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República dos Gafanhotos (2024, Daniel McCabe) | 13ª Mostra Ecofalante de Cinema

Por Luiza Aron

República dos Gafanhotos é o mais novo longa-metragem de Daniel McCabe, documentarista e fotógrafo estadunidense, reconhecido por seu olhar sensível e político sobre temas pouco explorados pela mídia mainstream. O diretor iniciou sua carreira em meados dos anos 90 com documentários sobre música e política nos Estados Unidos, mas nos últimos anos tem direcionado o seu olhar para o continente africano. Seu último filme, This is Congo, foi lançado no Festival de Veneza de 2017, e foi muito bem recebido pela crítica. Seu mais novo longa-metragem registra o processo de coleta de gafanhotos (“nsenene”) por um grupo de jovens na Uganda. 

Em apenas duas noites por  ano, os gafanhotos se reproduzem em massa e enxames enormes migram e enchem os céus por completo, mobilizando o país inteiro. Os nsenene são uma importante especiaria e fonte de renda na Uganda, portanto é comum que os jovens trabalhadores montem enormes fazendas de arapucas improvisadas e virem noites se organizando para não perder o momento exato do acontecimento. A migração dos gafanhotos depende inteiramente da época de chuva,  mas com as recentes variações climáticas, não tem uma garantia do momento exato e precisam estar preparados.

O documentário tem início com um grupo de ugandenses se preparando para a noite da coleta. O grupo lota enormes caminhonetes com barris e chapas de metal, necessários para montar armadilhas  na boca das florestas  de cultivo.  Em uma montagem paralela, acompanhamos o outro lado da narrativa, definindo as duas forças antagonistas do filme: os homens e os gafanhotos. McCabe captura com maestria o ciclo dos nsenene, mas não como uma massa de insetos insignificantes. Apenas um gafanhoto é enquadrado em um plano médio ou primeiro plano, com total protagonismo da cena. Acompanhamos a sua respiração, o movimento de suas articulações e seus olhares. Por outro lado, os homens são sempre filmados em grupos maiores e em planos abertos. 

Essa inversão contribui para a criação de uma atmosfera predatória e misteriosa. Em uma cena, os homens preparam milhares de lâmpadas para a armadilha pelo ponto de vista dos nsenene. Trabalham em cima dos fios elétricos enquanto os gafanhotos os observam, pelos cantos, em primeiro plano. Logo no início do documentário, observamos a reprodução, o nascimento, a alimentação e a própria existência dos nsenene na floresta. A partir de então, os gafanhotos apenas esperam, estáticos, nas folhas, enquanto os homens montam seus barris e chapas. O som tem papel fundamental em criar uma expectativa angustiante para o que se se sucede – a estridulação (o som produzido pelos gafanhotos) cresce progressivamente, se misturando ao som das chuvas e da floresta, se tornando insuportavelmente central na ação de cada cena.

O protagonismo visual e sonoro dos gafanhotos adquire um caráter ainda mais fantástico com alguns depoimentos dos jovens caçadores. Explicam que não sabem com certeza de onde eles vem e como o evento acontece, creem que eles caem do céu. O mito e o desconhecido se misturam, e, acompanhado de um ritmo narrativo lento e contemplativo, constitui um surrealismo intrinsecamente ligado à força da natureza como em Stalker (1979), de Andrei Tarkovsky. Assim como o documentário, a ficção científica de Tarkovsky construiu um surrealismo que não se usa de grandes estímulos visuais ou efeitos práticos e especiais. A construção sonora em cima de longas tomadas da natureza é uma potência para estruturar uma atmosfera surreal, algo que os dois filmes tem em comum.

Quando a noite finalmente chega, o que era angustiante e desconhecido se transforma em poesia, e os gafanhotos pintam o céu igual a “A Noite Estrelada” de Van Gogh. Não é à toa que o filme foi baseado no livro encantadoramente mágico de fotografia, “Nsenene”, de Michele Sibiloni. A onipresença dos brilhantes insetos, esverdeados em meio à névoa noturna e à fumaça das fogueiras, submerge todo o país em uma atmosfera sobrenatural, um efeito misterioso agravado por toda a parafernália bizarra envolvida, especialmente as ferramentas e armadilhas fantasiosamente inventadas. 

É evidente o contraste entre passado e futuro, tradição e modernização. Os jovens ugandenses enchem dezenas de barris enquanto as crianças guardam, em garrafas improvisadas, os gafanhotos  que escorregaram pelos lados. Os centros das cidades se enchem de comerciantes comprando e vendendo nsenenes, e feirantes os cozinham em panelas gigantes com óleo fervendo. 

Daniel McCabe  extrapola o formato do documentário informacional, mas sem o abandonar. Personifica a natureza como entidade e como produto. Registra um evento socioeconômico ugandês com uma linguagem altamente atmosférica e envolvente, abrindo caminhos para que os espectadores se relacionem com o filme de diversas formas. É uma experiência deslumbrante e um documentário imperdível.

Biografia

Luiza Aron é uma roteirista e diretora independente de três curta-metragens, formada em Cinema pela FAAP. Trabalhou como assistente de desenvolvimento e roteiro em diversos projetos audiovisuais pelo Ventre Studio, no teatro pela Nia Teatro e atualmente atua na Café Royal como assistente do diretor Luiz Villaça e em desenvolvimento de projetos.

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik, Luca Scupino e Gabriela Saragosa

Edição Adjunta e Assistente de Produção: Davi Krasilchik e Caio Cavalcanti

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