Grande vencedor da Mostra Ecofalante, em “A Invenção do Outro” o cineasta Bruno Jorge acompanha uma missão de alto risco da Funai, liderada por Bruno Pereira, indigenista assassinado há um ano. O processo engendra uma discussão potente sobre a alteridade no cinema etnográfico.
Por Luca Scupino
Em mais de um século de história do cinema, e até muito recentemente, o nativo sempre foi o maior representante do Outro ao olhar do documentarista. Aquele que está fora do sistema de representação pela mimese, o desconhecido a quem o cineasta-antropólogo deverá dar a ver, encontrar formas de imaginar: Lacan ensinou que todo exercício de criação de alteridade é movido por uma falta-a-ser, por um processo de autorreconhecimento projetivo. Pois, já dizia Rimbaud: “o eu é um outro”. E o Outro existe à imagem do Eu.
De clássicos como Nanook, o esquimó (1922, Robert Flaherty), O grande silêncio branco (1924, Herbert Ponting) e Tabu (1931, F.W. Murnau), o filme etnográfico foi o domínio encontrado no cinema para estabelecer essa ponte de olhares; por vezes caindo no exotismo, na criação de uma distância intransponível que elimina a possibilidade do cinema como forma de mediação (cultural, mas também estética), quando encara um povo como totalmente externo ao seu olhar. Pois, na medida em que o filme cria o mito de que irá retratar um outro que não performa – muitas vezes, por este ter claro que sua imagem não é ele mesmo, que a mimese não pode roubar sua essência, se voltar contra si -, corre-se o risco de não reconhecer que há um Eu (cineasta) mediando esta troca, estabelecendo o cinema como linguagem comum.
A Invenção do Outro, grande vencedor do Festival de Brasília em 2022, já traz no seu título o cerne da questão. No filme, o cineasta Bruno Jorge é convidado pelo indigenista Bruno Pereira para retratar um processo de reintegração realizado no Vale do Javari pela FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), em 2019, entre grupos separados de uma mesma aldeia indígena, os Korubo – um deles “integrado”, e o outro que nunca teve contato pessoas de fora da comunidade. Jorge realizou e montou o filme sozinho, e contou com a colaboração de Bruno Palazzo para a trilha sonora e mixagem de som, presença marcante na obra.
A morte é um elemento que espreita o filme. Tanto pelo alto risco da operação, como também pelo fato de que Bruno Pereira foi assassinado três anos depois das filmagens, ao lado do jornalista Dom Philipps, em uma operação similar que se encontrou no cruzamento entre garimpo ilegal e uma rede de tráfico de drogas, crime há um ano sem solução. E tudo no filme aponta para um risco iminente, da sua estrutura de suspense ao desenho de som que ressalta a vida da floresta, reiterando o mergulho no desconhecido. Sabemos, também, como cada processo de descobrimento do outro funciona como uma micro-experiência de morte, por lidar diretamente com o que há de ausente, de vazio.
O filme é herdeiro do documentário observacional, aquele que não anuncia diegeticamente a presença do cineasta e busca por uma certa indistinção entre o filmado e não-filmado. Em raros momentos os retratados se dirigem à câmera, sendo o mais marcante deles no primeiro reencontro entre a tribo, quando os membros isolados olham para o equipamento e questionam o que é aquele objeto que desconhecem. Ao que os índios ao lado da Funai respondem ser apenas um instrumento de registro e que não é necessário se preocupar.
É curioso um filme de título “A Invenção do Outro” ser realizado no modo de “cinema direto”, o tipo de documentário que menos busca evidenciar a ação de quem o realiza, e que mais atende, supostamente, à ilusão de ser uma “janela para o mundo”, fora de deliberações da linguagem. Poderíamos até pensar que, na dicotomia Eu-Outro, o lugar de identificação aqui estaria no personagem Bruno Pereira, a quem o espectador se coloca no lugar. Em um país onde o sangue indígena escorre em todos, é ainda mais complexo pensar nessa posição.
No entanto, considerar que o cineasta Bruno Jorge se esconde atrás do aparelho é uma presunção incorreta. Pelo contrário, ao mesmo passo em que há uma regra (não dita) de não-intervenção no comportamento de quem é retratado, também existe uma intenção clara de transformar tudo em estético. Todas as imagens aqui são regidas por uma composição rigorosa, mesmo na mais austera das situações. Tudo parece feito para a tela de cinema, em uma proporção de tela bastante horizontal, grandiosa. Que, deve-se notar, também evita o exotismo, a criação de um mito sobre a região, a generalização daquela aldeia particular como “o indígena”.
Logo no início, há uma cena em que dois Korubo, no barco da Funai, fazem uma brincadeira em que balançam seus braços. O movimento, em contraste com um fundo preto, se transforma em uma abstração cinética, que dá lugar ao título. O filme também tem uma relação forte com a modulação do tempo: as quase duas horas e meia apontam para uma dilatação da experiência temporal a um ritmo próximo dos Korubo, e há também o recurso ao slow-motion como maneira de dar um outro olhar aos movimentos, uma pausa para observar.
Cria-se uma dialética interessante: ao mesmo tempo em que o filme foge de qualquer tipo de comportamento que poderia ser interpretado como “falso”, trazido à tona pela presença da câmera, ele também está muito preocupado com a representação, em compor de uma distância bela e correta. Há momentos, inclusive, que os próprios Korubo encenam situações que viveram a partir de danças, jogos de autorrepresentação. O exercício de invenção da memória e o imaginário estão ali, e o papel do cineasta está em captar isso de maneira justa. A não-intervenção, paradoxalmente, transforma o campo em uma ficção em que cada um, alheio à presença ou não-presença da câmera, se transforma em personagem no mundo.
Um dado importante: durante muito tempo vemos apenas homens no filme. As mulheres, inclusive indígenas, só irão aparecer mais ao final. Há, até, uma enfermeira da FUNAI que é apresentada ao espectador na mesma cena em que os Korubos a conhecem pela primeira vez. Temos então um outro Outro inventado pela montagem – esta que é, no fundo, a criação de uma unidade a partir dos fragmentos (e não é isso que o processo de reconhecimento faz?). O filme revela-se, então, sobre a integração dessas distâncias: branco e indígena, indígena e indígena, homem e mulher, sapiens e animal (há de se lembrar do macaquinho nos ombros do menino Korubo, no final do filme). E, claro, câmera e mundo.
Mirando por um processo de mediação das diferenças, em alguns momentos essa relação se tensiona. A cena mais linda do filme é a do reencontro entre a tribo: minutos e minutos de irmãos e parentes se abraçando, entoando um canto, se desdiferenciando pelo toque. E eles se perguntam, em um momento que rende risadas da plateia, por quê os brancos da Funai, observando de pé, não sentam e choram junto. Outras cenas brutais detalham a morte de chimpanzés e tartarugas para alimentação, e a tendência do espectador é sempre virar os olhos para essa violência. O filme é um convite para estar na floresta, sentir profundamente o choque de culturas, se integrar na sua diferença. Mas será que ele consegue ir até o fim, ou o outro sempre será um outro, uma falta? Poderá o “Eu, um Negro”, de Jean Rouch, se traduzir no “Eu, um Índio”, de Bruno Jorge?
O filme não traz conclusões fáceis, optando por uma certa opacidade no final. A última cena mostra um helicóptero vermelho chegando à floresta, objeto tão incomum às duas horas anteriores que chega a gerar um estranhamento, seguido por vários planos-detalhe em câmera lenta. Eis que, tendo passado pela operação imaginária e pelas estruturas simbólicas da antropologia, nos deparamos com o Real, uma força que rompe com a capacidade perceptiva construída até então. A Invenção do Outro certamente desafia o espectador, conceitualmente, dando continuidade às provocações que são próprias ao deslocamento subjetivo e cultural no qual se compõe. Mas, ao término de sua projeção, certamente algo aconteceu.
Biografia
Luca Scupino é formado em Cinema pela FAAP, onde realizou quatro curtas-metragens. Atualmente pesquisa no campo da estética e história do cinema, e escreve para diferentes meios.
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A cobertura da 12ª Mostra Ecofalante de Cinema faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.
Agradecemos à Atti Comunicação e Ideias e Francisco Cesar Filho por todo o apoio na cobertura do evento.
Equipe Jovens Críticos Mnemocine:
Coordenação e Idealização: Flávio Brito
Produção: Bruno Dias
Edição: Luca Scupino
Edição Adjunta e Organização: Rayane Lima
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