Por Francesco Felix
Participando da Competição Internacional de Longas e Médias-Metragens do Festival É Tudo Verdade 2024, o filme iraniano Celluloid Underground (2023) apresenta as narrativas tocantes de seu diretor, Ehsan Khoshbakht, notável documentarista e curador de cinema, e de seu mentor, o colecionador de películas Ahmad, que manteve um impressionante acervo de mais de cinco mil filmes durante um período político em que sua posse era proibida. Abordando o assunto da preservação cinematográfica, em um contexto de depreciação da mídia física e descaso de agências governamentais e estúdios de cinema com a memória das cinematografias mundiais, o filme de Khoshbakht ilumina o trabalho silencioso dos colecionadores e historiadores.
Os oitenta minutos desse documentário de cunho pessoal são narrados incessantemente por seu diretor, adotando sua perspectiva desde o início do filme sobre a história do cineasta com Ahmad. Narrando sua infância, Khoshbakht ecoa produções recentes como Os Fabelmans (2022, dir. Steven Spielberg) ao ilustrar o início de sua paixão pelo cinema, sua primeira experiência numa sala de exibição comercial, a primeira vez que viu uma película de filme. Ele conta sobre como montou um projetor de papelão para que essa película pudesse ser exibida, e de sua organização para chamar os amigos para ver esse “acontecimento”.
A infância do diretor foi marcada pela Revolução Iraniana de 1979, que virou de ponta-cabeça toda a organização social do país e resultou em proibições relacionadas ao audiovisual, principalmente no âmbito de possuir e exibir rolos de filme. Muitos foram queimados e perdidos para sempre, nos primeiros anos do novo regime. No entanto, a paixão de Khoshbakht foi irrefreável, e em sua adolescência organizou diversos clubes de discussão e exibição cinematográfica, operando nos limites da lei. Finalmente, conheceu Ahmad, após receber dele rolos de filmes clandestinos escondidos em sacos de arroz, e com ele foi trabalhar, encontrando um mundo de acúmulo, confusão e desintegração que, sem erro, mudou permanentemente a vida do documentarista.
A proposta de Khoshbakht em Celluloid Underground foi a de homenagear Ahmad ao contar sua própria história, traçando paralelos em suas origens e no relacionamento de ambos com o cinema. Os dois homens tiveram a mesma necessidade de exibir filmes mesmo nas mais árduas circunstâncias, de reunir pessoas e de espalhar o cinema por todo o país. Ahmad chega a ser preso, torturado e perseguido por sua reputação de colecionador, enquanto Khoshbakht escolhe pelo exílio, saindo do Irã após o serviço militar compulsório e trabalhando na preservação do seu legado.
Além da exploração dessa relação pessoal entre o diretor e seu objeto, tendência cada vez mais comum no cinema documental contemporâneo, o filme registra momentos em que os dois trabalharam juntos, nos porões em que Ahmad escondia rolos de filme em 35mm e 16mm, pôsteres antigos, revistas, e todo tipo de relíquias que poderiam ser confiscadas e destruídas pelo governo, se encontradas. Khoshbakht se torna um morador do caos de memórias que a paixão de Ahmad iniciou, e é absorvido pelos espaços clandestinos de Teerã, escondidos no subterrâneo. Com uma série de máximas que permeiam a narração, acompanhadas de uma trilha dramática e imagens de arquivo ou reconstituições ficcionais, o diretor pinta um cenário de guerrilha, em que os dois personagens assumem os papéis de verdadeiros detetives do cinema, heróis sorrateiros e cuidadores do tempo. Surgem ideias como a de que o celuloide, fisicamente, é composto tanto de restos humanos quanto de plantas: “ao morrer, voltamos à natureza e retornamos projetados” — uma das frases de efeito encaixadas na história, mais a mérito de impressionar o espectador do que de agregar à tese do autor.
No entanto, com o cenário delicado que vive a preservação cinematográfica hoje em dia, a temática do filme é poderosa e suas escolhas cinematográficas funcionam em um contexto de filme-obituário. Quando Ahmad morre, evento já adiantado nos primeiros minutos da narração e que serve de pontapé inicial para que Ehsan inicie o processo de produção do documentário e resgate da memória, os filmes que este escondia desaparecem – não sabemos onde foram parar, se alguém ainda os mantém ou se estão apodrecendo, esquecidos. “Imagens, como nós, vivem e morrem”, filosofa Khoshbakht novamente. Morando em Londres, incapaz de novamente adentrar os subterrâneos da capital iraniana, a ele resta seguir obedecendo sua necessidade gutural, compartilhada com o antigo mestre: a de manter a memória viva, agora, com a realização deste filme. Ehsan busca com Celluloid Underground erguer um monumento à cinefilia iraniana, ao trabalho de Ahmad e à “invenção de sonhos” em 35mm. Os filmes que foram salvos, lembrados e preservados, infalivelmente se tornam também a ilustração dos filmes que se perderam. Aqui, mais do que nunca, essa tese se concretiza.
Biografia
Francesco Felix concluiu o curso de Cinema pela FAAP e atualmente estuda Letras na FFLCH. Interessado em tudo que envolve a cinefilia, da preservação e restauração de clássicos até a invenção de futuros experimentais. Quando vê um filme, torce sempre para um encantamento, que divida o tempo entre o antes e o depois dos créditos rolarem. Felizmente, acontece muito.
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A cobertura do 29º Festival Internacional de Documentário É Tudo Verdade faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.
Equipe Jovens Críticos Mnemocine:
Coordenação e Idealização: Flávio Brito
Produção e Edição: Bruno Dias
Edição: Davi Krasilchik, Luca Scupino, Fernando Oikawa e Gabriela Saragosa
Edição Adjunta e Assistente de Produção: Davi Krasilchik e Rayane Lima
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