Compondo o 28º Festival Internacional de documentários É Tudo Verdade, a programação da Competição Brasileira de Curtas-Metragens trouxe intensas visões de mundo em nove produções intrinsecamente ligadas pela perspectiva social.
Por Rayane Lima
Integrando a mostra internacional de documentário, a Competição Brasileira de Curtas-Metragens exibiu, nos cinemas nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, um intenso catálogo de obras que projetam e exploram novos pontos de vista de questões sociais presentes não só no Brasil, mas em todo o mundo.
Ao todo, a competição exibiu nove curtas-metragens nas salas do Cine Marquise e Cinemateca – ambos na cidade de São Paulo. A programação foi dividida em duas etapas, contendo cinco filmes na Mostra 1 (Todavia Sinto; Retratos de Piratininga; Materialismo Histórico da Flecha Contra o Relógio; Cama Vazia; Mãri hi – A Árvore do Sonho) e quatro na Mostra 2 (BAMBAMBÃ; Vãnh gõ tõ Laklãnõ; Ferro’s Bar e Aos Mortos, Um Lugar para Habitar).
A Mostra 1 da competição em São Paulo foi inaugurada pela obra Todavia Sinto (2022) – ganhadora do Prêmios EDT. (Associação de Profissionais de Edição Audiovisual) de melhor montagem em curta e longa-metragem – da diretora e roteirista Evelyn Santos. O curta retrata a descoberta de uma gravidez não planejada – e indesejada – de uma jovem mulher preta até a decisão do aborto. Contudo, a trajetória da personagem é acompanhada apenas por diálogos entre ela e o que imaginamos ser seu círculo próximo de convivência, como familiares e amigos. Enquanto as vozes dão vida à imaginação do público, ao mesmo tempo que o contextualiza da situação, a tela é preenchida por imagens do mar que não nos dão dimensão de espaço, tempo ou localização, e sempre por meio de mecanismos de montagem como cortes bruscos ou congelamento de cena. Dessa forma, o curta nos impede de seguir uma linearidade visual, o que evoca uma sensação de sufocamento, aflição e a agonia de estar submerso, ao mesmo tempo em que os áudios dos personagens intensificam a tensão e constroem a história da personagem Evelyn. Até que, por fim, a jovem se olha no espelho e encara a cicatriz que ficou marcada em seu corpo após o procedimento. Assim sendo, a diretora aproxima de maneira pessoal e vívida o espectador desse conflito solitário, interno e psicológico que jovens mulheres – principalmente sem condições estruturais e financeiras – precisam enfrentar, uma vez que a gravidez, indesejada ou não, diz respeito à mulher, sua vida e seu corpo.
O curta Materialismo Histórico da Flecha Contra o Relógio, do renomado diretor do cinema experimental brasileiro Carlos Adriano, exibido na programação 1, também segue um estilo de construção em que as imagens não formam uma sequência linear, mas adotam a junção de arquivos de filmes, fotos, reportagens televisivas e até mesmo de trechos de textos já existentes. Baseando-se no livro “Sobre o Conceito de História” (1940), do filósofo Walter Benjamin, Adriano reúne determinados momentos da história mundial e do Brasil e os aproxima em um paralelo temporal, expondo a repetição dos eventos em tempos históricos diferentes, como imagens da guerra árabe-israelense em 1948 e o legado desse conflito em 2022, ou tiros contra o relógio realizados por revolucionários franceses em 1830 e flechas disparadas contra o mesmo objeto por indígenas brasileiros no ano de 2000. Para contar isso, ele utilizou unicamente da montagem dinâmica e repleta de estímulos, uma vez que isso define seu próprio conceito de imagem – como ele afirmou em um discurso inicial.
Cama Vazia, realizado pela dupla Fábio Rogério e Jean-Claude Bernardet – um dos grandes nomes do cinema no cenário acadêmico – levanta uma denúncia, em cinco minutos, ao que os cineastas denominam de “máquina da morte”. Com a narração de um texto crítico, de carga política, sobre o sistema hospitalar e farmacêutico que vive às custas do envelhecimento de indivíduos, as imagens destrincham e exemplificam a ideia ao observarmos inúmeras fotos do próprio idealizador Jean-Claude, internado em um hospital em frágil estado de vida. O impacto do curta se dá pelo contraste entre o texto lido em voz off e as fortes fotografias tiradas do protagonista, que necessitava dos aparelhos ligados ao seu corpo para sobreviver. A obra traduz e reflete todo o histórico crítico de Bernardet a respeito da indústria farmacêutica e a “face robótica” de médicos e enfermeiros nos hospitais, que se preocupavam diretamente com a doença, negligenciando as dores e complicações do próprio corpo de pacientes. Isso ele descreve em seu livro “O corpo crítico” (2021) após refletir sobre seus embates com esses sistemas como portador de HIV e durante o tratamento de câncer de próstata, que decidiu interromper aos 85 anos.
Retratos do Piratininga, dirigido por André Manfrim, recupera o histórico religioso da Praça da Sé, localizada no centro da cidade de São Paulo, por meio da observação de estátuas construídas no local de importantes figuras que se destacaram no tempo, como José de Anchieta e o Apóstolo Paulo. A explicação histórica, fundamentada por um texto de cunho analítico, é exemplificada por meio das construções dessas estátuas que povoam o centro velho da cidade, além de conter imagens de quadros que contextualizam a participação do líder indígena Tibiriçá, que contribuiu para a fundação da capital paulista e foi convertido ao catolicismo por padres portugueses. Ademais, o legado religioso também é exposto através de filmagens dos cultos e discursos públicos realizados com frequência no centro da praça, que exercem uma nítida conexão entre o passado e o presente do país.
Encerrando a programação 1 dos curtas, Mãri hi – A Árvore do Sonho, dirigido por Morzaniel Iramari (considerado o primeiro cineasta Yanomami) e ganhador da competição de curtas-metragens como melhor documentário, dispõe de uma abordagem onírica ao retratar a visão Yanomami acerca dos sonhos – principalmente por parte de seus Xamãs. Essa perspectiva de devaneio se dá tanto em relação ao tema, que já carrega uma característica subjetiva, quanto na linguagem cinematográfica, composta a partir de imagens do território indígena e de seus ritos, junto à narração na própria língua do povo Yanomami, que permite uma imersão profunda na experiência estética da cosmologia nativa.
Na programação 2 da competição, há outro documentário que também traz de maneira frontal as problemáticas indígenas. Vãnh gõ tõ Laklãnõ (2022) – que foi ganhador do “Prêmio Canal Brasil de Curtas” – é um projeto realizado por alunos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que traz como protagonista o povo Laklãnõ/Xokleng, habitantes da região sul do Brasil. O filme segue o formato de entrevistas com integrantes da comunidade, que resgatam sua cultura, seus costumes e sua língua a partir da comunicação oral. Sendo assim, com fatos, relatos, imagens de arquivos e poemas narrados pelos protagonistas, o curta retrata a história desse povo que sofreu grandes impactos a partir da construção de uma barragem na região, forçando a divisão de seu território sagrado.
BAMBAMBÃ (2022), segue o modelo da reconstituição histórica a partir de fotografias e vídeos de arquivo. Criado pelas professoras do Departamento de Comunicação da PUC-Rio Andréa França (direção e roteiro) e Patrícia Machado (pesquisa), o curta relembra a Exposição Internacional do Centenário da Independência, que ocorreu na cidade do Rio de Janeiro em 7 de setembro de 1922. A exposição foi realizada no intuito de mostrar para os outros países o avanço moderno do Brasil como nação, além de patrocinar o intercâmbio cultural e expor as novidades que se desenvolviam na época em diversas áreas. No entanto, por meio da análise detalhada de registros feitos por dois fotógrafos no período do evento, o documentário também expõe o embate que se deu nos bastidores da cidade, em que houve a completa demolição do histórico Morro do Castelo – um dos pilares do Rio de Janeiro – e a expulsão de seus moradores para que a exposição tomasse lugar. As imagens que aparecem em tela dos registros fotográficos junto com a narração, que discorre sobre os fatos explicados, salientam o objetivo do curta de questionar as fotografias e permitir que elas contêm suas próprias histórias, mais do que a história oficial da própria cidade.
Ferro’s Bar, dirigido por Aline A. Assis, Fernanda Elias, Nayla Guerra e Rita Quadros, e que recebeu menção honrosa na competição – conta a história do famoso bar lésbico, localizado na cidade de São Paulo nos anos 1980, a partir do relato das frequentadoras deste controverso estabelecimento. O curta segue a linguagem do documentário clássico, apresentando o local por meio de relatos das carismáticas entrevistadas e de imagens de arquivos que agregam e reafirmam a importância que o local teve ao movimento lésbico no período. Logo de início, a atenção do espectador é facilmente capturada pelo bom humor das protagonistas, que relembram com nostalgia os bons momentos vividos no bar. Entretanto, não demora muito para que a rememoração dos atos de censura sofridos por elas tragam à tona dor e lágrimas. Sendo assim, o curta envolve e transporta o espectador para o que foi um local não apenas de divertimento, mas também de liberdade e crescimento de um movimento político. Ferro’s Bar é um documentário que dá voz ao movimento lésbico, ao mesmo passo em que representa e fala das mulheres como um todo.
Finalizando a programação 2 da Competição Brasileira de Curtas-Metragem, Aos Mortos, Um Lugar para Habitar – do diretor cearense Victor Lopes Costa – articula, em sete minutos, uma junção entre homenagem, crítica e lembrança. Em um trabalho estruturado pela montagem, Costa cria um ritmo crescente, composto por informações pessoais sobre alguns dos 230.452 mortos durante a pandemia do coronavírus (COVID-19), de acordo com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Conforme a dinâmica da montagem acelera e atinge um pico de imagens e sons, o curta recorre à ideia da lembrança e fragmentos da memória dos familiares ou amigos como tributo à vida das vítimas. Isso é demonstrado por imagens caseiras que o diretor insere no curta de uma mulher – entendemos que vítima da pandemia – aproveitando um dia de praia com sua família. As cenas compõem uma sequência do momento em que a vemos sentada na areia, aproveitando o mar, entre outras atividades de lazer. Desta forma, a produção aproxima o público de maneira humanizada dos inúmeros dados que são apresentados tanto no começo do filme quanto os que foram expostos para o mundo pelos jornais durante a pandemia. Assim sendo, Victor dá um rosto, um corpo e uma história para os números que definem o que foi o ano de 2020.
Apesar de equipes e processos de produções muito diversos, a curadoria do festival reúne curtas-metragens que promovem um diálogo entre si, complementando e acrescentando repertório para o público e as próprias obras apresentadas. Entretanto, ainda que sejam notadas semelhanças, cada curta apresenta, com muita evidência, visões particulares acerca das questões sociais e políticas levantadas. Dessa forma, reúnem-se diversas vozes de grande poder narrativo e forte carga crítica, capazes de influenciar e inspirar muitas produções futuras.
Biografia
Rayane Lima é formada em jornalismo e sempre demonstrou muito interesse pela escrita, principalmente de livros e filmes. Hoje ela estuda cinema na FAAP combinando suas duas áreas de paixão.
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A cobertura do 28º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.
Equipe Jovens Críticos Mnemocine:
Coordenação idealização: Flávio Brito
Produção e edição adjunta: Bruno Dias
Edição: Luca Scupino
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