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A Trilha Sonora de 2001: Uma Odisseia no Espaço

A Trilha Sonora de 2001: Uma Odisseia no Espaço

Por Rosinha Spiewak Brener

Intentei criar uma experiência visual porque estas ultrapassam o alcance das verbais, normalmente relegadas ao ouvido, para penetrar diretamente no subconsciente com um conteúdo emocional e filosófico… Queria que o filme fosse uma experiência muito subjetiva, que chegasse ao espectador a um nível interno de consciência, como lhe chega a música… Pode especular livremente sobre o significado filosófico e alegórico do filme. Stanley Kubrick

2001: Uma Odisseia no Espaço, filme de Stanley Kubrick de 1968, é o que, possivelmente, Umberto Eco chamaria de “obra aberta”: há sempre espaço para mais uma análise. Assim, são muitas as possibilidades de abordar o filme. Este enfoque recai sobre a trilha sonora.

Sobre o filme

Quando, pela primeira vez, Kubrick pensou fazer um filme sobre a existência de vida inteligente fora da Terra, estudou o assunto imaginando que o Universo assim fosse. Levou cerca de três anos para terminá-lo. A novela de Arthur C. Clarke, com o mesmo nome (2001: Uma Odisséia no Espaço), tornou se uma versão para a tela, sendo que o próprio Clarke se encarregou de fazer certas mudanças. Durante seis meses, diretor e autor (conhecido escritor de ficção científica) trabalharam para redigir as 130 páginas do roteiro. Durante este período, dezenas de personalidades científicas foram consultadas. Depois do roteiro pronto, o diretor passou quatro meses acertando os aparatos que fariam parte do filme.

Os diálogos em 2001 são mínimos, tratando-se de um filme ” visual”. Algumas vezes, eles funcionam como efeito sonoro. As descrições são exatas, envolvendo numa atmosfera vaga. O equilíbrio está constantemente insinuado nas imagens, ajustando-se aos objetos que giram.

Sinopse

2001 trata do contato do homem com as inteligências superiores extraterrenas. Há 4 milhões de anos depositaram, na Terra, o primeiro artefato para observação dos macacos antropoides. Um segundo artefato, como um alarme contra ladrões cósmicos, envia sinais às inteligências, pouco depois que o homem chega à Lua. Um terceiro artefato, que está perto de Júpiter, introduz um astronauta por uma “porta estrelar”, e que será lançado a uma viagem, através do espaço interno e externo, zoo humano, mais parecido com um hospital terrestre, um meio fabricado a partir de seus próprios sonhos e imaginações. Em um estado onde o tempo não existe, passa à maturidade, à velhice e à morte, para renascer um ser superior, um filho estrelar, talvez um anjo, um super homem; e regressa à Terra preparado para o próximo salto adiante da evolução humana.

A trilha sonora

Para compor a trilha musical de 2001, Kubrick contratou o compositor Alex North, mas, com a música já pronta, o diretor decidiu usar composições pré-existentes. O compositor empregou alguns dos temas de 2001 em peças de concerto. Somente nos anos 90 o músico Jerry Godsmith , com a cooperação da viúva de North, fez a primeira gravação da trilha. Burt (1944: 126) comenta: “Essa foi uma péssima escolha (de Kubrick), já que a música de North teria contribuído para dar uma personalidade natural ao filme. A música flui dentro de uma linha de nobreza, elegância, vigor e compreensão.”

É difícil pensar em outras músicas que não sejam as de Richard Strauss, Johann Strauss Jr, György Ligeti e Aram Khatchaturian como parte integrante do filme.

No primeiro momento, surge a palavra Overture, simultaneamente com a música de Ligeti. A palavra fixa na tela, quase nada diz ao espectador. Ele deixa de ler para ouvir. O que o atrai é essa música sem ritmo, sem melodia, estranha, infinita, indefinida, que começa quase em surdina e vai crescendo em dinâmica para estacionar, numa certa altura, e decrescer. Num segundo momento, a música volta persistente, porém com alguns novos sons. Cresce. Os sons flutuam. Somem. No terceiro momento, ainda com outros sons, a música percorre o mesmo caminho. Desaparece.

Por que a música aparece três vezes? Possivelmente, a intenção de Kubrick era antecipar o aparecimento do monolito, que é colocado na Terra em três ocasiões e já mencionadas na sinopse. A música também antecipa o mergulho que a câmera dará, em direção ao infinito.

Silêncio. Na tela, o símbolo estilizado da MGM. Agora a tela, sem som e sem imagem, prende a atenção do espectador. Soam os primeiros acordes de Assim falou Zarathustra, de Richard Strauss (em 1966, o diretor John Guilhermin já havia utilizado o mesmo tema para compor a trilha musical de seu filme Crepúsculo das Águias). Em seguida, aparecem as primeiras imagens: uma parte da curvatura que, presume-se, seja a da Terra, e no alto um astro luminoso, despontando. Os tímpanos anunciam, provavelmente, o nascimento de um novo astro (ou uma nova era?). Acordes finais coroam o nome do produtor: Stanley Kubrick. O ponto culminante da obra de Strauss acompanha o nascimento gradual deste novo astro que se desprende, luminoso, numa visão total, com a música chegando ao repouso.

Os antropoides: alvorada do homem

Algumas tomadas da paisagem inóspita, verdadeiros cartões postais, são apresentadas por Kubrick para situar o espectador no tempo. O diretor promove um verdadeiro exercício de percepção, ora deixando o espectador ouvir para ver, ora deixando de ver para ouvir. Na Alvorada, a música deixa de existir, em favor do silêncio. Nos cartões postais, em alguns momentos, estão amalgamados ruídos da natureza: o ruído do vento, ruídos de pássaros que, na verdade, não surgem na tela… Com o aparecimento dos “habitantes” do lugar, os antropoides, o diálogo entre os animais torna-se parte dos ruídos da natureza. Aqui, Kubrick mostra como era a sociedade há 4 milhões de anos: o líder, os grupos rivais, o domínio sobre a reserva de água, a cópia — promovendo a mudança de comportamento (a morte de um rival) —, a luta pela sobrevivência.

Jean Mitry (apud. 1980: 186) fala do cinema silencioso: “no filme silencioso foi omitido um tipo de pulsação que poderia, internamente, marcar o tempo psicológico do drama, em relação à sensação primária do tempo real. Em outras palavras: foi omitida a capacidade de justificar a cadência rítmica do cinema. Esta pulsação é estabelecida pela música”.

Não há nenhuma pulsação rítmica nas cenas em que os cartões postais são apresentados. A descoberta do monolito desperta curiosidade. A abordagem é lenta e desconfiada. Com o aparecimento do artefato, surge a música eclesiástica de Ligeti. A voz do vento se confunde com Atmosferas. Música inane, sem objeto, sem tonalidade, sem ritmo, amorfa. A aproximação dos homens-macaco é um momento primitivo, poético, sem palavras. Ligeti soa como colagem frenética de todas as religiões do mundo. A música se associa ao estranho objeto, como saindo do seu interior. A dinâmica cresce, com a aproximação dos antropoides.

Claudia Gorbman (1980: 191) explica: “a imagem, os efeitos sonoros, o diálogo, a trilha musical são inseparáveis, formando uma combinatória expressiva”. Ligeti não escreveu essas músicas para 2001, nem pensou em algo semelhante. Talvez, se as tivesse composto, não seriam tão adaptadas à imagem como são Atmosferas e Lux Aeterna. Expandindo seu experimento para voz humana, Ligeti forma um assustador contraste entre o tradicional e o avant-garde, como um trabalho de forma provocadoramente modernista e atonal.

Assim falou Zarathustra reaparece, com a imagem do homem-macaco “descobrindo” uma das utilidades dos ossos do animal abatido. Um flashback ou um flash forward? A vitória do descobrimento, o poder. O braço erguido atira o osso para o espaço. Silêncio. Saltando sobre a história, sobre a civilização e sobre a cultura, o osso converte-se em um utensílio sofisticado de 4 milhões de anos adiante. A nave desliza graciosamente pela tela silenciosa. A câmera, sobrevoando, aproxima-se. A astronave passa, deixando a tela, sem imagem. Soam as primeiras notas da introdução do Danúbio Azul. Lenta, quase em surdina, a valsa acompanha o movimento de aproximação da câmera, na busca da estação orbital. A gradação dinâmica cresce com a câmera entrando no interior da espaçonave.

A valsa Danúbio Azul, de Strauss Jr., faz um contraponto com a música de Ligeti. Ela prepara um ângulo lírico carregado de associações terrenas, dando um senso de direção e propósito ao acompanhar as tomadas de uma lançadeira a caminho da estação espacial. Enquanto a valsa tem uma métrica definida (três tempos), Atmosferas traz a intenção de suspensão do tempo, onde o senso de eternidade é vital. A música de Ligeti se encarrega de não dar nenhuma direção.

A estação orbital volteia, dançando neste imenso salão que é o espaço sideral. Dentro da espaçonave, a caneta também faz a sua performance, mostrando que a falta da gravidade tem seu lado gracioso. É difícil discernir o que é música do que é imagem: amalgamadas, formam um único elemento. A importância da valsa é tão grande que Kubrick encobre, com a música, o diálogo entre dois personagens dentro da espaçonave.

A valsa está associada ao movimento giratório. Isso fica bem claro quando a aeromoça espacial caminha em 180º e a câmera coloca as imagens de cabeça para baixo, promovendo, também, o movimento da dança.

Chion (1985: 123) chamaria esta música anempática. “A música anempática expressa emoção. Funciona de maneira imediata, profunda, arcaica, sem passar por uma leitura”.

Imagens da nave passando sobre a Lua e, em surdina, a música. Kubrick usa o coral Lux Aeterna, de György Ligeti. Um mar de vozes, com a formação de clusters (várias notas tocadas simultaneamente), sugere um vácuo, sem aparente limite. Tomadas de homens na Lua.

O encontro de cientistas em Clavius esclarece um caso de possível epidemia e da concordância dos membros da reunião em manter em segredo o tema da discussão. Novas imagens de três cientistas e o diálogo sobre o que viram na Lua. Falam do monolito, em sua segunda aparição.

Na Lua, em flashback, os homens aproximam-se do monolito (agora, o espectador fica sabendo que uma tomada anterior, de homens caminhando na Lua, era um flashback). A aproximação assemelha-se à dos antropoides. Aqui, a ideia de que a música de Ligeti sai de dentro do monolito parece mais clara. A aproximação faz a música crescer em dinâmica. Uma foto para a posteridade. Um apito ensurdecedor confirma que Atmosferas sai do monolito. No livro de Clarke (1969: 19), encontramos: “nunca, em toda sua vida, ouvira semelhante ruído”. Isto demonstra que Kubrick colocou Ligeti como ruído, o que vem a confirmar que o som sai do interior do monolito.

Missão Júpiter: 18 meses depois

A nave voa em direção a Júpiter. Para esta cena, Kubrick escolheu uma peça da Suite Gayaneh, de Khatchaturian. Ela aparece em surdina quando, na tela, o cartaz anuncia a missão. A nave flutua, graciosamente, sobre o som rastreante de Gayaneh. Internamente, as instalações são circulares, o que, de uma certa forma, lembra a valsa.

Um dos tripulantes ouve uma mensagem transmitida pela BBC de Londres. O locutor diz que “não se tem noção do tempo”, o que faz lembrar a música de Ligeti.

O som do aparato girando e a respiração ofegante e pausada do astronauta. No capacete do homem, em close, reflexos de parte de Hal, o computador. A respiração domina. Começa pausada para, progressivamente, acelerar. Os ruídos podem ser considerados como a música da cena, tal a maneira como o diretor fundiu sons e música. Em determinado momento, o visor do capacete escurece e os olhos do homem saem de cena. Possivelmente, este procedimento se refere à morte do tripulante, que acontecerá em outra tomada.

Em close up, o rosto de Frank, outro austronauta, visto pelo olho vermelho de Hal. Em toda a tomada, a respiração se faz presente. Agora, o olho de Hal focaliza (close up) os lábios dos astronautas. O computador lê e decifra a conversa pelo movimento dos lábios. A câmera passa dos lábios de um para os do outro: o ponto de vista de Hal.

Para a palavra ENTREATO, Kubrick reservou Ligeti. Assim como no início, a palavra permanece na tela e o espectador deixa de lê-la para ouvir a música. Os sons crescem, decrescem… Confundem-se com o próprio espaço.

A máquina pensante não quer morrer. Ela sabe que está condenada. Hal tenta se defender, quer uma resposta. Promete um bom comportamento. Dave, o astronauta, gira as manivelas. O condenado apela. São os últimos estertores da máquina. “Minha mente está indo embora”. A voz enfraquece, lentamente. Muda como um disco em rotação lenta. Cada vez mais lenta e mais grave, até o final.

Ligeti, indefinido, acompanha o espermatozoide, a promessa do amanhã. A câmera sobrevoa a crosta terrestre: montanhas, rios, vales. Um voo em direção a 2001. Ligeti aproxima-se cuidadosamente. O casulo explica a presença do astronauta no quarto. Seus olhos inspecionam. Tudo muito limpo, muito branco. Sentado, de costas, um idoso. Quem é? É o próprio astronauta, no futuro. O astronauta de amanhã levanta-se e, olhando para a cama, se vê deitado, agonizando. O moribundo levanta a mão, apontando o monolito que se encontra à sua frente.

Assim falou Zarathustra acompanha o nascimento de uma nova era.

Diegético e extra-diegético

A música diegética se refere àquela cuja fonte, na tela, é conhecida. A extra-diegética é a que vem de fora do quadro. Em 2001, a música parte quase sempre de fora do quadro. Apenas em um momento o espectador sabe de onde ela vem. É quando Frank, na astronave indo em direção à Júpiter, ouve música transmitida pela BBC. Provavelmente, a ideia de Kubrick era fazer com que imagem, ruídos e música formassem um único elemento. No ENTREATO, o espectador sabe que a respiração pertence ao astronauta (diegética).

A música está presente o tempo todo, mesmo quando não se faça ouvir, como quando o astronauta flutua no espaço em movimento giratório, lembrando Danúbio Azul.

Bibliografia
BURT, George. The art of film music, Boston, Northeastern University Press, 1944.
CHION, Michel. Le son au cinema. Paris, Editions l, Etoile, 1985.
CINEMA/SOUND. USA, Yale French Studies, 1980.
CLARKE, Arthur C. e KUBRICK, Stanley. 2001: Uma odisseia no espaço. Brasil, Editora Expressão Cultural, 1969.
GORBMAN, Claudia. Unheard melodies, London, Indiana University Press, 1987.

Biografia
Rosinha Spiewak Brener é Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP.

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