Por Fernando Chíquio Boppré
Introdução
Desde 1968, Truffaut não era mais Godard e Godard não era mais Truffaut, mas é apenas em 1973 que a separação se consuma. Alguém talvez possa dizer: “mas eles nunca foram o mesmo”, sem deixar de ter a razão. O certo, no entanto, é que desde a segunda metade da década de 60 as relações entre eles estavam abaladas. E, neste caso, não se trata de encontrar na dinâmica desta amizade a causa de seu fim. Melhor seria perscrutar a história da França contemporânea e o entendimento político-cultural que ambos dela faziam, para a partir daí seguir as pistas do problema proposto: afinal, por que Jean-Luc Godard rompeu a antiga amizade que mantinha com François Truffaut?
A carta decisiva encontra-se datada em fins de maio de 1973. Cabe explicar da importância desta data. Em 14 de maio, Truffaut estava em Cannes acompanhado do elenco de A Noite Americana (La nuit américaine, 1973) — que conta com Jacqueline Bisset, Jean-Pierre Léaud, entre outros —, apresentando o filme fora da mostra competitiva. No dia seguinte, os jornais (entre eles Le Parisien e Figaro) são unânimes em aprovar o filme, trazendo a esperada redenção de Truffaut, que vinha de dois fracassos sucessivos com As Duas Inglesas e o Continente (Les Deux Anglaises et le Continent, 1971) e Uma Jovem Tão Bela Como Eu (Une belle fille comme moi, 1972).
Eis que já em fins de maio, enfurecido após ter saído da sessão de A Noite Americana, Godard lhe remete uma carta fulminante:
“Provavelmente ninguém irá chamá-lo de mentiroso, portanto faço-o eu. Não é uma injúria, como seria chamar alguém de fascista, mas uma crítica, e é da falta de crítica em que nos deixam filmes como esses — os de Chabrol, Ferreri, Verneuil, Delannoy, Renoir, etc — que eu me queixo. Você diz: os filmes são grandes trens na noite. Mas quem toma o trem, em qual classe e quem o conduz tendo ao lado o ‘delator’ da direção? Todos esses também fazem os filmes-trem. E se você não se refere ao Trans-Europ, será talvez o suburbano, ou então o de Dachau-Munique, cuja estação naturalmente não poderemos ver no filme-trem de Lelouch. Mentiroso porque o plano de você e de Jacqueline Bisset outra noite na casa de Francis não está no seu filme, e a gente fica se perguntando porque o diretor é o único que não trepa em A Noite Americana.” (GODARD apud BAECQUE; TOUBIANA, p. 394, 1998)
Para finalizar a deixa, Godard espera de Truffaut uma ajuda financeira para seu próximo filme, uma vez que a produtora deste, a Les Films du Carrose, estava relativamente bem em termos financeiros com o sucesso de A Noite Americana: “(…) você deveria me ajudar, para que os espectadores não fiquem pensando que só se pode fazer filmes como você. Se quiser conversar a respeito, tudo bem” (idem).
O Desprezo versus A Noite Americana
A agressividade da escrita de Godard tem razão e sentido de ser naqueles idos de 1973. Enquanto Truffaut acabara de fazer A Noite Americana, “um filme sobre os filmes”, há dez anos Godard havia feito o mesmo. Entretanto, em O Desprezo (Le Mépris, 1963), Godard realizara o extremo oposto do que se passa em A Noite Americana. Neste filme, o que está em jogo é o impasse entre produtor, roteirista e o diretor, sob o pretexto de uma adaptação de A Odisseia, de Homero, para o cinema. Na trama, o roteirista se envolve em uma correlação de forças com o produtor e o diretor cuja ação findará na perda de sua bela esposa (Brigitte Bardot, no auge de sua beleza) para o produtor. Igualmente, chega ao próprio questionamento da trajetória de Ulysses, quando o diretor Fritz Lang (que interpreta a si próprio) pergunta se o personagem de Homero teria demorado tanto em sua volta para casa se realmente amasse Penélope. O mito de Homero é questionado, a hierarquia cinematográfica entra em conflito carnal e intelectual, desfaz-se o próprio cinema enquanto mito. O próprio nome do filme parece compor uma antítese com o filme de Truffaut, mesmo que dez anos antes: “menosprezo”, do francês mépris versus “noite americana”.
Por sua vez, em A Noite Americana, Truffaut pouco se arrisca, mostrando o singular mundo do cinema, suas situações engraçadas, suas dificuldades de trabalho em equipe. O cartaz de ambos os filmes têm muito a dizer. O tom azulado rompido por estrelas cintilantes preenchidas com a foto dos atores — inclusive Truffaut, que interpreta Feron, o diretor, no filme — contrapõe-se com a quase desnuda Bardot, provocante e com um quê de vulgar. O clichê cinematográfico das estrelas em oposição a uma provocação visual permitida pelo vigor de Bardot.

Em uma analogia com o filme de Godard, Truffaut encarna seu próprio papel tal qual fizera Fritz Lang em O Desprezo. A narrativa é linear, engraçada e… americana. Trata-se, antes de tudo, de um filme para o grande público, mostrando o cinema e seus impasses sob a visão pessoal do diretor. Feron se pergunta e logo responde, parecendo desconhecer a dúvida, a dialética e todos os questionamentos herdados após maio de 68: “o que é exatamente o diretor? É uma pessoa constantemente questionada sobre tudo. Às vezes ele tem a resposta, mas nem sempre”.
Cinco anos após as agitações de maio de 68, Godard já não poderia suportar as divagações egocêntricas de um diretor preocupado com a finalização de seu filme. A iminência de revoluções pelo mundo, a bipolaridade nuclear da Guerra Fria, a questão do petróleo, a Guerra do Yom Kippur, Vietnã, nada disso convencera Truffaut a fazer um cinema mais compromissado social e politicamente. Em extrema oposição, Godard filma, em 1970, Vento do Leste (Le Vent D´Est, 1970). Basta dizer que convidara a Glauber Rocha para atuar neste filme, que interpretaria a si mesmo, um cineasta que aponta o verdadeiro caminho para o cinema político-revolucionário.
A crítica de Godard a Noite Americana estende-se com Jean-Louis Bory, importante crítico de cinema que, depois de uma primeira aprovação ao filme de Truffaut, retifica sua opinião e o acusa de “consensual e capitulacionista” (BORY apud BAECQUE & TOUBIANA, p. 396, 1998). Mesmo assim — ou também devido aos motivos apontados por Godard e Bory — o filme ganharia o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, o que só ajudaria a deteriorar a relação entre ambos. Isso porque em 1967, no lançamento de A Chinesa (La Chinoise, 1967), continuando sua política de desconstrução da forma hollywoodiana de se fazer filmes, Godard declara que “cinquenta anos após a Revolução de Outubro, o cinema americano reina sobre o cinema mundial. Não há muito a acrescentar sobre este estado de coisas. Todos os filmes se parecem. O imperialismo econômico originou um imperialismo estético” (GODARD apud NETTO, p. 4, 2001). O Oscar recebido por Truffaut, na prática, os colocaria em campos definitivamente opostos, revertendo as amizades do começo da década de 60.
Os anos 60: Nouvelle Vague, novo cinema
A década de 60 seria particularmente agitada para Godard e, logicamente, para a França. Pode-se dizer, simbolicamente, que, em termos cinematográficos, a década de 60 começou com o lançamento de dois filmes: Os Incompreendidos (Les Quatre Cent Coups, 1959) e Acossado (À Bout de Souffle,1960). O próprio cartaz deste último já aponta os caminhos que Godard tomaria com seu filme. De maneira fragmentária, apresenta Michel Poiccard, o irresponsável criminoso que rouba um carro e mata um policial. Ele se envolve com Patricia, estudante americana que vende o jornal Herald Tribune pelas ruas de Paris. Tenta convencê-la a fugir com ele até a Itália, após conseguir reaver certa quantia de dinheiro que lhe devem. A história seria perfeita se um delator que viu o casal não fizesse uma denúncia à polícia, que localiza a moça e pede sua ajuda para capturá-lo. Patrícia hesita, mas não muito, e acaba por entregar Michel. Cercado pelos policiais, Michel é abatido sob chuva de balas. Antes de morrer, olha para Patricia e diz: “você é um nojo”, ao que ela responde: “o que é nojo?”.

O argumento de Acossado é de Truffaut e o clima no início das filmagens é de cumplicidade, como atesta a carta de Godard a Truffaut no início dos anos 60: “(…) O que me chateia é ter sido obrigado a introduzir coisas minhas num roteiro que era teu. Mas nós nos tornamos mesmo muito difíceis. O negócio é simplesmente começar a filmar sem bancar o esperto. Um abraço de um de teus filhos” (GODARD apud BAECQUE; TOUBIANA, p. 206, 1998).
Um ano antes, contudo, Truffaut havia se lançado ao cinema com Os Incompreendidos. Ao lançar sua carreira estava também lançando seu alter-ego, que o acompanharia pelo resto da vida: o personagem central do filme, Antoine Doinel. Interpretado pelo ainda garoto Jean-Pierre Léaud, o filme conta, quase que de maneira autobiográfica, a infância perdida do próprio Truffaut. Só não se aproxima mais de Truffaut porque Léaud consegue imprimir ao personagem traços de sua forte personalidade, como o próprio Truffaut percebera durante as filmagens. Com este filme, Truffaut estaria lançando temas recorrentes em sua obra: a infância, o amor (ou a falta dele) e a solidão.
A incompreensão de Truffaut, o tiro de Godard: a Nouvelle Vague francesa surgia trazendo para a prática os outrora críticos da Cahiers du Cinema, superando a baixa que se dera no ano de 1959 com a morte do mestre André Bazin. Órfãos na teoria, pais na prática, era questão de tempo para que o nova onda cinematográfica se alastrasse pela França e influenciasse gerações de cineastas. Antes disso, contudo, havia dez anos de cinefilia, crítica e experimentações entre Godard e Truffaut, que se conheceram em 1949, provavelmente nas sessões dos clubes de cinema frequentados assiduamente por eles, junto a Jacques Rivette. A redação da Cahiers du Cinema seria, mais tarde, o centro de agitação intelectual do grupo que formaria anos depois, a Nouvelle Vague.
Filiações: origens e política
Provindos de diferentes criações, Godard parece um tanto distante a todos, resguarda certos segredos sobre sua vida na Suíça. Truffaut, ao contrário, forma-se em um ambiente problemático nas periferias de Paris. Sua mãe o concebera fora do casamento, mas não lhe conta a verdade até a adolescência. Seu pai adotivo esforça-se por formá-lo, mas os ímpetos de carência de amor materno e indisciplina crônica de François parece os opor. Após diversos incidentes, ele é colocado à disposição das autoridades, que o internam em um reformatório. Mais tarde, emancipado, François segue para o exército. Após várias deserções e meses na cadeira, consegue ser solto graças ajuda de André Bazin, que acaba por “adotá-lo”. Para manter-se a partir daí, emprega-se nas mais diversas atividades — nas fábricas, principalmente.
Godard possui uma outra trajetória. Tendo estudado primeiramente na Suíça, transfere-se para Paris a fim de estudar Etnologia pela Sorbonne. Dedica-se, contudo, à cinefilia, junto ao grupo da Cinemateca Francesa de Henri Langlois. Já trabalhando como crítico, decide conhecer os Estados Unidos, abandona tudo e na volta emprega-se como operário na construção da represa da Grande-Dixence, na Suíça, apesar de diplomado com nível superior. Godard quer se sentir operário, enquanto Truffaut tem de sê-lo.
Godard pós-68: o que a ficção já não pode dizer
A partir de maio de 68, as letras eram outras. Godard já não poderia usar as mesmas palavras para dizer as mesmas coisas. A linguagem torna-se militância política, o cinema torna-se ensaio. Ideias são imagens e sons. Godard, profundo conhecedor do cinema clássico, da decupagem tradicional, faz de tudo para desconstruí-lo. Aproxima-se do que fizera Eiseinstein ou Vertov, trazendo para o cinema fragmentos de filosofias, de ícones, de vozes. Em artigo na Folha de São Paulo, Alcino Leite Neto escrevera, talvez, uma das melhores definição do cinema de Godard: “A revolução godardiana é em parte a culminância da destruição do filme clássico e em parte o ápice da criação de um novo cinema, que pretende produzir um outro modo de pensar o mundo com o que seria um novo instrumento de pensamento — o próprio cinema”.
Chega a abandonar o cinema convencional, dedicando-se à feitura de filmes coletivos, reunindo a esquerda em torno do cinema. Com o grupo Dziga Vertov, formado após as revoltas de Maio de 68, dedica-se a uma outra via do cinema e da própria política: Pravda (1969) trata da invasão soviética da Tchecoslováquia; Vento do Leste (1969), com roteiro do líder estudantil Daniel Cohn-Bendit, desmistifica o gênero western norte-americano; e Até a Vitória (Jusqu’à la victoire, 1970) traz à tona a guerrilha palestina.
Truffaut também trabalha em ritmo frenético nestes anos, mas sua obra busca outros ares. Entre 68 e 70 realiza cinco filmes e nenhum chega a tocar diretamente na questão política. O que mais se aproxima, talvez, seja Beijos Roubados (Baisers Volés, 1968), que introduz nos créditos iniciais uma dedicatória à Cinemateca de Henri Langlois, objeto de agitação política em março de 1968. O filme é, no entanto, a continuação da saga de Antoine Doinel, que desta vez aparece como um jovem detetive apaixonado por Christine. Em 1970, gravaria a continuação deste filme com Domicílio Conjugal (Domicile Conjugal, 1970). Os filmes são uma amostra da atitude de Truffaut perante a política: manter-se longe dos extremos, sempre desconfiando dos políticos que se apossam dela.
Vale, no entanto, mencionar o episódio do engajamento de Truffaut na causa da Cinemateca de Langlois, bem como retomar a distribuição pública de La Cause du Peuple, em 1970. O jornal, filho do movimento maoísta de 68, porta-voz da esquerda proletária, havia sido censurado pelo governo francês. Visando apoiar e proteger a publicação, Jean-Paul Sartre marca para uma tarde de sábado a venda dos jornais, numa atitude claramente desafiadora. Truffaut lá estava. Enquanto Godard possui um engajamento profundo e contínuo, mesmo que não seja teoricamente bem definido — como um Pasolini, por exemplo —, Truffaut tem arremates de militância, o que lhe cabe a desconfiança, por muitos, de esquerdista de ocasião e oportunista.
Politicamente, desde o fim da década de 60 e começo de 70, a França já não era mais a mesma, bem como seus filmes e cineastas. O Pequeno Soldado (Le Petit Soldat, 1963), de Godard, inaugurara uma razão crítica da imagem cinematográfica francesa, mostrando seguidas cenas de tortura, sem qualquer tipo de elipse. A questão em jogo era o horror da presença francesa na Argélia. Godard esquentava o cenário político. Truffaut, por sua vez, via em seus filmes não a possibilidade de questionar as tradicionais estruturas políticas, mas, principalmente, a pouca importância que se dá às crianças no mundo contemporâneo. Assim, desloca seu eixo de atuação para algo que mais se assemelha à ação política-militante atual, que prioriza as minorias — a mulher, os homossexuais etc. Enquanto Truffaut tratava de “beijos roubados”, Godard militava pela “colônia assaltada”.
É, por fim, com a truculenta resposta de Truffaut à carta de rompimento de Godard que se pode observar os dois níveis de entendimento da história e da política presente nos dois mais destacados cineastas franceses da década de 60 e 70:
“Passei a sentir apenas desprezo por você depois de ver a sequência de Vent d´Est sobre como fabricar um coquetel Molotov e constatar, um ano depois, que você tirava o corpo fora quando nos pediram que participássemos pela primeira vez da distribuição de La Cause du People nas ruas, ao lado de Sartre. A ideia de que os homens são iguais, para você, é teórica, não é sentida. Você precisa estar sempre desempenhando um papel que seja importante. Sempre achei que os verdadeiros militantes são como as donas de casa: trabalho ingrato, quotidiano, necessário. Já você é o lado Ursula Andress, uma aparição de quatro minutos, o suficiente para os flashes espocarem, duas ou três frases surpreendentes e sumiço, de volta ao mistério favorável. Ao contrário de você, existem os pequenos homens, de Bazin a Edmond Maire, passando por Sartre, Buñuel, Queneau, Mendès-France, Rohmer, Audiberti, que pedem notícias dos outros, ajudam-nos a preencher um formulário de previdência social, respondem às cartas. Eles têm em comum a capacidade de esquecer com facilidade e sobretudo de se interessar mais pelo que fazem do que pelo que são ou parecem. Se quiser conversar, tudo bem”. (GODARD apud BAECQUE; TOUBIANA, p. 395, 1998)
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Bibliografia
BAECQUE, Antoine; TOUBIANA, Serge. François Truffaut: uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 1998.
NETO, Frederico Leal. História do Cinema: Jean-Luc Godard, Acossado. Rio de Janeiro: Universidade Estácio de Sá, 2001
TULARD, Jean. Dicionário de Cinema. v.1: os Diretores. Porto Alegre: LP&M, 1996.
Sites
http://www.coisadecinema.com.br/matArtigos.asp?mat=1510 — Acessado em 2 de fevereiro de 2004
http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/ult682u94.shtml — Acessado em 2 de fevereiro de 2004
http://www.imdb.com.br/ — Acessado em 7 de fevereiro de 2004
http://www.tempoglauber.com.br/glauber/Biografia/vida5.htm — Acessado em 7 de fevereiro de 2004
http://members.tripod.com.br/cinepedia/godard.htm — Acessado em 7 de fevereiro de 2004
Biografia
Fernando Chíquio Boppré: Acadêmico do Curso de Bacharelado e Licenciatura em História da Universidade Federal de Santa Catarina e bolsista de iniciação científica (PIBIC – 2003/2004) com o sub-projeto: Vídeos de Apoio ao Ensino da História: estratégias narrativas e concepções de História, desenvolvido no Laboratório de Pesquisa em Imagem e Som (LAPIS).
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