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Quem tem medo de Bernard Herrmann?

Por Rosinha Spiewak Brener

Em artigo publicado na Revista Concerto, datado de junho de 2001, o maestro Júlio Medaglia pede desculpas a Bernard Herrmann. Só agora ele percebeu que a música do compositor era fundamental para os filmes de Alfred Hitchcock. Durante os onze anos de parceria Herrmann/Hitchcock (1955-1966), foram lançados os melhores filmes do diretor e as trilhas musicais mais significativas para o cinema.

Falar de música para o suspense é falar de Bernard Herrmann. Nascido em New York (1911), iniciou seus estudos de música aprendendo a tocar violino. Cedo seu talento foi reconhecido. Com treze anos ganha um prêmio de composição, já demonstrando o caráter rebelde que conservaria para o resto da vida. Grande pesquisador, encontra as obras de Charles Ives (1874-1954) e torna-se divulgador delas. Aos dezoito anos, ainda como estudante da Juilliard School, Herrmann conduz seu ballet Americana e forma o grupo The New Chamber Orchestra. Aos vinte e um, inicia composições sinfônicas para o rádio. Nos anos seguintes torna-se regente da CBS. Em 1935, inicia a parceria com Orson Welles e seu Teatro Mercury no Ar. Welles é convidado para trabalhar em Hollywood e pede a Herrmann que componha a trilha musical de Cidadão Kane. Em 1945, Hitchcock pede ao compositor que se junte à equipe para filmar Quando Fala O Coração. Herrmann não aceita. Somente dez anos depois, a parceria torna-se uma realidade.

Para Hitchcock, Herrmann escreve a trilha musical de oito filmes: O Terceiro Tiro (1955), O Homem Que Sabia Demais, 2ª versão (1956), O Homem Errado (1957), Um Corpo Que Cai (1959), Intriga Internacional (1959), Psicose (1960), Os Pássaros (1963; Herrmann foi o consultor de som) e de Marnie, Confissões de uma Ladra (1964). Na realidade, Cortina Rasgada (1966) também teve uma trilha musical composta por Herrmann. No entanto, Hitchcock queria uma música pop, mas o compositor discorda; discutem e termina assim uma parceria que rendeu o reconhecimento de críticos e público como uma das mais perfeitas.

Para os filmes de suspense de Hitchcock, Herrmann cria um “sistema” de colocação de música. São: o motivo, as 7ªs e 9ªs sem resolução, o ostinato, o cromatismo e os grupos instrumentais que, embora sejam o dia a dia de um compositor, nas mãos de Herrmann se transformam, pela modo como são agrupados.

É interessante observar que, embora não fosse adepto do leitmotiv, o compositor o emprega em alguns filmes. Ele dizia: “as frases curtas têm certas vantagens. São mais fáceis de serem captadas pelo espectador”¹. A razão que o fazia não gostar do leitmotiv era o “sistema” que tem de oito a dezesseis compassos, limitando o trabalho. Era como colocar algemas no compositor. Um exemplo bem definido pode ser encontrado em Um Corpo Que Cai, quando então o leitmotiv se apresenta em grande parte no filme.

Para o suspense, Herrmann cria o acorde bitonal: “acorde de Hitchcock”, denominação dada por Royal Brown².

No campo sonoro, Herrmann sempre encontrava soluções. Um timbre, uma figura rítmica eram o suficiente para encontrar um leitmotiv. Embora a estrutura sonora que empregava fosse simples, a obra, em seu todo, era complexa, correspondia a uma grande eficiência no efeito. O efeito, nesse caso, quer dizer a apropriação sonora de uma situação dramática explicada visualmente ou o acréscimo em densidade psicológica na construção de um personagem. A composição que Herrmann criou para o filme Marnie, Confissões de uma Ladra é um belo exemplo de colocação de construção para o suspense.

Marnie, uma mulher bonita mas problemática, ganha a vida enganando e roubando. Muda de cidade, de nome e da cor de seus cabelos, conseguindo assim penetrar em grandes escritórios. Seu objetivo é roubar para comprar presentes à sua mãe, que vive em Baltimore, onde cuida de uma menina. Marnie sente ciúmes da criança, porque pensa que a mãe não a ama. Seu problema psicológico: é assaltada por pesadelos, sempre os mesmos: três batidas na janela e a cor vermelha. Ela busca a solução quando se apaixona por Mark, que a pede em casamento. O marido quer saber por que Marnie não aceita que um homem a toque. Através de um detetive, Mark fica sabendo onde vive a mãe de Marnie e, em Baltimore, a verdade vem à tona. Bernice, a mãe de Marnie, engravidou muito cedo. Para sustentar a filha, prostitui-se. Uma noite, um cliente bate à porta. Marnie é tirada da cama da mãe e colocada num sofá. Como chove forte e os trovões iluminam o quarto, a criança chora. O marujo vai até ela, fazendo-lhe carinhos. Bernice intervém. Lutam, o marujo cai sobre a perna de Bernice, ferindo-a gravemente. A mãe pede socorro à criança que, tomando de uma barra de ferro, ataca o homem, matando-o. Bernice assume o crime. Mesmo presa, ela não permite que a filha seja adotada. Marnie “apagou” da memória o acontecido. O passado de Marnie vem à tona quando a tempestade desencadeia e Mark bate na parede por três vezes.

Para a trilha musical de Marnie, Herrmann providenciou dois motivos: “Marnie” e “Vermelho”. Para uma melhor compreensão, estaremos usando aspas para nomear os temas, diferenciando-os do filme. Os motivos se repetem ao longo da obra com frequentes variantes, uma característica de Herrmann. Eles surgem na apresentação, estão sempre juntos, explicando que Marnie sofre de um problema psicológico, ligado à cor vermelha.

“Marnie” é um leitmotiv composto por quatro notas: mi, ré, lá e fá. O motivo “Vermelho” é composto por um grupo de notas que se repetem num crescendo rápido, seguido de um brusco declive. Esse arranjo funciona muito bem como expressão de estresse e agitação. Em algumas cenas, a aversão de Marnie pelo vermelho é anunciada com uma nota prolongada, seguida de uma pequena variante de “Vermelho”.

Os acordes de 7ª, não resolvidos, encontram-se na abertura, formando a harmonia do tema associada à Marnie. Usando as tríades maiores e menores, Herrmann sugere o conflito psicológico, apontando o personagem (Marnie) musicalmente.

O cromatismo aparece em algumas cenas, mas, provavelmente, a mais significativa encontra-se na cena no iate. Na lua-de-mel, Mark estupra Marnie. A moça tenta o suicídio, atirando-se na piscina. Para essa cena, Herrmann trabalhou, cuidadosamente, o cromatismo. Mark na cama. Acorda e não vê Marnie. A câmera faz um travelling, focalizando a cama vazia. Com o travelling, ele não usou música até o momento em que Mark sai da cama. Uma melodia, em surdina, acompanha seus passos. É quase imperceptível. À medida que seus passos se tornam mais rápidos, a música cresce em dinâmica. Mark procura pelos corredores. A música torna-se acelerada e ansiosa. Para Marnie, Herrmann preparou a orquestra de cordas, sopros de madeira, harpa e corne inglês.

Max Steiner começa a especializar o uso da música no cinema. Ele cria clichês para determinados momentos, o que torna a música intelectual. Isto é: o espectador sabe, através da música, do que se trata. A música de Herrmann é diferente. É música emocional, expressando a imagem interior dos personagens. Ele compunha uma música que se integrava à cena de modo pessoal. Para isso, não necessitava de longas composições, bastavam poucas notas e repetições variadas. Assim, criava a atmosfera e um tipo de “magia”, provocando emoção com o som.

  1. GILLING, Ted. The colour of the music. Sight and sound 41, nº 1 Londres, Inverno, 71/72, p. 36
  2. BROWN, Royal. Overtons and Undertons, Londres, University of California Press, 1994, p. 292.

Biografia
Rosinha Spiewak Brener é pianista e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.

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