade Anhembi Morumbi) e Eduardo Morettin (ECA-USP).
A filmografia de Mauro é geralmente dividida em três fases. A primeira envolve os filmes realizados no chamado Ciclo de Cataguases (1926-1929), na cidade de mesmo nome. São obras ficcionais, silenciosas, que tinham como centro o retrato dos costumes e uma forte relação, que será presente ao longo de toda sua carreira, entre homem e paisagem. Convidado pelo produtor Adhemar Gonzaga para realizar filmes na recém-fundada produtora Cinédia, a segunda fase (1929-1936) será a incursão do diretor no terreno industrial, da qual surge a sua obra mais célebre: Ganga Bruta (1933), na época um fracasso de bilheteria. Os anos seguintes o verão como chefe do INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo), fundado no Estado Novo de Getúlio Vargas, em 1937. Nesse período, sob a tutela do Estado fascista, o cineasta irá se dedicar a mais de 300 curtas-metragens educativos e documentários.
Esse último, mesmo que de cunho institucional, parece ter sido o domínio em que Mauro plenamente se realizou, como cineasta. Profundamente interessado pelo mundo ao seu redor – conforme evidencia Mauro, Humberto (1975), curta de David Neves sobre o cineasta – sua mise-en-scène sempre se conecta ao ritmo da natureza e ao peso da tradição em um mundo de constantes mudanças. Talvez tenha sido esse interesse que o colocou como mentor dos cineastas modernos dos anos 1960, tido por Glauber Rocha como o primeiro a encontrar uma identidade nacional na película, e segundo quem seria “um cineasta educado pela sensibilidade, inteligência e coragem” (ROCHA, p. 45).
Mesmo sua confusa ideologia política (o interesse por um “Brasil profundo” e pela tradição mineira se atrita em cena com as políticas nacionalistas, autoritárias de Getúlio), para Rocha, “não esconde a violência da miséria” ao obter um quadro real do Brasil em imagem. É nesse sentido que, no modo como o crítico André Bazin coloca, podemos enquadrá-lo junto aos cineastas que acreditam no cinema enquanto mecanismo que possibilita uma evidência da realidade, tais como Murnau e Stroheim o fazem.
De filmes como Lagoa Santa (1940) a Engenhos e Usinas (1955) e as duas versões de Carro de Bois (1956 e 1974), há um interesse inexorável por aquilo que também Bazin, escrevendo sobre Jean Renoir, denominava a “epiderme do mundo” – de modo que, em alguns dos documentários educativos, a explicação do narrador só entra dez minutos após as imagens, tão fascinado que Mauro está pela materialidade das coisas: o universo rural, a vida animal, a gente do campo. Estamos falando de um cineasta que, a despeito das contradições de seu tempo, nunca abandonou uma relação de alteridade com o mundo e os seres.
Por esse motivo, desperta interesse o longa-metragem Humberto Mauro – Cinema é Cachoeira (2018, André Di Mauro), realizado pelo sobrinho-neto do cineasta mineiro. Trata-se de um documentário experimental, composto majoritariamente por trechos dos filmes de Humberto Mauro, e que investiga temas e formas importantes para a sua trajetória. Ao mesmo passo, o plano sonoro é composto por depoimentos de arquivo do próprio autor e, eventualmente, de alguns de seus colaboradores, que vão de Nicette Bruno (atriz de O Canto da Saudade, 1950) a José A. Mauro, filho de Humberto que fotografou alguns de seus filmes.
A cena inicial retoma o momento final de Carro de Bois, seu último filme, no qual, já aos 77 anos, o diretor reconhece a própria finitude, a efemeridade do mundo que retratou nos seus filmes, e se recusa a reproduzir o típico happy-end das produções de sua época. No entanto, onde o horizonte em Humberto Mauro se associava a um crepúsculo melancólico, aqui emula, estranhamente, um nascer do Sol – recomeço seguido por várias outras paisagens matinais. Enquanto essa natureza pulsante é apresentada, sons de telégrafo se misturam às imagens, estabelecendo desde o início a contradição central de Mauro, que sempre esteve à meia-distância entre o “verdadeiro Brasil” e aquele representado pelos meios de comunicação e as instituições de poder. O sentido das imagens, aqui, é sempre estabelecido pela montagem, pela associação.
As imagens que se seguem compõem uma narrativa que associa os diversos motivos temáticos nas obras de Mauro pela recorrência das formas: as paisagens rurais, os animais, a colheita, o céu, as aparições do próprio cineasta como ator e, claro, as cachoeiras. Daí, se compreende a frase de Mauro que dá o subtítulo ao filme: “cinema é cachoeira” pois ambos estão ligados à natureza do Brasil, de Minas Gerais, tal como ao transbordamento da matéria, à energia cinética da máquina do mundo. E, nesse processo, o filme também entrevê a imagem de uma história do Brasil no século XX, tal como as mudanças que deixaram para trás, a um só passo, o mundo ali retratado e seu cinema, revalorizado apenas quando já estava no final da carreira.
Se há, por um lado, um enorme respeito pelo imaginário mauriano, que praticamente sozinho dá base ao documentário, por outro a lógica proposta pela montagem parece contrapor à forma como o cineasta encarava a relação entre imagem e realidade. Glauber Rocha escrevia que Ganga Bruta “enquadra-se como cinema de mise-en-scène: a montagem não é uma tirania e é a visão do cineasta diante de cada fase dramática que o impulsiona para esta ou aquela escolha da câmera, realizando a montagem a partir de um ritmo interior” (ROCHA, p. 50). Mesmo a multiplicidade de estilos que o filme de 1933 abarca é colocada em perspectiva pela maneira orgânica com que Mauro concebia essa relação com a realidade, pela intimidade que possuía com os processos da physis.
A imagem de Humberto Mauro é aquela da unidade entre homem e mundo, ao passo em que o documentário fragmenta essa dialética delicada por uma montagem constituída de truques, que favorecem uma organização intelectual dos processos do diretor e dividem a riqueza de seu mundo em eixos temáticos. Pois, em Humberto Mauro, o mundo é sempre múltiplo, tecido por contradições que se evidenciam nas fronteiras do plano (aí, inclusive, é onde reside o realismo e a potência de seus filmes). A beleza de sua obra está na relação com o espaço, na continuidade do tempo morto que só é possível através de uma montagem invisível, orgânica. Enquanto, em Humberto Mauro, primeiro mostram-se cenas do campo, depois de animais, em seguida dos engenhos e das cidades (onde ouvimos o cineasta falar sobre os aspectos comerciais no cinema), de modo que nada é integrado, o documentário elimina a unidade possível entre homem e mundo, tão própria ao universo mauriano.
Ao ordenar o filme a partir de uma montagem dialética, na qual o sentido está na relação entre imagens (em oposição ao conteúdo imanente a elas), o que se tem é um cinema muito menos próximo da obra de Mauro que, por exemplo, da de Mario Peixoto – diretor de Limite (1931), obra-prima que historicamente é tida como o lado oposto das vanguardas cinematográficas dos anos 1920-30 e que, inclusive, dá as caras em dado momento do documentário. Tentativa de trazer um contraponto histórico aos filmes de Mauro? Difícil saber mas, independente da intenção, a imagem parece descontextualizada.
Embora a estrutura do filme trilhe por um caminho um tanto contraditório, a seleção das imagens e a composição de uma narrativa sustentam sua 1h30, de modo que a obra se assemelha a uma memória, como se um neto relembrasse as falas longínquas de seu avô – há um momento, inclusive, em que ele envia uma mensagem aos netos, a ser lida no futuro, pedindo-lhes que respondam se a Terra é mesmo azul, vista do espaço. Por esse motivo, é impossível não ver beleza nas associações entre crianças correndo nos filmes de Mauro; na inauguração, ao lado de sua família, de uma avenida em seu nome; nas falas que reivindicam uma paixão pelo cinema brasileiro e a criação de uma indústria nacional; ou mesmo quando o filme rebobina e árvores derrubadas pelo desmatamento voltam a fincar-se no chão.
Apesar de existirem imagens contemporâneas, produzidas para o documentário, lhe faz falta revisitar esse mundo pelo qual Humberto Mauro era tão apaixonado, desvendar novas formas que não apenas se alimentem dos filmes por ele realizados, mas também de um mundo real que, para Mauro, era muito mais importante que a arte. Claro, é um desafio imenso realizar um documentário sobre um dos maiores documentaristas do Brasil – e que inclusive critica os documentários contemporâneos feitos de entrevistas. Mas entre a decomposição de seus filmes sob novo formato ou assistí-los em sua unidade original, a escolha não é difícil, visto que neles há sempre algo novo a se descobrir. Pois Humberto Mauro, mesmo em seus filmes centenários, sempre será contemporâneo – já dizia Paulo César Saraceni, “o Cinema Novo é questão de verdade, e não de idade”.
Biografia
Luca Scupino é cineasta independente, pesquisador e crítico, formado em Cinema pela FAAP, onde dirigiu e roteirizou 4 curtas-metragens. Atualmente pesquisa na área de história do cinema e teoria estética, e escreve artigos para diferentes meios. É cinéfilo desde que se entende por gente.
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A cobertura do 28º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.
Equipe Jovens Críticos Mnemocine:
Coordenação idealização: Flávio Brito
Produção e edição adjunta: Bruno Dias
Edição: Davi Galantier
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