Na ocasião da 12ª Mostra Ecofalante, onde Jorge Bodanzky exibiu seu documentário Amazônia, a Nova Minamata? (2022) e ministrou um workshop sobre cinema, a Mnemocine entrevista o importante cineasta brasileiro para refletir sobre seu passado, presente e futuro.
Fotografia tirada com o celular durante workshop realizado por Bodanzky na Mostra Ecofalante – Créditos: Luca Scupino
Por Luca Scupino
Aos 80 anos, Jorge Bodanzky acumula uma série de títulos. Conhecido até hoje pela direção de Iracema: uma transa amazônica (1974), ao lado de Orlando Senna – filme que revolucionou o documentário brasileiro ao tratar de maneira crítica do projeto militar na região da Amazônia – Bodanzky também é fotógrafo e autor de mais de 30 projetos audiovisuais. Foi estudante em Brasília no auge da repressão e frequentemente viaja com sua câmera em busca do Brasil, além de ser pai da cineasta Laís Bodanzky. Recentemente, assinou uma minissérie para a HBO, Transamazônica: uma estrada para o passado (2019), e lançou o longa de documentário Amazônia, a Nova Minamata? (2022), que denuncia os efeitos socioambientais do garimpo ilegal de mercúrio, próximo a aldeias indígenas. No entanto, essa descrição apenas começa a dar conta da personalidade de Bodanzky, movido por uma curiosidade e energia incansáveis.
A 12ª Mostra Ecofalante em 2023, além de contar com a exibição de seu novo filme, também proporcionou um workshop sobre documentário com o cineasta, durante um fim de semana. Nele, Bodanzky retorna a um velho papel que ocupou quando foi professor de cinema de 1969 a 1988, na USP, Unicamp, UnB e FAAP. Entre a apresentação de trechos de seus filmes – alguns dos quais inéditos, como rolos em Super 8 realizados nos anos 1960 em Brasília e recentemente restaurados pelo Instituto Moreira Salles -, conversas sobre projetos de alunos e discussões sobre o processo do documentário, revelou-se alguém que permanece profundamente conectado com o mundo ao seu redor. Preocupado com o volume do áudio, a temperatura do ambiente, o tamanho da televisão e se a experiência em aula estava rendendo, com Bodanzky sempre há uma importante troca, característica tanto em seus filmes quanto nas conversas com o diretor.
Seus profundos olhos azuis não deixam enganar que a mais importante qualidade em um cineasta está no seu olhar, e a roupa de antropólogo deixa claro que Bodanzky está pronto para partir à batalha em qualquer momento (com sua câmera de celular, na qual filmou todas as suas obras dos últimos cinco anos). Já dizia em sua biografia, publicada pela coleção Aplauso e escrita por Carlos Alberto Mattos: “a satisfação é plena quando eu consigo juntar viagem e cinema. Quanto mais longe, incômodo e precário, melhor”.
A Mnemocine teve a oportunidade de entrevistá-lo em sua casa, na manhã do dia 27 de junho de 2023, sobre tópicos que vão de sua carreira como fotógrafo aos métodos contemporâneos de filmagem e à produção e exibição de documentário no Brasil. Uma transcrição completa da entrevista, que durou 40 minutos, será futuramente publicada.
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Luca Scupino (Mnemocine): Depois dos encontros e desencontros, fico muito feliz de poder realizar essa conversa. E eu queria voltar um pouco para a semana da Ecofalante. Além do workshop e das sessões do seu novo filme Amazônia, a nova Minamata? (2022), na mesma semana também aconteceu uma exibição comemorativa do Iracema – uma Transa Amazônica (1974) no Cine Bijou, ao lado de um curta-metragem da Janaína Wagner, Curupira e a Máquina do Destino (2021). E uma personagem do curta é a fantasma de Iracema. Me parece que sempre que se discute sua obra, acabamos voltando para o filme de 74. Você se sente assombrado pelo fantasma da Iracema?
Jorge Bodanzky: Já sentia antes, né? O filme tem 50 anos. Então ele já passou por tudo, tudo que você possa imaginar. A minha relação com o Iracema teve altos e baixos, em todos os sentidos. Esses últimos anos foram mais tranquilos. Antes, me incomodava um pouco a discussão ficar só no Iracema, porque eu tenho outros trabalhos. Mas depois, tudo bem: se é para ser Iracema, que seja e vamos em frente, né? E também tem um lado gostoso, porque a gente fez um trabalho muito pequeno, modesto, para um programa da televisão alemã que numa situação normal morreria ali, seria exibido e pronto. Tipo um Globo Repórter, passou e acabou. E aí, aconteceram tantas coisas que ele se tornou um filme de cinema, o que não estava previsto. Tanto é que ele foi rodado em 16 milímetros, que na época era o padrão da televisão alemã. E para poder ir para o cinema, para o Festival de Cannes, onde ele foi convidado, tinha que ampliar para 35 milímetros. Agora, nesse momento, por conta dos 50 anos, a gente vai fazer o restauro do filme. Na realidade, ele não precisa de um restauro. Ele já está com uma cópia boa, mas a gente vai refazer isso a partir do original em 16mm. E hoje você tem mais condições de trabalhar o som, né? A partir do som original – que foi localizado tanto o original quanto a banda de som no magnético que se usava na época. Então a gente vai ter um filme praticamente novo, a partir desse restauro.
LS: Ainda sobre o Iracema: eu lembro de você falando que a última cena do filme, quando o caminhão está partindo, mostrava de fato caminhão da produção indo embora, e toda a reação ali era para o fato de que realmente ele não ia voltar, na realidade “fora do filme”, vamos dizer assim… E muito do que está no filme diz respeito a uma confusão entre o processo de produção e essa situação ficcionalizada. Eu queria entender como é o seu processo para trabalhar isso, no set, com a equipe, para eles se prepararem para lidar com esse acaso.
JB: É uma equipe, em primeiro lugar, pequena. Porque quanto menos pessoas, menos interferência existe no ambiente, mais natural ele fica, as pessoas não se constrangem. E era uma equipe que também não tinha apenas uma especialidade. Por exemplo, o técnico de som não era só o técnico de som, ele tinha que estar atento a tudo que acontece, não só preocupado com o microfone dele. Porque se ele não acompanhasse a situação, ele não ia conseguir acompanhar a minha movimentação de câmera. Que era uma movimentação totalmente improvisada, de acordo com aquilo que passava na sua frente.
LS: Você sempre opera a câmera?
JB: É, eu faço a câmera. Sempre fiz a câmera dos meus filmes. Quase todos, alguns não. Mas eu gosto de fazer a câmera e eu dirijo com a câmera. Eu não ponho um ator em função da câmera: a câmera que vai em função do ator, assim como o som. Então a equipe, sabendo disso, ficava extremamente atenta para onde a câmera estava apontando, o que estava acontecendo. Você tem que filmar com dois olhos abertos, né? Um no olhar da câmera e o outro no que está em torno.
LS: Tem uma frase, acho que é do Godard, que diz que toda toda boa ficção precisa de um bom documentário no seu interior, e todo bom documentário tende à ficção.
JB: Até um tempo atrás se fazia essa divisão entre ficção e documentário… Hoje, isso acabou. Os festivais eram muito especializados: tinha festival de documentário, festival de ficção… E o Iracema, é engraçado, porque ele passava em um ou no outro e ninguém questionava, nunca ninguém pois isso em questão. E, recentemente, se abandonou isso. Então, isso passou a ser corriqueiro, né?
LS: Quais são suas influências? Você pensa nelas quando está fazendo um novo filme?
JB: Não, não penso mais não. Também não pensava no início. É uma influência da minha geração, da minha formação. Quando eu tinha 16, 17 anos e comecei a me interessar por cinema havia a Sociedade Amigos da Cinemateca, com uma programação excelente, filmes do mundo todo. E, naquele momento, havia um seminário de cinema documentário. Estavam lá Roberto Santos, Jean-Claude Bernadet, Paulo Emílio Salles Gomes… Grandes figuras do cinema brasileiro estavam presentes nesse seminário. E aí trouxeram uma novidade na época, que é um documentário chamado Aruanda (1959), do Linduarte Noronha, talvez o primeiro filme brasileiro com uma linguagem neorrealista, que abriu o Cinema Novo. E esse filme me impressionou muito, filme em 16mm, muito simples. É uma história de ficção, mas os personagens improvisaram porque não eram atores. E eu olhei aquilo e falei: poxa vida, isso é um cinema que eu posso fazer, e que eu gostaria de fazer, porque os outros filmes eram muito complicados para quem estava de fora, “nossa, eu nunca vou chegar lá”, entende? Agora, esse não, esse é um filme que, se me derem uma câmera, eu faço um filme assim. Então isso me abriu os olhos. E fora que, na época, era muito presente a Nouvelle Vague, o Neorrealismo Italiano… Foi a minha formação. Mas particularmente me influenciaram os filmes do Jean Rouch, que eu conheci também na nas projeções da Cinemateca. Aí eu me identifiquei totalmente. E o Jean Rouch teve a felicidade, sendo antropólogo – ele não era cineasta, mas se tornou – de trabalhar em um no momento quando surgiu uma tecnologia que permitiu fazer o som direto. Que se tornou o que se chamou Cinema Verité, né? Um cinema com equipamento mais leve e equipamento que não fazia ruído. Porque as câmeras eram ruidosas. Então, nem que tivesse, você não podia gravar o som com o barulho da câmera. E veio Nagra, um gravador que trabalhava com sincronismo na câmera, um gravador portátil hoje pesado, mas na época era de uma qualidade excelente. E que tinha essa particularidade fundamental de ser sincronizado com a câmera. Ele funcionava com a ligação de um cabo. Iracema foi todo feito ainda com o cabo que ligava a câmera ao som. Imagine eu me mexendo e o cara do som preso, né? Porque tinha o cabo e, ao mesmo tempo, ele tinha que estar livre para se posicionar da melhor forma. Mas olha, funciona. A gente tinha isso e estava feliz da vida, porque funcionava muito bem.
LS: Voltando um pouco para o Jean Rouch, eu lembro de você falando dele bastante no workshop. E assistindo ao seu novo filme, Amazônia, a nova Minamata? (2022), eu percebo que, diferente de alguns filmes seus – a gente pode pensar no Iracema, por exemplo -, ele se afasta desse cunho etnográfico mais tradicional, porque tem uma preocupação mais imediata, de denúncia, de exposição daquela situação. E, nesse sentido, eu tenho a impressão de que ele se aproxima de um outro cânone do documentário, que é Nanook, um esquimó (1922, Robert Flaherty), o modo clássico de documentário. Você acha que a gente sempre volta ao início, quando estamos falando de cinema?
JB: Sempre, sim. O Nanook é incrível, porque na realidade ele nem é um documentário, tudo aquilo foi montado. A história do Nanook é muito curiosa, vale a pena conhecer em detalhes. Porque o Flaherty fez o filme, depois perdeu e teve que refazer. Então, ele reincenou o filme que ele tinha feito. No entanto, ele inaugura o documentário, a palavra “documentário” surgiu a partir do Nanook. Então, se você recorre à história do cinema, é impossível não começar a partir do Nanook.
LS: Ainda sobre o Amazônia: a nova Minamata?, tenho a impressão de que ele está mais preocupado em mostrar aquela realidade, necessariamente, do que a criar belas composições, belas imagens. Mas acho que as duas coisas aparecem juntas, e me chama atenção que, no final dos depoimentos, sempre tem um retrato da pessoa entrevistada, mostrando que importa ali, na verdade, são as pessoas. E eu queria perguntar se você pensa que esse retrato vem da sua herança de fotógrafo. Ou melhor, como sua herança de fotógrafo impactou o seu cinema?
JB: Claro que impacta, né? Porque eu fui durante muitos anos fotógrafo, e continuo sendo, até hoje. E trabalhei muitos anos como câmera, tanto no cinema de ficção, mas principalmente documentários para as TVs estrangeiras. E então isso me deu uma cancha muito grande. Meu cinema é o meu olhar da câmera, eu faço cinema através da minha câmera. E, no caso do Minamata é um pouco mais complexo, porque eu fiz a segunda câmera com meu celular. Os produtores não gostaram, desconfiaram (risos). “Vamos contratar um câmera, você faz a tua brincadeira com o celular, mas o filme a gente vai fazer com um câmera, né?”. E na hora surgiu essa ideia do retrato, mas eu sempre disse pra equipe toda: “você só termina quando eu disser”. Quer dizer, quando acaba uma entrevista, a gente espera, porque o entrevistado sempre começa a falar naturalmente depois. As melhores coisas vêm quando você acabou de filmar. Se você desligou a câmera e o gravador, você perde isso, entende? Então, você diz “muito bem, acabou” e fica todo mundo parado esperando o que vai acontecer. E foi assim que surgiu. Aí eu disse pro [Paulo Gambale] Maká: “não desliga a câmera de jeito nenhum. Fica lá com a câmera nele, entende?” E o cara do som também. E foi assim que surgiu isso, sem nenhuma teoria por trás. Mais no sentido de deixar ele falar uma coisa além da pergunta, né? Então na realidade você não precisa nem perguntar, bastou a expressão dele.
LS: Faz cinco anos que quase todos os seus filmes são filmados no celular. Queria que você enfatizasse o que isso muda em relação à abordagem do documentário.
JB: Tem uma coisa importantíssima que acontece com o celular, porque quando a gente filma as pessoas e principalmente as comunidades ribeirinhas e indígenas, sempre fica com a sensação que, como você está com um aparelho, que você tem um controle da imagem e eles não sabem o que que vai acontecer. Você está filmando, leva aquela aquela caixa preta e some com isso. E na medida em que você chega com o celular, muda radicalmente a tua posição, porque como eles também usam celular, então fica uma relação de igual para igual. Eu não tenho um poder mágico, de tirar uma coisa dessa pessoa e levar embora, porque como ela também tem esse mesmo poder com a máquina, então ela não se sente constrangida. Jamais quando você está filmando com o celular o cara vai dizer: “não filma”, porque ele também está com celular dele na mão. Então, ele acha natural. Você está conversando e diz “dá licença, eu vou tirar meu celular”. “Tudo bem”, entende? Nunca me aconteceu de alguém dizer “não, não quero”. Com a câmera não, tem que pedir autorizar, ele fica desconfiado. “O que que você vai ganhar com isso? O que que eu vou ganhar com isso?”, entende? Mas isso vale para qualquer pessoa.
LS: Seu último filme, o Amazônia, a nova Minamata? foi feito durante o governo Bolsonaro, em uma situação que guarda similaridades com aquela que o seu filme anterior Utopia Distopia descreve sobre Brasília nos anos 1960. Agora, as coisas parecem ter mudado um pouco, com o Ministério dos Povos Originários, mas eu lembro que no próprio dia da exibição do Iracema foi votado o Marco Temporal, né? E o horizonte parece meio incerto. Como você enxerga o futuro do cinema e da situação indígena no Brasil?
JB: É complexo, mas eu não sou otimista não, não dá para ser. Porque essa questão indígena é desde que Cabral chegou aqui, então a posição do branco em relação ao indígena não mudou em nada. O indígena é visto como empecilho ou para ser escravizado ou para ser explorado, as terras para serem exploradas… Se ele não ajuda, ele só atrapalha, tem que ser eliminado. E isso continua até hoje.
LS: E o cinema, qual o papel dele?
JB: Eu acho que é muito importante o papel do audiovisual, não só do cinema. Mas também da utilização do celular, publicar os seus vídeos, fazer audiovisual a partir da sua própria cultura e não a partir do olhar de fora, que é o que está acontecendo agora. Acho que com a chegada do celular, e também já há muitos anos tem um projeto muito interessante, que eu acho que é fundamental para criação de cinema indígena, que foi o Vídeo nas Aldeias, do Vincent Carelli, então ele treinou, ainda na época com VHS, os indígenas a filmarem, fazerem seus próprios filmes. Então, se formou uma geração de diretores de cinema indígenas, são poucos, mas muito bons e muito cientes da necessidade de fazerem seus próprios filmes. Isso explodiu agora nesses últimos dois anos. Então, hoje não existe mais um festival no Brasil e no mundo que não coloque filme indígena na programação. É o que está acontecendo, é o novo. O que é curioso também no cinema indígena é que se você olhar nos letreiros, não tem financiamento de nada, geralmente são coletivos. Não tem filme patrocinado por lei disso, lei aquilo, nada. É uma coisa totalmente autoral e coletiva.
LS: Como cineasta que sempre tratou das questões indígenas-ambientais, você sente que seu lugar mudou em relação ao que era antes, com esses novos cineastas surgindo?
JB: Não, de jeito nenhum. A gente convive muito bem com eles. Ao contrário, eles convidam os meus filmes. Mesmo na Mostra de Cinema Indígena em Brasília, no ano passado, passaram meu filme, e eu disse “mas não é um filme feito por índio”, eles responderam que “não, mas a questão é nossa, o problema que ele trata é um problema que nos interessa”. Então eu fico muito contente com isso, de saber que o que esse filme, o Minamata, está com uma demanda muito grande nas comunidades indígenas. Tanto é que estamos trabalhando em uma versão dublada em munduruku, em caiapó e ianomami. Para poder levar para as aldeias, onde eles não falam português e não lêem, então tem que ser dublado na língua deles.
LS: Eu queria agora falar um pouco sobre a questão da exibição no cinema documentário. A gente aprende que o Iracema ficou vários anos sem ter uma exibição comercial, ele foi mostrado apenas em cineclubes onde obteve bastante público, fez bastante sucesso ali. Mas hoje, mesmo muitos dos filmes que estavam na Ecofalante, que venceram prêmios, encontram uma barreira entre a produção e a exibição. O Brasil não tem público para documentário ou é o documentário que não chega ao público brasileiro?
JB: Público tem e muito, né? É que havia nos anos 1970-80 esse movimento cineclubista. Porque os filmes eram projetados em 16mm e não eram tão sujeitos à censura quanto o cinema comercial, e havia uma mobilização política muito grande em torno desse cineclubismo. Ele não era só um ambiente para se conhecer filmes, mas era um ambiente de resistência. Isso naturalmente mudou. Não faz tanto sentido hoje em dia onde você pode ver filmes de outras formas. Na época era a única maneira de conhecer um filme projetando, não tinha outra alternativa. A televisão brasileira sempre foi, e até hoje é refratária do documentário. Diferente de outros países (Inglaterra, França, Alemanha, principalmente), onde o local de exibição para o documentário é a TV, né? Os documentários são coproduzidos, feitos inicialmente para a TV. E no Brasil, até hoje não existe essa cultura da televisão, eles aceitam uma reportagem, mas raramente aceitam um documentário. Agora, a Globo News e o Canal Brasil estão co-produzindo documentários porque sentiram que tem público, que tem interesse. Mas ainda é muito restrito. Eu acho que as mídias, os streamings e os canais de TV ainda são muito fechados para o documentário. Mas é um caminho que tem que se abrir. Eu acho que dos filmes que impactam, que falam da atualidade, eles acabam circulando. Agora, é difícil para qualquer filme, né? Seja de ficção ou seja documentário. É difícil chegar ao esquema comercial. Então é uma ilusão você fazer um filme autoral e achar que vai colocar no circuito comercial, isso não existe.
LS: Ainda sobre as questões de produção, lembro que no workshop você criticou bastante a lógica dos editais para documentário. Queria saber se você pode desenvolver essa ideia.
JB: O cinema indígena é um bom exemplo disso. Ele não foi criado em função dos editais. Eu acho que os editais, pouco a pouco, foram viciando os cineastas a dependerem demais do formato. Eles passaram a ser uma coisa tão poderosa que os produtores de cinema desenvolvem um projeto para caber dentro do esquema do edital, e não é o contrário. Não é o edital que serve ao filme, mas o filme é que serve ao edital. Isso é um processo burocrático, complexo. Onde tem dinheiro público, tem burocracia e não tem jeito. Mas eu acho que a classe ainda não acordou para fazer uma luta e alterar a própria estrutura do edital. Eu acho que os editais deviam ser da seguinte maneira: deviam encarar o projeto primeiro, e não quantos pontos tem a empresa, quantos pontos tem o diretor… Não tem nada a ver um processo burocrático tão amarrado para produzir uma forma que tem que ser livre. Tanto faz documentário, ficção… O Iracema foi feito assim. Não é bem um edital, mas era um programa de televisão que patrocinava filmes experimentais. E tinha total liberdade. Eles viram a ideia e não tinha nem roteiro. Eu levei um Super 8 e esse Super 8 convenceu o produtor da televisão. Ele disse assim: “essas imagens para mim são suficientes. Se o filme tem essas imagens, vamos fazer”. Tinha um valor x para aquele programa, nos entregaram aquilo na íntegra. Caiu na conta do banco, usamos e quando eu voltei e fiz o primeiro corte nós mostramos, eles olharam. E tá bom, tudo bem. A prestação de contas é o filme.
LS: Hoje em dia, parece que quando se vai fazer um filme tudo entra em pauta, menos o cinema.
JB: É, porque parte do princípio que as pessoas vão fazer outro uso do dinheiro, mas isso é uma bobagem. Qual é o cineasta que não vai aplicar o dinheiro no seu próprio filme? Pode ter um ou outro malandro que vai querer comprar um apartamento ou um carro com esse dinheiro. Mas e daí? Se ele fez isso, azar é o dele.
LS: Mudando um pouco de assunto, você foi professor de cinema na USP, na Unicamp, na UnB e na FAAP. Você é de acordo com aquela frase que é dita em um de seus filmes sobre o Darcy Ribeiro, de que o conhecimento não pode ser privatizado, ele tem que ser repassado?
JB: Essa frase é de um colega meu. O Darcy falou o contrário, o que atrapalha a universidade são os alunos (risos). Eu acho que você tem que distribuir teu conhecimento, é uma questão de responsabilidade social, né? Então, se você adquirir um conhecimento, e você tiver a oportunidade de passar – aliás, o dever de passar esse conhecimento -, tem que fazer.
LS: Falamos do Darcy Ribeiro, mas e Levi-Strauss? Depois de ter visto tanto, você acha que a sociedades humanas são fundamentalmente parecidas e só recombinam os seus códigos?
JB: Eu acho que sim. O Levi-Strauss, com a sua teoria do estruturalismo, acertou na mosca.
LS: O cineasta é um antropólogo?
JB: É. O documentarista.
LS: Gostaríamos de te agradecer pelo seu tempo. O que você fala é essencial para pensar o documentário no Brasil.
JB: É descomplicar, né?
LS: É isso. O que ficou na minha cabeça, depois do workshop, foi uma frase que você falou: “Quer fazer cinema? Tem que filmar!”.
JB: É que nem escritor: você quer ser escritor? Tem que escrever. Tem que ler livros e escrever. Cinema é a mesma coisa, você tem que filmar e tem que ver filmes. Você aprende vendo os filmes, qualquer filme. Sempre tem alguma coisa que você pode aprender. É aquilo que falei para vocês, e que também não é meu: o cineasta é um contador de histórias. Você tem que ter o desejo de contar. Mesmo que seja um documentário, você tem que ter a curiosidade de saber o que que o outro está pensando. E ser despojado para aceitar o outro. Não chegar lá achando que você é o dono da verdade. “Eu quero fazer o filme assim e assim que ele vai ser”, enquanto que a realidade está impondo uma outra situação. Às vezes funciona, mas muitas vezes não. Tem que estar aberto.
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Biografia
Luca Scupino é formado em Cinema pela FAAP, onde realizou quatro curtas-metragens. Atualmente pesquisa no campo da estética e história do cinema, e escreve para diferentes meios.
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A cobertura da 12ª Mostra Ecofalante de Cinema faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.
Agradecemos à Atti Comunicação e Ideias e Francisco Cesar Filho por todo o apoio na cobertura do evento.
Equipe Jovens Críticos Mnemocine:
Coordenação e Idealização: Flávio Brito
Produção: Bruno Dias
Edição: Luca Scupino
Edição Adjunta e Organização: Rayane Lima
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