Por Pedro A. Vidal
Abordando temas variados inseridos na realidade social do Brasil, a Mostra Cinema em Curso reflete as preocupações do cinema universitário com o futuro do país.
Após quatro anos do desmonte de políticas públicas do governo anterior, os curtas-metragens da mostra Cinema em Curso, do 34º Curta Kinoforum, propõem reflexões sobre esse período nefasto da história brasileira. Com curtas de faculdades públicas e privadas, alguns como trabalhos de conclusão de curso, os onze filmes que compõem a mostra – vindos da ECA-USP, UFC, UNESPAR, UFPEL, UNIFOR, FAAP, Anhembi Morumbi e AIC – denunciam as consequências socioeconômicas vividas na pandemia, e seus reflexos culturais na sociedade brasileira. Envolvendo temáticas como a família, o isolamento, a identidade, a crise, a diversidade e a violência, esses curtas representam um grupo de jovens realizadores preocupados com o estado social de hoje.
Queremos uma cultura dinâmica mas, ao mesmo tempo, enraizada na nobreza de nossos mitos fundantes: a pátria, as virtudes da fé, do alto sacrifício; serão alçadas ao território sagrado das obras de arte. A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional; e será igualmente imperativa, ou então, não será nada.
São trechos como esse, do discurso de Roberto Alvim, antigo Secretário da Cultura do governo Bolsonaro, que introduzem o filme Combustão Não-Espontânea. Em uma premissa simples, o curta retrata o cotidiano de uma mulher negra que é assombrada por incêndios esporádicos em sua casa. As chamas consomem os seus documentos, os seus utensílios de cozinha, os seus pertences – enfim, a sua identidade cultural.
Combustão Não-Espontânea é a ilustração cinematográfica das tentativas de apagamento e de marginalização de classes brasileiras desfavorecidas não apenas pelo governo passado, mas por toda uma cadeia geracional. Da mesma forma que a alusão aos ideais nazistas no discurso de Alvim não era uma mera “coincidência retórica”, a alegoria do título Combustão Não-Espontânea, inteligentemente bem articulada, também não o é.
Seguindo para outro filme, As Velas do Monte Castelo possui uma matéria similar ao curta da FAAP. Mas ao invés do fogo como fundamento de destruição, no filme da UFC, ele serve como um princípio de esperança. Com uma abordagem simples e direta, o curta apresenta a rotina domiciliar de uma relação mãe e filho em meio à pandemia. Totalmente experimental, As Velas do Monte Castelo se constrói como um cinema gestual.
A textura do digital enclausura os personagens em planos fechados no ambiente doméstico e esmiúça as suas ações: o filho, descontente, faz a lição de casa; a mãe pendura as roupas do varal; e o pai chega tarde da noite em casa com uma pizza para alegrar a família. À luz de velas — possivelmente pela falta de eletricidade —, os personagens brincam e inventam outros mundos para curar a dor causada pelo isolamento opressor e as dificuldades financeiras.
Com influências claras do Novíssimo Cinema Brasileiro, As Velas do Monte Castelo, diferente de Combustão Não-Espontânea, conta com equipe e orçamento reduzidos ao extremo, possivelmente não por uma escolha estética. Através das experimentações de ambos os filmes é possível concluir que, de uma forma ou outra, o país está queimando e limpar as cinzas não será um trabalho fácil.
A mostra Cinema em Curso flutua assim entre duas impressões sociais: a do trágico e do milagre. O trágico se apresenta na resolução de Combustão Não-Espontânea, com os olhos da protagonista petrificados diante da destruição geracional de vários “Brasis” em uma sequência impressionante de efeitos visuais. Ele também se apresenta em outros filmes da mostra, como no mundo distópico de Filhos do Caos, da Anhembi-Morumbi, em que dois irmãos negros buscam sobreviver em meio à fome generalizada que os divide.
Contudo, onde há sombra há luz, e o brasileiro é dono de uma resiliência que se encontra no gesto, nos afetos da amizade e das relações familiares. Em curtas como Manchas de Sol, Quinze Primaveras e Jib, existe um contato profundo com as nuances da vida cotidiana, que desabrocha de formas distintas: o primeiro em uma abordagem casual na dramaturgia, o segundo ao mesclar imagens de arquivo pictóricas com os depoimentos documentais e o terceiro no cuidado sensorial com o enquadramento. Esses filmes, sobretudo As Velas do Monte Castelo, apresentam a família como um refúgio, uma forma de escapar das angústias políticas que assolavam o país.
Em outros curtas, como Jorge, Fique na Luz e Batimentos, a resiliência está na amizade. O último filme, por exemplo, da ECA-USP, mostra que apesar do cenário político instável, a juventude ainda pode rir e chorar. Na estrutura de um coming of age clássico, dois amigos vão juntos a uma festa universitária: o rapaz se sente intimidado com a presença de um novo integrante na roda de amigos; a moça, uma DJ amadora, tem dificuldades de se relacionar socialmente. Batimentos é um filme que nos lembra que, apesar das adversidades, a juventude encontra formas de expressar a sua verdade.
A mostra Cinema em Curso do 34º Curta Kinoforum prova que o bolsonarismo tirou muitas coisas do Brasil, mas não as virtudes do sonho e da esperança. No final, “mesmo com o todavia, com todo dia, a gente vai levando”, a gente dá um jeito como no diálogo final de Marte Um. Com a recente aprovação do PL sobre a Cota de Tela na Comissão de Assuntos Econômicos, uma importante medida política que garante a presença do filme nacional nas telas, espera-se que o cinema brasileiro possa reproduzir com a maior possibilidade de expressões a realidade de ontem, hoje e amanhã.
Biografia
Pedro A. Vidal é estudante de Cinema e Audiovisual, também atua como escritor, pesquisador, fotógrafo e cineasta estreante. Pedro é redator na Vertovina, revista de cinema independente, e está trabalhando na pós-produção do curta de terror experimental Náusea. Ele tem experiência como diretor de fotografia, assistente de câmera e foto still em curtas-metragens, além de ser fotógrafo autoral.
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