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Estas São As Armas (1978, Murilo Salles); A Zerda e os Cantos do Esquecimento (1982, Assia Djebar) – 12ª Mostra Ecofalante de Cinema

Exibidas no evento como parte da programação da Mostra Histórica: Fraturas (pós-)coloniais e as Lutas do Plantationceno, obras de Murilo Salles e Assia Djebar apresentam mecanismos distintos em suas reflexões sobre o neocolonialismo.

Por Fernando Oikawa

Para um filme, refletir sobre “fraturas (pós)-coloniais”, seguindo o termo proposto pela curadoria da 12ª Mostra Ecofalante, implica em uma operação dupla: olhar, a um só tempo, para o passado — na medida em que é nele onde está a gênese da fratura — e para o presente, espaço no qual ela se manifesta. Não à toa, “pós” é um termo que, neste caso, apropriadamente vem posicionado entre o parênteses da ambivalência, aquele que relembra que a categoria da “pós-colonialidade” traz consigo a implicação de uma temporalidade dissoluta — a lógica colonial não foi, ela sempre é. Mesmo com o fim de seu status oficial após as lutas independentistas, as relações de subordinação se mantêm; daí se entende a necessidade de confrontar, em simultâneo, o ontem e o hoje. Na realidade neocolonial, a História se apresenta conjugada no tempo presente.

É nesse exercício duplo de reflexão  — e presentificação da História — que convergem os documentários Estas São as Armas (1978), filme de Moçambique realizado pelo brasileiro Murilo Salles, e A Zerda e os Cantos do Esquecimento (1982), da argelina Assia Djebar. Exibidos em sessão conjunta como parte da programação histórica da Mostra Ecofalante, os dois médias-metragens se afirmam como tentativas de apropriação da História oficial pelo colonizado, buscando recontar, de seus pontos de vista, a dominação em suas respectivas regiões. Se a vocação decolonial aproxima essas duas produções, suas estratégias não poderiam ser mais divergentes, optando por caminhos distintos dentro da tradição do cinema documental: um rumo à exposição; outro, à retórica poetizada.

Estas São As Armas não esconde seu caráter educativo. Financiado pelo Instituto Nacional de Cinema de Moçambique, recém-fundado pelo governo independente do país, o documentário de Salles assume tanto uma posição de denúncia como também de panfleto. De início, apresenta um panorama sintético das mazelas da colonização portuguesa no país e da guerra que culminou na independência de Moçambique em 1975; em seguida, uma apresentação dos novos valores que serviam de guias para o governo da Frelimo, organização que encabeçara as lutas liberacionistas e que depois assumiria o comando do país recém-formado.

Não deixa de ser curioso o fato de um filme de caráter eminentemente nacional ter sido dirigido por um estrangeiro. Nascido em 1950 na cidade do Rio de Janeiro, Murilo Salles havia se consolidado como um celebrado diretor de fotografia no Brasil, assinando clássicos como Lição de Amor (1975, Eduardo Escorel) e Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976, Bruno Barreto), quando foi convidado a emigrar ao Moçambique pelo cineasta Ruy Guerra, então diretor do Instituto Nacional de Cinema. Salles passou a dar aulas de cinema e fotografia no país e realizou Estas São Armas para o Instituto, no contexto em que o cinema se colocava como ferramenta educativa para a criação de um “homem novo” dentro do regime socialista, liberto da ideologia burguesa.

Até por conta dessa intenção revolucionária, a abordagem aqui está muito próxima dos preceitos do “Terceiro Cinema”, conforme formulado pelos argentinos Fernando Solanas e Octavio Getino em seu manifesto clássico, “Hacia un tercer cine” (1969) — um cinema militante e terceiro-mundista, que distancia-se da prática industrial para se assumir, essencialmente, como instrumento da luta popular contra o imperialismo. De fato, a retórica mobilizadora das massas faz-se aqui presente, bem como o desejo quase ensaístico (e sociologizante) de se produzir um diagnóstico a respeito da macro-história, elementos tão recorrentes no cinema político do período, como em La Hora de Los Hornos (1968), de Solanas e Getino, ou A Batalha do Chile (1972-74, Patricio Guzmán).

No entanto, se o Terceiro Cinema costuma se posicionar como forma de  guerrilha, em uma espécie de chamamento às armas para a derrubada dos poderes (neo)coloniais, aqui a situação é distinta: trata-se de um discurso que nasce de um governo revolucionário já vitorioso, ou seja, um que não precisa mais operar na clandestinidade imposta pelos regimes autoritários. Em contraposição a uma postura incendiária, prevalece aqui um certo tom de oficialidade, algo consistente com um documentário que se coloca como instrumento para a consolidação do governo. O que Estas São As Armas traz, em seu cerne, é um desejo de comunhão nacional em torno do projeto socialista da Frelimo, oferecendo um relato que visa cristalizar a vitória do movimento independentista na nova História oficial do país.

Talvez o que mais impressione no documentário seja a amplitude dos registros históricos. Mesmo que a duração não ultrapasse a marca de uma hora, Salles combina desde materiais de arquivo, do período sob a colonização portuguesa, até imagens diretas da Guerra de Independência, entre fotografias e filmagens dos eventos históricos, somados a discursos políticos da Frelimo, de modo que a associação passado–presente reforça o projeto militante defendido. A despeito da extensão desse acervo, a montagem, contudo, raras vezes consegue transcender um estilo burocrático, do qual a voz over impessoal é a marca mais nítida. 

Por sua autonomia, são mais proveitosas as passagens que preservam o som direto do arquivo que aquelas que transferem sua produção de sentido à “voz de Deus” do narrador. Quando, em um momento, vemos soldados moçambicanos gritando “viva!”, ou quando escutamos mulheres e crianças a cantar, o que está no centro da imagem é o próprio povo como mecanismo vivo da história; quando, por sua vez, assistimos a sequências similares tomadas pela narração, pouco elas nos dizem da realidade: a produção de sentido é transferida ao texto. Tal procedimento não é problemático por si só — vários cineastas, como os já citados Solanas e Guzmán, trabalham em suas filmografias as potencialidades que existem entre voz e visualidade —, mas aqui não existe um interesse maior nessa articulação. São poucas as sequências que se aventuram a explorar contrapontos entre imagem e palavra, ou até mesmo entre diferentes materiais de arquivo, afastando-se das tendências rítmicas da montagem soviética, tão caras ao Terceiro Cinema. Aqui não: menos interessa à obra dialetizar as imagens que apresentá-las como unidades semânticas, em rigoroso modo expositivo.

Não basta a voz externa descrever as imagens que vemos. É preciso que, diante delas, o filme formule perguntas retóricas de caráter didático, respondendo-as no instante seguinte. Se o texto ampliasse as possibilidades de leitura dos registros, poderíamos valorizar o caráter ecfrástico do discurso, mas os procedimentos da obra não tem a qualidade reflexivo-descritiva que é própria da técnica da écfrase— há, sim, redundância, ecoando uma concepção de documentário ainda muito pautada pelo logocentrismo. Estas São As Armas quer muito definir suas intenções, mas ignora que o sentido político do documentário nasce sobretudo daquilo que se apresenta aberto e inconcluso: quando La Hora de Los Hornos exibe, por vários minutos, o rosto morto de Che, ao som ritmado dos tambores, ele prescinde de qualquer palavra — a imagem por si só basta, como ordem e chamamento. Não à toa, duas das melhores sequências de Estas São As Armas são passagens sem narração em que Salles justapõe de maneira irônica as imagens do Moçambique ocupado a fados lusitanos de letra imperialista, reiterando a falsidade do mito da colonização pacífica. O que se coloca em jogo é a própria parcialidade dos discursos (imagéticos, musicais, textuais etc.), para concretizar o desejo da obra de produzir uma reflexão, dos colonizados, sobre a escritura de sua história.

É esse mesmo desejo que surge de modo ainda mais explícito em A Zerda e os Cantos do Esquecimento. Último filme de apenas dois realizados por Djebar, mais conhecida por seu trabalho como escritora, o ensaio poético da argelina volta-se diretamente para a confrontação das imagens produzidas pelo colonizador, aquelas nas quais se faz presente “um olhar que fuzila”, como diz o texto de abertura da obra. “Olhar”, afinal, será um termo chave para compreender as intenções do projeto da argelina. Em uma empreitada arquivística, Djebar reúne imagens produzidas nas colônias da região do Magreb entre 1912 e 1942: fotos e filmagens de práticas cotidianas, tradições populares, rostos anônimos ou não, examinando o que esses registros revelam e deixam de revelar do período.

A Zerda inicia estabelecendo um panorama sintético da derrocada de alguns países — Argélia, Egito, Marrocos, Tunísia — para as potências imperiais, por volta de 1911 a 1914. Progressivamente, os anos avançam, enquanto assistimos às imagens do cotidiano em transformação. São essas as poucas coordenadas que Djebar oferece  da realidade que retrata: algumas datas, alguns marcos históricos, um ou outro nome de um líder. Ao longo de pouco menos de uma hora, a cineasta empregará esses materiais para compor um mosaico da experiência colonial nesses países, justapostas a uma narração off que opera o procedimento de apropriação que Djebar busca sobre o arquivo. O texto ora é ensaístico, ora performático, por meio dos “cantos do esquecimento” — compostos pelo músico marroquinho Ahmed Essyad — que conferem um sentido elegíaco a esses retratos-fantasmas.

Se, por um lado, tal estratégia representa um prejuízo à clareza do discurso, o experimentalismo da abordagem em contrapartida oferece desdobramentos interessantes, ainda que por vezes estes se esgotem pela repetição do procedimento. À cineasta, menos lhe interessa narrar didaticamente a história magrebina que encontrar mecanismos reflexivos sobre a própria natureza das imagens, reforçando, em última instância, a falibilidade do registro imagético. Diante do arquivo, estimula-se a dúvida, na medida em que ele nada mais é do que uma seleção de registros realizada pelos vencedores: a destruição das plantações locais pela metrópole não está nas filmagens da Pathé e, não obstante, ela ocorreu. A cantiga de Djebar, cantada diante das imagens incompletas, é o que permite a recuperação dessas ocorrências históricas, a partir do gesto performático que se faz no âmbito do cinema.

A natureza desses cantos é complexa: se realizássemos sua declinação, o “esquecimento” do título poderia ser tanto genitivo objetivo (o canto versa sobre o esquecimento) como genitivo subjetivo (o canto nasce do esquecimento). Tanto em um caso quanto em outro, fica nítido que a performance almeja à reversão do oblívio. “A memória é a voz de uma mulher”, canta a cineasta. Logo em seguida, uma menina, vestida com roupas tradicionais, surge numa foto, fitando a câmera: “apenas seus olhos fixam o nosso presente”. Para Djebar, as imagens operam assim, como vestígios do passado que confrontam o agora — daí a menção a  um “passado presentificado”. Temos a impressão de a menina querer nos dizer algo, mas é vã a ideia: ela é só imagem, podemos apenas perscrutar, em seus olhos graves, o limite da incomunicabilidade. O silêncio nos obriga a novas interrogações.“O que resta dessa foto, o que resta desse olhar?”, pergunta a diretora, em outro momento.

Trata-se de um passado que se esfacela, inclusive pelas imagens que repõem um olhar exotificado sobre essa realidade. As fotos e filmagens produzidas por europeus durante a ocupação nas colônias africanas são resultados de missões etnográficas cujo teor perpassa pelo racismo e o orientalismo, destituindo os sujeitos de subjetividade — passam a ser “o outro”, reificados na condição de retrato. E, nesse sentido, na medida em que a fotografia embalsama o objeto fotografado, tal como defende Bazin em sua “Ontologia da Imagem Fotográfica”, sua condição de “âmbar” muito bem qualifica as imagens e os filmes também como mercadorias: tal qual as jóias ornamentais realizadas com o material fóssil, os registros igualmente são passíveis de comercialização. Na produção imagética, afinal, não deixa de existir uma lógica predatória sobre a apropriação do outro, em que o gesto de obter uma foto ou filmagem (“to shoot”, no inglês) se assemelha a uma caçada, como comentou Susan Sontag em “Sobre Fotografia” (1977) ao observar a substituição das armas por câmeras em safáris — a imagem é levada como triunfo de sua dominação.

Enquanto passam os registros da Zerda, festividade magrebina destacada no título, filmadas através das lentes européias, Djebar relembra: “Nós sobrevivemos. Eles nos fotografam, descalços e de barriga vazia, como souvenirs para as belas damas e senhores”. Se a imagem original perpetua essa violência, ao recuperar as imagens da celebração, a cineasta espera romper com a lógica reificante, restituindo os registros a seu grupo de origem e sua temporalidade. Ao mesmo tempo que o filme explicita as tensões inerentes ao material (a presença dos europeus espectadores, da polícia etc.), o discurso da obra reposiciona a festividade não como coisa exótica, mas sim como gestos resistentes de uma cultura ocupada.

Não há aqui qualquer sentido de utopia, porém — e nesse sentido, A Zerda e os Cantos do Esquecimento se separa radicalmente de Estas São As Armas. Onde o filme de Salles ressalta a persistência heróica do povo, Djebar comenta o esvaziamento da alegria das danças e canções, cujos gestos vão perdendo valor diante da dominação. Até pelo recorte histórico escolhido, limitado até o período da Segunda Guerra Mundial, a obra não vem a retratar as guerras de libertação das colônias e as esperanças decoloniais que, em contrapartida, Estas São As Armas se centra em reverberar. O final da produção moçambicana — ela própria uma “arma” na luta neocolonial —  é exemplar dessa postura, ao mostrar um discurso do então presidente Samora Machel, exibindo as primeiras armas usadas na luta de libertação. “A produção que vocês têm hoje vem dessas armas”, diz ele para relembrar a necessidade de luta contínua, sobretudo diante do medo constante de derrubada do governo independente por forças estrangeiras. Sua ode bélica, combativa mas esperançosa, entrelaça passado e futuro.

Na obra de Djebar, a catarse não chega, tampouco o amanhã. Não há lugar para nada, senão a afirmativa contínua de um luto presente pelas perdas do ontem; por isso, o tom elegíaco que se estende ao longo de todo o filme. A Zerda afirma-se como um poema enlutado, em homenagem à cultura popular e a um povo dilacerado. Ao recuperar as fotografias pela sua própria voz, a lógica do âmbar é a mesma, mas sua intencionalidade se reverte: não mais as fotos cristalizam um passado comercializável, mas sim a memória viva da colonização. Na sequência final, embalados pelas últimas notas das canções, os rostos anônimos do passado confrontam o presente do filme como vultos fantasmagóricos que clamam por palavra, embora silentes. Como canta a voz argelina, eles erguem-se das “águas do esquecimento”, em confronto com nosso olhar, tendo suas imagens devolvidas ao mundo através do cinema: “todos os nossos mortos devagar vêm até nós”.

Biografia

Fernando Oikawa Garcia é graduando em Cinema na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), onde realizou projeto de pesquisa sobre o cineasta Fernando E. Solanas. É diretor e roteirista de três curta-metragens, buscando refletir nas produções seu interesse pelas possibilidades de diálogo entre cinema e literatura.

A cobertura da 12ª Mostra Ecofalante de Cinema faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos à Atti Comunicação e Ideias e Francisco Cesar Filho por todo o apoio na cobertura do evento. 

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção: Bruno Dias

Edição: Luca Scupino

Edição Adjunta e Organização: Rayane Lima

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