
Kubrick: Perfeccionista do Imperfeito
Por Cid José Machado dos Santos Junior
Orientador: Prof. Dr. Carlos Eduardo de Moraes Dias
Introdução
Stanley Kubrick foi o cineasta do século XX que produziu as relações mais perturbadoras e as mais sublimes entre imagens e sons (em Laranja Mecânica e 2001: Uma Odisseia no Espaço, respectivamente). Diante deste paradoxo, vislumbramos esta personalidade ímpar na história do cinema mundial. Precoce e autodidata, desafiou Hollywood com filmes polêmicos e complexos. Dominou com mão-de-ferro e maestria todas as etapas e áreas da produção à comercialização de suas obras. Deixou seu país, a capital do cinema industrial, para constituir um reino próprio no qual teria liberdade para realizar seus controversos projetos de modo quase artesanal. Tornou-se uma espécie de cineasta “marginal mainstream”.
Sua personalidade enigmática e sua obsessão pelo sigilo tanto com relação aos seus projetos quanto à sua vida particular só fizeram aumentar o fascínio e a especulação sobre sua vida e obra. Daí a importância de apreendermos seus temas e métodos de trabalho, na expectativa de que possamos nos afastar do mito e nos aproximar do homem e seu ofício.
Para atingir tais objetivos, abordaremos a esfinge Kubrick sob três aspectos principais: Kubrick e Hollywood: atração, ruptura e emancipação (capítulo I), que descreve a trajetória do jovem cineasta de seus primeiros momentos em Hollywood até a maturidade no exílio; a imperfeição humana como temática (capítulo II), que analisa as influências artísticas que moldaram o estilo do cineasta e a temática de todos os seus filmes de longa metragem; e os métodos de um perfeccionista (capítulo III), que escrutina as principais etapas da produção de um filme, ressaltando as características específicas dos métodos de trabalho do diretor.
Capítulo I — Kubrick e Hollywood: Atração, Ruptura e Emancipação
A Hollywood que Kubrick encontrou estava sofrendo profundas modificações. Não era mais aquele antigo sistema de estúdio que através dos tempos é lembrado com saudosismo por fãs e trabalhadores do cinema, moldado pelo dinâmico produtor e executivo da MGM Irving G. Thalberg, que através do modelo integrado de produção (produção/distribuição/exibição) elevou Hollywood à sua Época de Ouro na década de trinta do século XX. A estrutura deste período concentrava o poder nas mãos dos produtores gerais, que coordenavam e assumiam as responsabilidades artísticas e financeiras dos projetos cinematográficos. Eles escolhiam os livros que serviriam de fonte para adaptação, supervisionavam a confecção dos roteiros e minimizavam estrategicamente o senso de propriedade e de autoridade dos diretores sobre qualquer projeto através do constante estímulo do espírito de equipe, havendo bastante interação e colaboração da equipe nas atividades criativas, logicamente coordenadas pelo produtor.
Um dos exemplos mais evidentes da redução da influência do diretor nesta época foi o abandono a D.W. Griffith, o diretor que salvou um antigo estúdio à beira da falência e que, através de seu talento, ajudou a construir uma indústria que posteriormente flertou com a possibilidade de ser considerada uma forma de arte.
Mas como toda regra tem sua exceção, no final da década de trinta foi assinado o contrato dos sonhos de todo diretor, e que nenhum outro conseguiria igualar em toda a história do cinema. O diretor: um novato que vinha do rádio chamado Orson Welles, que havia sido catapultado à fama após sua célebre transmissão da obra A Guerra dos Mundos, de H.G. Welles, num formato jornalístico sensacionalista. O estúdio: a RKO, que ofereceu o controle total a Welles na realização de dois filmes. O resultado deste contrato foi o divisor de águas do cinema moderno, o ousado Cidadão Kane. Entretanto, a ousadia de Welles lhe custaria caro, e assim como Griffith foi relegado ao ocaso pela indústria cinematográfica.
No final da década de quarenta Hollywood já sinalizava tempos de mudança, pois os estúdios vinham progressivamente perdendo sua força e seus produtores gerais estavam deixando os estúdios para constituírem firmas independentes. O mais poderoso deste período foi sem dúvida David O. Selznick, que trabalhou com Thalberg na MGM e fundou empresa própria, a Selznick International Pictures (SIP), produzindo o estrondoso sucesso …E O Vento Levou e Rebecca, a Mulher Inesquecível.
Enquanto o governo norte-americano golpeava o sistema de integração com o Decreto Paramount (mecanismo da lei antitruste que proibia a participação dos estúdios na exibição de filmes), alguns diretores de prestígio também estavam buscando a própria independência, como John Ford, Frank Capra, Alfred Hitchcock e Melvin Le Roy. Todos esses criaram produtoras próprias, negociando projetos com os estúdios. Estavam se tornando freelancers.
É neste contexto que surge Stanley Kubrick com seu recente parceiro de negócios, o produtor James B. Harris, com quem fundara a empresa Harris-Kubrick Pictures. Ambos estavam na casa dos vinte anos de idade e Kubrick trazia na bagagem a experiência em três curta-metragens e dois longas, com os quais experimentou todas as funções possíveis na produção de um filme, inclusive levantando o dinheiro para financiar os projetos junto a amigos e parentes, o que garantiu sua liberdade criativa (pois era seu próprio patrão). Tal sistema de produção independente (Kubrick autoproclamou-se um cineasta independente novaiorquino, apesar de não haver existido uma cena de cinema independente no período em que lá vivia) lhe conferiu o controle total sobre suas produções, poderes que jamais alcançaria em Hollywood.
A chegada da televisão aplicou o golpe de misericórdia no antigo sistema de estúdio, apesar da débil resistência de alguns, como a MGM. A palavra chave para a sobrevivência era a diversificação. Os estúdios foram obrigados a descentralizar a produção, dispensar pessoal, negociar com os artistas freelancers filme a filme e a reduzir o número de produções. Muitos estúdios foram absorvidos por corporações maiores, como o caso da fusão da Universal com a MCA records.
Neste panorama, a Harris-Kubrick, empresa de dois funcionários (os dois donos), começou a procurar um livro para adaptar às telas. Selecionaram Clean Brake, de Lionel White, um virtuoso romance policial sobre um assalto a uma pista de corrida de cavalos. Numa rápida negociação, compraram os direitos de adaptação e contrataram o escritor Jim Thompson para escrever um roteiro sob a supervisão de Kubrick. Fizeram um acordo verbal com a United Artists, que já tinha interesse no livro, definindo que se a Harris-Kubrick conseguisse uma estrela interessada no projeto, fariam o filme.
Assim que o roteiro ficou pronto, os jovens realizadores o enviaram para uma grande agência de atores, que o repassou para diversas estrelas. O agente do ator Sterling Hayden ligou demonstrando o interesse de seu cliente no projeto, então Harris e Kubrick retornaram à United Artists para negociar. O estúdio ofereceu duas opções de acordo: poderiam aguardar dezoito meses por um ator da casa ou fazer o filme com “apenas” duzentos mil dólares. Harris não titubeou e aceitou a segunda opção, pois sabia que Kubrick fizera dois longas com orçamentos muito baixos. No entanto, como seria a estreia dos dois em Hollywood, queriam fazer um filme da melhor qualidade possível para causar uma boa impressão na comunidade cinematográfica. Harris decidiu aplicar 80 mil dólares do próprio bolso e mais 50 mil do bolso do seu pai. Mesmo com o orçamento de trezentos e trinta mil dólares, eles teriam apenas vinte e quatro dias de filmagem.
Contrataram o experiente diretor de fotografia Lucien Ballard, com o qual Kubrick travaria a primeira batalha com um técnico da capital do cinema industrial. Durante as filmagens, Ballard mudou a posição de um carrinho de câmera (dolly) e a lente que Kubrick escolhera para filmar, dizendo que não faria diferença. Kubrick, ainda em seus vinte e sete anos, disse calmamente ao veterano de Hollywood: “Lucien, ou você move aquela câmera e a coloca onde ela tem que estar para usar uma [lente] 25mm ou saia desse set e não volte nunca mais!”. Ballard obedeceu o jovem diretor e nunca mais discutiram sobre lentes.
Após a finalização, Harris e Kubrick organizaram uma sessão especial na qual agentes, amigos e os contatos em Hollywood criticaram a estrutura não-linear do filme. Os dois ficaram frustrados com a reação negativa da comunidade cinematográfica e tentaram remontar o filme na forma linear. Perceberam que o diferencial entre o trabalho deles e os inúmeros outros do mesmo estilo era justamente a estrutura, que chamou a atenção deles para o livro. Decidiram manter a estrutura não-linear e assim entregaram o filme ao estúdio, confiando no discernimento artístico que possuíam.
O representante da United Artists gostou do filme, mas foi evasivo quanto a sua distribuição. Diante desta situação Harris e Kubrick tomaram a dianteira anunciando o filme por conta própria, dizendo que eram o novo time da United Artists. O pessoal do estúdio ficou furioso e o encarregado de vendas proibiu que fizessem publicidade por conta própria. Os jovens suspenderam as propagandas e, enquanto aguardavam uma atitude a respeito do lançamento do filme por parte do estúdio, procuraram uma agência para melhor representá-los no jogo de cartas marcadas de Hollywood.
Pouco tempo depois a United Artists comunicou a Harris-Kubrick para que fizessem uma campanha urgente, pois tinham conseguido um espaço para encaixar o filme num programa duplo (em segundo lugar) num cinema de Nova Iorque. Com tão pouco tempo para divulgar o filme e uma posição secundária no programa, a obra não teve muito público e não rendeu o investimento de Harris e de seu pai de volta. Mas chamou o foco de atenção para a Harris-Kubrick e seu ousado e jovem diretor que foi comparado a Orson Welles num artigo da revista “Time”. Os jovens realizadores conseguiram atingir o primeiro objetivo: se fazer conhecer como sangue novo em Hollywood.
Depois de assistir O Grande Golpe, o principal executivo da MGM, Dore Schary, se interessou em comprar o filme e distribuí-lo. A United Artists não quis vender. Então Schary convidou a Harris-Kubrick para unir-se à MGM, o estúdio mais glamuroso do universo cinematográfico.
Harris e Kubrick escolheram o livro Paths Of Glory, de Humphrey Cobb, um romance antimilitarista que denunciava a crueldade de generais franceses na Primeira Guerra Mundial. Schary não se entusiasmou com a ideia e pediu que escolhessem um livro da biblioteca do próprio estúdio. Optaram então por um outro título que deveria aguardar um roteirista da casa retornar para começarem a adaptação. Enquanto o tempo passava, Kubrick e seu colaborador Jim Thompson trabalhavam secretamente no roteiro de Glória Feita de Sangue (Paths Of Glory) durante a noite.
O tempo foi passando e o roteiro que se comprometeram a desenvolver estava longe de estar pronto. O prazo do acordo com o estúdio estava quase vencendo. Numa reunião da diretoria da MGM, Dore Schary foi despedido. Em seguida foram informados de que não cumpririam o acordo e que portanto estava cancelado.
A batalha consistia agora em realizar Glória Feita de Sangue, cujo roteiro estava pronto. Kubrick, que no início de sua carreira profissional trabalhara como fotojornalista na revista Look, teve a ideia de fazer uma sessão de fotos reproduzindo a atmosfera das trincheiras da Primeira Guerra. Recrutou amigos, alugou uniformes de soldados franceses do período e colocou as melhores fotos na capa do roteiro. Este tipo de abordagem era inovadora e demonstrava o espírito independente da Harris-Kubrick. Bateram novamente na porta da United Artists, que exigiu uma revisão no roteiro e uma estrela interessada em desempenhar o papel principal. Após a revisão do roteiro o estúdio disse que ainda assim, se fosse produzido, o filme seria banido na França (o que mais tarde tornou-se realidade).
Era 1956 e Kirk Douglas, uma das maiores estrelas de Hollywood daquele tempo, interessou-se pelo projeto. Ele havia sido indicado para o Oscar e formado recentemente a companhia Bryna Productions e estava procurando novos talentos para trabalhar em seus filmes. Ele havia visto O Grande Golpe e adorado. Num primeiro encontro para discutir o projeto, Douglas disse abertamente: “Stanley, eu acho que esse filme nunca irá render um níquel, mas nós temos que fazê-lo.” Porém Douglas não poderia fazê-lo no momento pois tinha compromissos agendados, assim como Gregory Peck, para o qual também ofereceram o projeto. Muitos agentes nem permitiam que seus atores lessem o roteiro. E como Vicentt LoBrutto ressalta: “era sobre uma distante Primeira Guerra Mundial, não havia mulher no filme e o final estava longe de ser feliz. Ninguém o queria.” Pouco depois Douglas ressurgiu dizendo que havia mudado de planos e perguntou se o papel ainda estava disponível.
Como era de se esperar de uma estrela — e de um empreendedor —, Douglas impôs um acordo despótico no qual receberia um salário de 350 mil dólares pelo filme e a Harris-Kubrick, que estaria incorporada pela Bryna Productions, teria a obrigação de realizar cinco filmes: dois com Douglas e três não necessariamente com ele. Apostando no poder da estrela, assinaram o acordo e Douglas apresentou o projeto à United Artists, com a qual já tinha um filme agendado. O estúdio disse não estar interessado no projeto. O ator chantageou o estúdio afirmando que, se não aceitassem realizar Glória Feita de Sangue, poderiam esquecer o filme que estava agendado. O estúdio capitulou.
Durante a produção surgiram conflitos inevitáveis entre Douglas e Kubrick. Num primeiro momento, quando o ator chegou à Alemanha — onde a produção seria filmada — percebeu que o diretor havia reescrito o roteiro, para pior. Douglas xingou Kubrick, jogando o roteiro pelo corredor do hotel enquanto o diretor explicava calmamente que havia escrito uma versão comercial pois queria ganhar dinheiro. O ator exigiu o roteiro original, pois havia avisado que o filme não renderia dinheiro. Em outro momento, apesar da empresa de Douglas ter sido a produtora a produtora do filme, Kubrick colocava logotipos da Harris-Kubrick por todos os lados, como se fosse a empresa responsável.
O ator veterano Richard Anderson, que trabalhou em Glória Feita de Sangue, comentou que o filme que estavam fazendo era bastante excitante. Kubrick replicou: “Como assim, excitante? É igual a Hollywood. Você já fez muitos filmes, Richard, e este não é diferente do que você fez em Hollywood.” Mas Richard tinha outra opinião: “…eu tinha a sensação de que era bem diferente de tudo que havia feito antes trabalhando no sistema de estúdio. Era mais improvisado, tinha menos gente, era menos autocrático, menos fachada.”
Os recursos da produção permitiram a Kubrick o aperfeiçoamento do seu estilo de trabalho, elevando sua obsessão pela perfeição a novos parâmetros: cobertura de cenas de diversos ângulos (até seis câmeras numa cena de batalha), prática dos inúmeros takes, horas e horas de testes para desenvolver a “explosão perfeita” (consumiu várias toneladas de explosivos durante as filmagens).
Na época do lançamento, Glória Feita de Sangue foi banido da França, na Suíça e em alguns bairros de Berlim. Os italianos o elegeram o melhor filme estrangeiro do ano de 1958, premiando-o com o “Filme de Prata”. Winston Churchil comentou a autenticidade da obra cinematográfica.
Assim como Douglas havia dito, o filme não rendeu dinheiro, mas serviu para lançar Harris-Kubrick nas rodas de conversa dos bastidores de Hollywood, atraindo a atenção de possíveis parcerias.
Kubrick se envolveu na pré-produção de um faroeste que seria produzido e protagonizado por Marlon Brando, a partir de um roteiro de Sam Peckinpah. Enquanto isso, Harris renegociava o excessivo contrato com a Bryna e tentava obter os direitos de adaptação do polêmico romance de Vladimir Nabokov, Lolita. Harris e Kubrick haviam devorado o livro juntos em uma sentada; muito havia sido comentado sobre ele e o potencial comercial era grande, pois o livro chegou a ser o número um na lista dos mais vendidos.
O projeto do faroeste não chegou a um resultado favorável à produção através da parceria Brandon-Kubrick pois o roteiro estava sofrendo constantes alterações e os dois não chegavam a um acordo quanto ao elenco. Brando resolveu dirigir pessoalmente.
Certo dia Kubrick estava jogando pôquer com seus amigos quando de repente o telefone tocou. Quando retornou à mesa, Kubrick disse que teria de ir urgentemente para a Califórnia, pois passaria o fim de semana se preparando para assumir a direção de Spartacus na segunda-feira seguinte.
Spartacus é um épico subversivo e independente comandado por Kirk Douglas. O primeiro diretor havia sido Anthony Mann, que trabalhou durante apenas três semanas. Como a Harris-Kubrick estava sob contrato com a Bryna e Douglas confiava no talento de Kubrick, o jovem diretor foi colocado no meio da arena do cenário da Escola de Gladiadores e apontado como o novo diretor do filme.
Mas Kubrick teria que representar o papel de diretor de Hollywood, um empregado com poderes limitados pelo produtor. Para alguém que buscava cada vez mais o controle sobre seu trabalho, foi um martírio. O calvário de Kubrick em Spartacus o faria renegar a obra.
O roteiro, que não teve nenhuma participação do diretor, estava sendo reescrito diariamente. Kubrick não sabia o que iria filmar no dia seguinte. Este esquema de “trabalho forçado” impediu que o diretor se integrasse com a equipe. Ele parecia deslocado, um solitário. Sua personalidade enigmática e sua exigência por detalhes despertou a antipatia da equipe, principalmente do diretor de fotografia Russel Metty. Eles estavam acostumados à outra imagem de um diretor de Hollywood, a do homem que grita ordens para a equipe, fuma charuto e vive cercado de luxo. É digno de nota que a característica mais lembrada pelos colaboradores de Kubrick é justamente o fato do diretor raramente levantar sua voz. A calma e o autocontrole foram aliados constantes através de sua carreira. Sua discrição no set, sua aparência frágil e seu modo despreocupado de se vestir evidenciavam o antagonismo entre a personalidade Kubrick e o status quo do sistema hollywoodiano. Nada havia preparado aquela equipe a esse diretor diferente.
Mesmo em sua experiência como empregado, o modo obsessivo e perfeccionista de trabalhar persistia: filmou as cenas de todos os ângulos possíveis, refez tomadas inteiras quando as ações de segundo plano não o agradaram, demorou nove meses para finalizar o som do filme e acompanhou de perto todo o processo de pós-produção. Mas a palavra final era de Douglas, que inclusive mandou Kubrick refilmar algumas sequências.
Spartacus marcou o fim do conturbado relacionamento entre Kubrick e Kirk Douglas. A Bryna Productions liberou a Harris-Kubrick do compromisso contratual exagerado que havia sido assinado na produção de Glória Feita de Sangue. Harris e Kubrick voltaram à estaca zero após se libertarem de Douglas. Tudo o que tinham era o direito de adaptação de Lolita, e seis meses mais tarde um roteiro escrito pelo próprio Nabokov.
Retornaram à romaria de bater nas portas dos estúdios com um projeto. A Warner Bros. Fez uma contraproposta, mas só o estúdio ganharia com o acordo. Os jovens saíram em busca de investidores. Neste ponto, sabiam que não teriam muito dinheiro para realizar o filme, portanto, a produção deveria ocorrer num país que permitisse a redução dos custos. Harris procurou um ex-colega de escola cujo pai dirigia uma empresa do ramo artístico e com ele conseguiu levantar um milhão de dólares para iniciar a produção. O dinheiro adicional veio da Seven Arts, empresa de Ray Stark, o astuto ex-agente de Douglas que havia elaborado o despótico contrato entre a Bryna e Harris-Kubrick. O novo acordo exigia que a Harris-Kubrick realizasse Lolita e mais um filme para a empresa.
Como em Glória Feita de Sangue, uma estrela, agora James Mason, interessou-se pelo papel principal apesar de estar atrelado a compromissos. A oportunidade e os parentes o convenceram a largar os compromissos do momento e aceitar fazer Lolita.
Harris foi para a Europa e lá descobriu o plano Eady da Inglaterra, que garantia a produtores estrangeiros consideráveis reduções de custo se 80% dos empregados fossem ingleses, incluindo os atores. Ou seja, o plano Eady limitava o número de norte-americanos que poderiam ser empregados na produção. Segundo Vicent LoBrutto: “O que se iniciou como um acordo pragmático de negócios iria dar uma reviravolta de impacto na carreira de Stanley Kubrick”.
Em Lolita, Kubrick experimentou a liberdade que buscava, apesar das limitações que o roteiro sofreu pois os realizadores submeteram-no à MPAA (Motion Picture Association of America), órgão que controla a censura dos filmes nos EUA. Harris e Kubrick queriam evitar que seu filme fosse terminantemente proibido e não rendesse dinheiro. Mesmo seguindo as indicações da MPAA, o processo foi longo e tortuoso. As filmagens correram bem e durante o trabalho a relação entre Kubrick e o ator Peter Sellers foi tão produtiva que no filme seguinte do diretor Sellers seria o ator principal, desempenhando vários papéis.
Durante a pós-produção, Kubrick e o colaborador Robert Gaffney saíram três semanas pelos Estados Unidos filmando material de segunda unidade em um carro. Nas palavras de Gaffney: “Nós tínhamos a equipe mais barata do mundo”. A empresa que distribuiu o filme foi a MGM.
Concluído o desafio de realizar Lolita, Kubrick estava se tornando obcecado pelo tema da ameaça nuclear pois vivia em seu cotidiano o momento da Guerra Fria. Ele, como muitos outros norte-americanos daquele período, temia estar no ponto central do alvo de um possível ataque nuclear: a cidade de Nova Iorque. Passou a estudar o assunto e comprou os direitos de adaptação do livro Red Alert, de Peter George. Ao escrever um roteiro com o próprio autor do livro, Kubrick não pôde evitar seu viés sarcástico e humor negro, brincando com os temas “sérios”. Harris entrou no jogo e ambos passaram uma noite rindo das possibilidades cômicas do apocalipse nuclear. Mas voltaram a tratar o tema com seriedade em seguida.
Neste ponto James B. Harris decidiu que não produziria o filme, pois chegou à conclusão de que queria seguir uma carreira própria como diretor. Deste modo chegava ao fim a empresa Harris-Kubrick, a parceria que resultou nos filmes O Grande Golpe, Glória Feita de Sangue e Lolita, e que durou quase dez anos. A partir desse momento, Kubrick teria o controle total sendo seu próprio produtor. Poderia se aprofundar ainda mais nos temas de seu interesse e realizar os filmes a seu modo. Estava livre para perseguir suas obsessões, desenvolvendo características pessoais que caracterizariam suas obras através da polêmica, da surpresa e da inovação tecnológica.
Depois que Harris abriu seu próprio escritório na costa oeste, Kubrick lhe disse que faria uma comédia sobre a guerra nuclear. Harris o desaconcelhou e preocupou-se com o amigo, achando que ele estava fora de controle e que arruinaria sua carreira. Mais tarde, Harris disse que Dr. Fantástico tornou-se seu filme preferido.
Mais uma vez Kubrick submeteu um roteiro à MPAA. O presidente do órgão fez severas críticas, principalmente às situações que envolviam o presidente dos EUA. O diretor continuou sua diplomacia com o conhecido chefe da MPAA (devido ao longo processo de Lolita), que lhe foi favorável pois já havia comprovado a habilidade do diretor em abordar temas difíceis.
A parceria com Peter Sellers foi tão intensa que moldou o método de trabalho de Kubrick: o diretor deixava Sellers seguir seu fluxo de improviso e reescrevia a cena, selecionando falas e ações que considerava interessantes.
A paciência e a meticulosidade do diretor se manifestaram novamente exigindo precisão nos detalhes da produção, que deveria recriar realisticamente uma ação militar de magnitude. Durante o processo Kubrick mandou pintar as bombas três vezes, buscando descobrir como deveriam parecer.
Com o sucesso de Dr. Fantástico, Kubrick alcançou fama internacional ao demonstrar competência no controle total de todos os processos que envolviam a feitura de um filme, dos encargos artísticos aos financeiros.
Havia algo de Hollywood em Kubrick, apesar do antagonismo que se evidenciou durante o período em que trabalhou por lá, quando seu espírito independente se chocou com o sistema. Mas uma vez que obteve seus termos e prestígio internacional, o cineasta se aproximou dos grandes executivos de estúdio da Época de Ouro. Stanley Kubrick tornou-se o estúdio de um só homem.
Capítulo II — A Imperfeição Humana como Temática
Analisar um filme através da palavra escrita é uma tarefa ingrata. Diretores e seus colaboradores se esforçam para transmitir suas ideias através das sensações que imagens e sons possam gerar. É bem sabido que o roteiro cinematográfico morre quando o filme é produzido e não se encaixa em nenhuma categoria literária. Analisar um filme de Stanley Kubrick é um desafio, pois o próprio diretor pouco disse sobre suas obras e investiu tempo e dinheiro diminuindo a importância do diálogo (apesar de valorizar a linguagem) e reescrevendo cenas inteiras durante o processo de filmagem.
Analisar os treze longas de Stanley Kubrick em pouco tempo é uma tarefa impossível! Portanto, o que se segue é uma primeira tentativa de apreender o corpo da obra do diretor largamente auxiliada por diversos textos de livros, revistas e jornais publicados no Brasil e no exterior.
No capítulo anterior, observamos a relação entre Kubrick e Hollywood, ressaltando alguns acontecimentos históricos que contextualisaram aquele período. Agora nos deteremos nas influências artísticas do diretor e em seguida analisaremos a temática contida em cada um de seus filmes de longa metragem.
A difícil missão de interpretar os filmes de um diretor que foi adepto da ambiguidade e do enigma torna-se menos árdua quando observamos suas influências artísticas, no caso literárias e fílmicas. Essas afinidades ajudaram a moldar o gosto e o estilo do artista em questão, bem como sua visão de mundo.
No campo da literatura, podemos observar as influências de Sigmund Freud, Franz Kafka, Carl Jung, Ernest Hemingway, Joseph Conrad, Vladimir Nabokov, Homero, Immanuel Kant, Jean Paul Sartre, dentre muitos outros.
Já no campo cinematográfico, além da evidente e pessoalmente confirmada influência do diretor Max Ophuls e sua câmera deslizante, outros grandes diretores conquistaram o interesse de Kubrick: D. W. Griffith, Vsevelod Pudovkin, Sergei Eiseinstein, Fritz Lang, Jean Renoir, Orson Welles, Vittorio De Sicca, Ingmar Bergman, Alain Resnais, Luis Buñuel, Federico Fellini, John Ford, Alfred Hitchcock, dentre outros. É importante observar aqui também a grande influência européia.
A partir destas informações, podemos utilizá-las como filtros para abrir caminhos interpretativos. Segue uma análise sintética da temática de cada filme do diretor (como Kubrick primava por obras abertas e complexas, estas são algumas das inúmeras possibilidades de interpretação).
Fear and Desire
A primeira incursão de Kubrick em longa metragem se deu no universo que marcou metade da sua obra: a guerra. No caso deste filme uma guerra incerta, num campo de batalha incerto, no qual o inimigo mais próximo se encontra dentro dos próprios soldados. Já aqui o diretor mostra o conflito entre a pulsão dos instintos humanos (representada por um jovem soldado que se sente atraído por uma camponesa que a equipe faz prisioneira de guerra) e sua contenção pelo grupo social (representado pelos oficiais superiores que o comandam). Metaforicamente pode-se apreender a representação psicanalítica do jovem como o ID e o grupo de oficiais como o SUPEREGO. Vicentt LoBrutto, um dos biógrafos do diretor, fez uma importante observação, afirmando que neste período da carreira o diretor estava mais influenciado pela literatura (Joseph Conrad e Sartre neste trabalho) do que pelos filmes que assistia. O clima enevoado e obscuro refletia a influência do filme noir.
A Morte Passou Por Perto (Killer’s Kiss)
Neste trabalho Kubrick se envereda pelo gênero policial, percorrendo o submundo de Nova Iorque. O herói é um boxeador que literalmente luta pela sobrevivência e sua carreira está em fase ruim, e ele é muito solitário. A heroína é uma dançarina de boate que não aguenta mais ser maltratada por seu patrão e protetor. Estes dois personagens decadentes unem-se para enfrentar uma realidade não menos obscura. Mas apesar do pessimismo que permeia o filme, Kubrick quebra uma regra básica do filme policial ao criar um final feliz. O diretor conhecia muito bem a realidade que estava retratando, pois havia feito várias matérias fotográficas com lutadores para a revista Look e seu primeiro curta-metragem retratava um dia na vida do boxeador Walter Cartier.
Glória Feita de Sangue (Paths of Glory)
Baseado no romance homônimo (título em inglês) de Humphrey Cobb, o filme retrata um episódio polêmico ocorrido na França durante a Primeira Guerra Mundial: o alto comando militar francês ordenou que toda uma divisão tomasse um objetivo impossível na conjuntura do conflito. Assim que a missão falhou, custando as vidas de muitos soldados, o alto escalão ainda levou os soldados para a corte marcial, acusados de covardia. Esta história controversa serviu bem aos interesses iconoclastas de Kubrick, que a transformou num dos mais incisivos filmes antimilitaristas. O abuso do poder explicitado pela manipulação das tropas pelos generais, mesmo que estes soubessem da morte certa de seus homens, e a diferenciação das classes sociais dentro da hierarquia militar (a opulência dos castelos iluminados do comando e a decadência das trincheiras soturnas cobertas de lama e sangue dos soldados) retratam uma realidade impiedosa, na qual não havia espaço para o melodrama que dominava a maior parte dos filmes do gênero. A guerra de Kubrick não enobrece os homens, mas os coloca uns contra os outros, sejam inimigos ou aliados. O “herói” interpretado por Kirk Douglas não passa de testemunha, incapaz de evitar a tragédia que recai sobre seus soldados. O único momento de alívio ocorre quando na cena final, em que uma jovem alemã, portanto inimiga, é forçada a cantar para entreter os soldados franceses numa taverna. Enquanto a assustada jovem canta, os risos sarcásticos dos soldados passam a acompanhar a canção em uníssono e acabam em lágrimas.
Spartacus
Apesar de ter sido um projeto imposto ao diretor, que não teve nenhuma participação no roteiro e ficou submisso à autoridade de Douglas, Spartacus não destoa do conjunto da obra de Kubrick, seja com relação à temática ou à estética. Baseado no livro homônimo de Howard Fast e roteirizado por Dalton Trumbo (ambos de tendência esquerdista em plena caça às bruxas), o filme conta a trajetória de uma figura histórica real, um escravo que liderou uma rebelião e formou um exército de gladiadores que conquistou grande parte do sul da Itália, derrotando dois exércitos romanos. Mais uma vez a temática da luta de classes e a guerra faziam parte de um filme de Kubrick. Além de cenas de batalha espetaculares (o mínimo que esperamos de um épico), Kubrick aproveitou o elenco de grandes estrelas extraindo desempenhos memoráveis, que constituíram este épico subversivo que ousou fazer críticas sociais incisivas num período conturbado da história norte-americana, apresentando personagens acima da tipificação e utilizando um megaespetáculo do entretenimento como arma política de resistência ao macarthismo.
Lolita
Adaptado do best seller de Vladimir Nabokov, Lolita é a primeira abordagem de Kubrick à comédia de humor negro, gênero que ajudou a definir. O diretor utilizava o humor como estratégia para suavizar a tensão que assuntos-tabu poderiam gerar no público e para atrair a atenção. O filme retrata a vida de um acadêmico maduro e professor de literatura que se torna amorosa e sexualmente obcecado por uma adolescente. A tentação desse amor proibido, pedofílico, consome sua razão e moral. O protagonista vive seu sonhado romance com Lolita e após várias ameaças acaba perdendo-a, levando a estória a um desfecho trágico. O destaque é Peter Sellers, que trabalharia no filme seguinte do diretor.
Doutor Fantástico (Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb)
A obsessão de Kubrick pela ameaça nuclear o fez pesquisar sobre o assunto e adaptar o romance sério Red Alert, de Peter George, na forma de uma — nas palavras do diretor — “comédia de pesadelo”. Para tanto contou com o auxílio do autor do livro e do escritor de humor anárquico Terry Southern. Um general perturbado aciona uma patrulha de aviões B-52 para atacar alvos na Rússia com bombas nucleares. Dentre as diversas situações hilariantes, temos um major caubói, uma farsa circense em plena Sala de Guerra onde os representantes da Guerra Fria brigam como crianças. Um dos aviões atinge o alvo na memorável cena do major caubói montando a bomba como a um touro bravo. A figura sinistra do Dr. Fantástico surge em meio ao caos com teorias absurdas e o mundo explode com a resposta russa que dá um fim ao planeta e à humanidade, que perece numa sequência de explosões nucleares ao som da esperançosa canção We’ll Meet Again. Um final ousado, anárquico e subversivo.
2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey)
O filme foi o resultado da colaboração entre o diretor e o renomado escritor de ficção científica Arthur C. Clark, a partir de seu conto A Sentinela. A obra cinematográfica não segue a forma tradicional ao evitar o mecanismo de identificação (de certa forma o espectador também é uma sentinela). A sequência de “fatos” mostra um misterioso monolito negro que testemunha um momento importante da evolução do homem primitivo: a invenção do primeiro instrumento/arma. Após a bela transição entre o instrumento e uma nave espacial, somos lançados para frente no tempo, num futuro dominado pela tecnologia no qual outros monolitos surgem, participando de vários eventos que culminam com a revolta de um supercomputador de uma nave contra sua tripulação. Apenas um astronauta resiste e passa por uma experiência de alteração do espaço-tempo, uma espécie de portal. O filme termina com uma sequência enigmática de imagens icônicas, uma especulação mitológica entre o homem e o cosmos. Kubrick fez de 2001 uma experiência não-verbal, deixando a maior parte da leitura para o subconsciente.
Laranja Mecânica (A Clockwork Orange)
O livro de Anthony Burgess continha um conjunto de situações e temas irresistíveis para Kubrick (protagonista anti-herói, um indivíduo que é tolhido pelo governo e uma mistura explosiva de sexo, drogas, crime e violência), um diretor que gostava de polêmica. Ele vislumbrou no livro a possibilidade de uma interpretação psicanalítica, já que Freud era uma grande influência sua. A estória trata da vida de um adolescente que vive num futuro próximo, líder de uma gangue que comete os piores tipos de crime. O jovem é preso e na cadeia se submete a um tratamento experimental que prometia curar o marginal, mas o efeito colateral do processo o torna menos humano ainda. A crítica recai sobre a atitude governamental de moldar o sujeito à força e não pelas próprias experiências. Há ainda impagáveis críticas aos psicólogos e à política, na figura de um governador que faz um pacto com o jovem após sua “recuperação”.
Barry Lyndon
Assim como 2001, Barry Lyndon pertence mais às imagens do que às palavras. Baseado num palavroso romance do século XIX de William Makepeace Thackeray, a estória narra a trajetória de um vagabundo irlandês que vive aventuras e desventuras como soldado, desertor, jogador e amante. Ascensão e queda marcam este trabalho que explorou os espaços e personagens do século XIX. O trabalho de direção de arte e fotografia foi quase documental.
O Iluminado (The Shining)
Dando continuidade à incursão em vários gêneros, Kubrick escolheu o terror. Mais uma vez o apelo psicanalítico conquistou o diretor, que retratou a caminhada de um pai de família à loucura, isolados durante um inverno num hotel vazio e sinistro. Adaptado a partir do livro de Stephen King, Kubrick aceitou o terror no nível da patologia psicológica da personagem. O filme acabou resultando num drama psicológico travestido de terror e com algumas cenas tragicômicas. O verdadeiro protagonista acaba sendo o hotel, cuja onipresença é revelada pelos jogos de ponto de vista entre as personagens e o ambiente.
Nascido para Matar (Full Metal Jacket)
Roteirizado a partir do romance autobiográfico de Gustav Hasford, The Short Timers, (o diretor, o autor do livro e Michael Herr fizeram o roteiro), foi o último filme de Kubrick a abordar o assunto guerra, que o acompanhou da juventude à maturidade. O alvo de Kubrick desta vez é a máquina governamental que transforma jovens recrutas em armas letais, durante a guerra do Vietnã. Na primeira parte do filme, o treinamento dos recrutas, escrutina a violenta cultura militar e como uma ideologia dominante constrói a submissão através da linguagem autoritária, ou seja, mais uma vez o diretor faz uma análise social da relação de poder através da estrutura hierárquica militar. Na segunda parte do filme, no Vietnã, Kubrick aproveita para mostrar o choque da cultura oriental com a ocidental, a relação desconcertante entre a imprensa e a guerra e constatar o sucesso do exército na conversão trágica de seus jovens.
De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut)
Destilado pela mente de Kubrick por quase 30 anos, De Olhos Bem Fechados foi roteirizado pelo diretor e o roteirista Frederic Raphael a partir do romance Traumnovelle, do escritor vienense Arthur Shnitzler. O filme encerra apropriadamente um conjunto coerente de 13 provocantes obras. Em De Olhos Bem Fechados, Kubrick deixa de lado os conflitos de grande escala e seus personagens simbólicos para mergulhar no cotidiano conjugal em conflito com a pulsão do desejo individual. Casamento e fidelidade são discutidos num ambiente que mistura sonho e realidade. A aparência de felicidade e harmonia no relacionamento do casal é abalada quando a esposa, diante do excesso de autoconfiança e ingenuidade do marido, resolve abrir o jogo utilizando uma indesejável mas necessária honestidade. Ela desnuda sua suscetibilidade aos imperativos impulsos do desejo. E assim que a mulher descortina o véu da hipocrisia, o marido, aturdido, sai para atender a um chamado envolvendo o óbito de um paciente seu (o marido é médico) e depois anda pelas ruas de Nova Iorque à noite, envolvendo-se em situações oníricas relacionadas a um desejo sexual que não consegue satisfazer pois está cercado pela ameaça da morte. O diretor não se esquece de seu viés da crítica sociopolítica e finaliza a jornada noturna do marido numa mansão na qual ocorre uma orgia misteriosa. Todos os participantes usam máscaras para esconder suas identidades e libertar suas fantasias carnais. A suntuosidade da propriedade mostra que a fachada da mansão cumpre a mesma função das máscaras: ocultar os passatempos dos poderosos que constituem uma elite libertina. No final, a paranoia e a culpa fazem o marido confessar suas desventuras. Apesar das turbulências libidinosas reais ou imaginárias, o casal decide continuar a relação aceitando suas próprias limitações. Kubrick nunca esteva tão próximo de seus personagens, e como disse seu amigo e ex-colaborador Michael Herr: “…não estando preocupado com sangue e ferro desta vez… Stanley estava no clima para o amor.” Fechando o ciclo de sua produção e sua vida, Kubrick mais uma vez surpreendeu a comunidade cinematográfica com sua obra derradeira que curiosamente poderia receber o título de seu primeiro longa: “Medo e Desejo.”
Podemos observar que Stanley Kubrick criou um universo fílmico coerente com suas influências artísticas. Do jovem autodidata do Bronx ao diretor intelectualizado e autoexilado na Inglaterra, Kubrick acumulou experiências e observou com minúncia os mecanismos psicológicos e sociais que constituem o ser humano e sua cultura.
O ponto de vista anti-romântico e na maioria das vezes pessimista o afastou das grandes platéias, que foram ostensivamente condicionadas pelo melodrama. Kubrick explorou os recantos da alma humana e encontrou em seu lado mal, agressivo e perverso uma ferramenta expressiva que trouxe tanto o progresso quanto a destruição através de nossa História.
Como características temáticas recorrentes temos:
- a guerra, que está presente em mais da metade de seus filmes;
- a desumanização, processo de redução da personalidade humana a algo bruto e fundamental;
- a obsessão, em seus mais variados matizes e que inevitavelmente leva a personagem à destruição, como uma hybris (ousadia desmedida) do modelo de tragédia grega clássica;
- criação/ciência e destruição, relação na qual uma leva à outra: a evolução da ciência conduz ao desequilíbrio entre o alto grau de desenvolvimento tecnológico e o atraso moral da humanidade;
- violência social, analisa os mecanismos sociais da contenção dos desejos individuais afim de moldar o sujeito;
- as relações de poder, que retratam a segmentação social e os conflitos de classes;
- a solidão, compreendida como condição humana universal, seja num quartinho de pensão, no meio do campo de batalha ou no vácuo do espaço sideral.
Capítulo III — Os Medos de um Perfeccionista
“Depois de cinco tomadas, qualquer pessoa no mundo consideraria minha filmagem boa. Depois de catorze, seria quando até eu a consideraria perfeita. Mas depois de trinta, eu estava entrando em um novo domínio. Eu estava realmente consciente onde este pé ou aquele dedo estavam. Era fantástico.”
(Garret Brown, inventor e operador do Steadicam em “O Iluminado”)
“Ele [Kubrick] nunca tinha medo de voltar a um cenário ou locação e mudar as coisas à sua volta. Ele não mostraria sequer um único fotograma se não estivesse contente com o resultado.”
(Larry Smith, diretor de fotografia em “De Olhos Bem Fechados”)
Com o passar do tempo, Stanley Kubrick foi desenvolvendo um método próprio de fazer cinema. Sua necessidade por controle aumentava, assim como o intervalo entre suas produções. Seu padrão de exigência definiu uma marca, como um selo de qualidade que determinava um estilo (estética) e temática próprios: “Um Filme de Stanley Kubrick”.
A devoção de Kubrick ao cinema o fez se autoexilar de seu país, em busca do lugar que permitisse uma produção mais barata e que lhe oferecesse liberdade total. Equipes pequenas, mão de obra barata, cenários e estúdios mais baratos e que suprissem as necessidades de cada produção, filmagens em locações. Sua casa no interior da Inglaterra servia a seus propósitos cinematográficos: era onde fazia toda a pesquisa, pré-produção e parte da pós-produção. Muitas vezes era o local onde as equipes comiam. Os numerosos cômodos estavam repletos de câmeras, computadores, aparelhos de som, revistas, discos, livros, fitas de vídeo, mapas, fotografias e tudo o mais que pertencesse a este universo. Seu amigo e jornalista Alexander Walker o definiu como: “…um artista medieval vivendo sobre sua oficina.”
O modo de vida do diretor implicava uma filosofia de trabalho que surpreendia seus colaboradores, sendo a característica mais marcante sua utilização do tempo. Assim como os escritores, os pintores e os artesãos, Kubrick apostava na qualidade do tempo como ferramenta que permite o aperfeiçoamento do trabalho. Ele se dava o tempo que achava necessário para realizar uma obra que fosse criativa e inovadora. Era um dos poucos cineastas (senão o único) que chegava ao set sem idéias preconcebidas de como realizar uma cena, parava e questionava a equipe: “como fazer isso de um modo que nunca foi feito antes? Tal coisa é realista, mas é interessante?” Aprendia como seria um filme no próprio processo de fazê-lo. Outra característica digna de nota era a preocupação exacerbada do diretor com relação ao sigilo envolvendo seus projetos. Todos os membros da equipe do filme, dos atores aos carpinteiros, assinavam um termo que os proibia de divulgar qualquer informação sem o prévio consentimento do diretor, que escrevia as frases que poderiam ser reproduzidas para a imprensa a respeito do filme.
Devido à singularidade dos métodos de Kubrick, analisaremos as principais etapas da produção de um filme, ressaltando as características específicas dos métodos de trabalho do cineasta.
Pesquisa
Foi o ponto de partida da maior parte de suas obras. Ao contrário da maioria dos diretores de Hollywood, Kubrick fazia pessoalmente toda a pesquisa necessária. Quando ele se via mergulhado em um assunto ao nível da obsessão, tinha uma ideia a respeito da temática de seu próximo filme. Telefonava para especialistas de diversas áreas, passando horas colhendo as informações que queria (Michael Herr definiu um período de sua colaboração no roteiro de Nascido para Matar como: “uma ligação telefônica de três anos com intervalos”). Durante sua pesquisa para um projeto de filme sobre Napoleão, que não foi realizado, Kubrick encomendou um contêiner com centenas de livros sobre o general francês.
Na busca de locações para Barry Lyndon, o cineasta despachou equipes para que fotografassem mansões do século XIX que fossem próximas à casa dele. Para obtenção de um cenário realista em O Iluminado, o desenhista de produção viajou por todo os Estados Unidos documentando os detalhes dos hotéis.
Em 2001: Uma Odisseia no Espaço, consultou empresas do mercado e agências do governo para saber suas previsões de como seriam seus produtos e serviços no futuro. Também entrevistou as maiores mentes nos campos da ciência e da religião para que respondessem questões que surgiam durante a escrita do roteiro.
Roteirização
Um fato curioso, notado pelo crítico Richard Schickel da revista TIME num artigo de 1975, era a incapacidade do diretor de inventar uma estória original a partir de suas próprias experiências ou fantasias. No mesmo artigo, o diretor revela que a criação da ficção o fascina e a considera: “uma das capacidades humanas mais fenomenais.” E como não possuía esta facilidade precisava fazer um “trabalho de detetive — descobrir acerca de coisas com as quais não tenho experiência direta”. Por isso o cineasta passou a utilizar a adaptação literária como prática constante, buscando obras que tivessem afinidade com seus pontos de vista e que servissem de matéria-prima para realizar sua versão cinematográfica. O diretor preferia os romances que detalhavam o interior das personagens aos romances de ação e procurava criar o equivalente visual de tudo o que achava estimulante nos livros. Para tanto, Kubrick contou com a colaboração de diversos roteiristas e escritores, muitas vezes os próprios autores dos livros. O único livro que o diretor adaptou sozinho foi Laranja Mecânica. No caso de Barry Lyndon, Kubrick utilizou o livro diretamente como roteiro de continuidade.
Na fase inicial do roteiro, Kubrick geralmente convidava o colaborador para uma reunião em sua casa para que pudessem discutir as possibilidades da estória. Muitos dos roteiristas afirmaram que esta conversa se transformava numa longa sabatina, na qual alguns chegavam à exaustão mental. O ritmo intelectual do diretor impressionou a todos, levando o escritor Arthur C. Clark , colaborador em 2001: Uma Odisseia no Espaço, a concluir que “a obsessão lhe dava energia.”
Aparadas as arestas iniciais, os roteiristas passavam a trabalhar à distância, que era diminuída pelas frequentes e longas ligações do diretor. Assim que a parte do colaborador estivesse concluída, Kubrick editaria o material à sua maneira e mais tarde, durante as filmagens, chegaria a reescrever sequências inteiras.
Direção de Fotografia
Stanley Kubrick iniciou sua vida profissional como fotógrafo da revista Look. E foi justamente a fotografia que despertou seu interesse pelo cinema, chegando a filmar pessoalmente seus três curtas e os dois primeiros longas. Portanto, o nível de exigência do diretor nesta área desafiava o mais preparado dos profissionais. Durante sua passagem por Hollywood, o cineasta entrou em árduos conflitos com dois veteranos: Lucien Ballard em O Grande Golpe e Russel Metty em Spartacus.
É possível observar nos filmes de Kubrick uma consistência visual e um estilo definido: a composição simétrica do enquadramento denota clara estilização, a tendência a centralizar as personagens principais (notadamente nas célebres cenas em que realiza movimentos de acompanhamento de personagem com a câmera), preferência pelas lentes extremamente grande-angulares, algumas cenas feitas com câmera na mão (filmadas pelo próprio diretor), dentre outras características.
Kubrick sempre esteve em sintonia com os avanços tecnológicos, sendo um dos primeiros a utilizar fotos instantâneas como referência para monitorar a iluminação, a utilizar a Steadycam, o sistema de video-assist, os modelos de câmeras mais leves da Arriflex e as unidades de iluminação portáteis da Lowell, para citar alguns exemplos.
Quando a tecnologia disponível não era suficiente para satisfazer suas exigências técnicas, o diretor pesquisava e com o auxilio de empresas especializadas montava o equipamento que necessitava. Foi o caso de sua parceria com a empresa Cinema Products, que adaptou câmeras para usos específicos. O mais surpreendente foi o pedido de Kubrick para adaptar lentes de satélite numa câmera antiga para que pudesse trabalhar com baixos níveis de luz, pois estava determinado a filmar cenas noturnas no interior de mansões do século XIX somente com a luz de velas em Barry Lyndon.
Desenho de Produção
A autoridade e a presença constante de Kubrick em todas as áreas da produção facilitou a integração entre as mesmas, gerando resultados interessantes em cada um de seus filmes. A união dos trabalhos do desenhista de produção, do diretor de fotografia e do cineasta em Dr. Fantástico serviu de referência para a comunidade cinematográfica, da estilização da Sala de Guerra (com sua fotografia contrastada e luzes embutidas) à precisão militar do interior do avião B-52 (Ken Adam, o desenhista de produção havia sido piloto da RAF durante a Segunda Guerra Mundial). Mas a relação entre Adam e Kubrick era delicada, pois o desenhista trabalhava de modo intuitivo e o diretor questionava tudo, exigindo uma razão para cada detalhe. O próprio diretor mandou mudar as cores das bombas nucleares três vezes.
Já em 2001: Uma Odisseia no Espaço, o maior desafio foi a criação da centrífuga, uma espécie de roda gigante que representava o interior da nave Discovery em tamanho natural e que girava 360 graus. Todo o interior foi meticulosamente revestido com módulos de cenário que foram soldados à base giratória. Cerca de doze projetores de cinema foram instalados no interior da centrífuga para gerar as imagens das telas dos painéis da nave por retroprojeção. O artefato chegava à velocidade máxima de 3 milhas por hora e pesava 30 toneladas, girava com luzes, câmeras e todo tipo de equipamento junto.
Em O Iluminado, o desenhista de produção Roy Walker viajou tirando fotos e medidas de hotéis que serviriam de base para a construção dos cenários do Overlook Hotel. Como Kubrick gostava de liberdade para mover a câmera pelo cenário sem a interrupção das luzes tradicionais de cinema, que geralmente ficam sobre pedestais, o conceito de fotografia foi totalmente integrado ao cenário: abajures foram adaptados com lâmpadas especiais e a fiação foi toda instalada como numa construção real. Estas medidas foram tomadas tendo em vista a utilização da Steadicam.
As duas últimas ousadias do diretor se deram justamente na incursão no plano real, duas cidades que ele resolveu recriar na Inglaterra: a Hue do Vietnã e a Nova Iorque dos Estados Unidos. Para recriar as batalhas urbanas em Hue, o cineasta encontrou um bairro industrial decadente prestes a ser demolido. Kubrick pôde demolir prédios de maneiras específicas, construindo o cenário com a destruição controlada. Para completar o ambiente, selecionou uma espécie de palmeira e importou um carregamento de sessenta delas, complementando com duzentas árvores artificiais. Para recriar Nova Iorque o diretor mandou uma equipe para fotografar e medir as ruas e calçadas da cidade. Mandou trazerem até os postes de luz originais.
Efeitos Especiais
Indubitavelmente, a contribuição de Stanley Kubrick no campo dos efeitos especiais alterou o rumo do cinema de ficção. Em 2001: Uma Odisseia no Espaço ele desenvolveu novas técnicas que inspiraram toda uma geração de diretores, dentre os quais George Lucas, Steven Spielberg, James Cameron e Ridley Scott. E foi com este trabalho que ganhou o único Oscar em seu nome.
No início de sua carreira em Hollywood, em Glória Feita de Sangue, o diretor já demonstrava sua exigência ao técnico de efeitos especiais Erwin Lange pois queria que as explosões dos morteiros no campo de batalha fossem realistas. Lange passou horas experimentando novas técnicas até chegar a um resultado que o diretor aprovasse. Só na primeira semana de filmagem gastou cerca de uma tonelada de explosivos.
A realização dos efeitos de 2001 foi um desafio à parte. Para manter as múltiplas atividades em andamento sob controle, uma empresa europeia de sistemas organizacionais foi contratada. A sala principal da produção que centralizava as informações foi apelidada de “Controle da Missão”. A animação dos modelos de naves espaciais consistia em trabalho artesanal, quadro-a-quadro, e totalizaram com as outras cenas de efeitos 16 mil passos separados para obter 205 cenas que envolveram efeitos especiais. Mas o grande salto seria dado na realização da sequência final: o Portal Estelar. Para obter o efeito dessa viagem dimensional, o especialista em efeitos especiais Douglas Trumbull (que trabalhou mais tarde com Lucas, Scott e Spielberg) utilizou uma técnica conhecida por cineastas experimentais, na qual a câmera é mantida com o disparador aberto por longo tempo enquanto imagens são gravadas diretamente no celulóide num fluxo contínuo e não quadro a quadro. Trumbull montou a câmera sobre uma estrutura que comportava painéis gráficos móveis, que eram controlados por computador. O novo sistema foi batizado de Slitscan.
Mais tarde, em O Iluminado, Kubrick manteve uma equipe só para filmar a cena em que uma onda de sangue sai pela porta de um elevador. Um dos atores que participou do filme relatou que ouviu comentários nos bastidores de que levou cerca de um ano para que conseguissem uma tomada que satisfizesse o cineasta.
Direção de Atores
A maneira de se obter a performance desejada de um(a) ator(iz) é absolutamente relativa. Não existe fórmula. São diversos os métodos de interpretação, sendo alguns deles até antagônicos. Cada ator tem um grau de sensibilidade e uma maneira específica de atingir essa emoção. Portanto, cada personagem a ser desenvolvida inicia-se da estaca zero.
Kubrick distinguia muito bem estas variáveis e abordava cada ator e atriz de maneira diferente. O exemplo mais explícito deste aspecto se deu no set de filmagem de O Iluminado: o diretor conversava calmamente com Jack Nicholson, construindo a personagem em colaboração; já com Shelley Duvall Kubrick gritava e criticava o tempo todo, tentando extrair uma personagem angustiada e assustada de uma atriz tranquila e gentil (provavelmente ele não teve outra saída, pois a característica mais lembrada pelos colaboradores que trabalharam com o diretor é de que ele nunca levantava sua voz, sempre mantinha um tom suave).
O cineasta não gostava de dar muitas indicações aos atores, pois gostava de ser surpreendido pela performance, por alguma improvisação. Ele dava um longo tempo para que os atores desenvolvessem suas personagens durante o período de ensaios. Mesmo durante as filmagens era dado todo o tempo necessário ao ensaio de cada cena antes de rodar.
O processo de filmagem de Kubrick era muito diferente da prática da indústria cinematográfica norte-americana. O padrão de exigência do diretor podia render apenas uma cena ou um plano num dia de filmagem. Certo dia em Barry Lyndon, toda a equipe formava uma grande caravana em busca de locações interessantes, os atores estavam maquiados e vestidos, todo equipamento preparado para rápida montagem. Rodaram o dia inteiro dentro das peruas e não filmaram nada.
O mais temido e famoso artifício do diretor era a numerosa repetição de takes. Nenhum ator saiu ileso deste processo que podia variar de uma média 30 a um máximo de 140. Kubrick se defendia dizendo que os atores não se preparavam o suficiente, que só decorar a fala era pouco. Em seu conceito os atores começavam a render a partir vigésimo take, quando não estavam mais conscientes do que diziam. E aguardava também o elemento surpresa, o algo mais — uma variação do “instante mágico” de Cartier-Bresson — que acreditava que viria através da repetição indefinida. Apesar da fama de controlador obsessivo, com atores como Peter Sellers, Jack Nicholson e Lee Ermey Kubrick deixava a improvisação fluir, assistindo de camarote às surpreendentes performances. A relação com Sellers foi a estrutura dorsal de Dr. Fantástico, segundo Vicentt LoBrutto: “Como em Lolita, Kubrick permitiu que Sellers (grande improvisador) primeiro explorasse [a cena] de um modo desenfreado, e então o diretor selecionava momentos e falas de suas improvisações para reescrever a cena, moldando o fruto da inspiração.” Podemos chamar o processo de uma “liberdade vigiada”.
Montagem
Michael Herr, mais uma vez, fez uma interessante observação: “[para Kubrick] ritmo é estória assim como personagem é destino.” Como profundo conhecedor do cinema, o diretor adaptava seu estilo ao tipo de estória que queria retratar. Buscava a harmonia entre forma e conteúdo. E a montagem era para ele a fase decisiva (como fã de Orson Welles, Kubrick gostava de parafrasear o mestre dizendo que a organização da cena vinha da fotografia, a interpretação do teatro, os diálogos da literatura; mas a especificidade do cinema vinha da montagem).
Basta notar os diferentes ritmos de seus filmes: as durações longas e contemplativas dos planos de 2001 e Barry Lyndon e o ritmo cinético e anárquico de Laranja Mecânica.
Quando não estava tocando algum projeto específico, o diretor costumava gravar seus comerciais de televisão preferidos e remontá-los, só para exercitar a linguagem.
Trilha Sonora/Musical
O estilo do uso que Kubrick fez com a música também influenciou muitos. Um grande exemplo dessa influência foi a utilização do trecho da ópera As Valkirias, de Richard Wagner, durante a cena de bombardeio a uma vila de vietcongues em Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola. O contraste entre cenas dramáticas ou de conteúdo polêmico e música de valores mais “nobres” e eruditos ou divertidos e populares, esta mudança de contexto e significado com um ponto de vista crítico, tornou-se uma característica indelével do cineasta.
Em seus primeiros filmes trabalhou com o compositor também jovem Gerald Fried, com quem dividia a paixão pela música percurssiva (Kubrick havia sido baterista de uma banda de jazz na escola). Mas com o passar do tempo foi dando cada vez menos importância para a criação de música original, principalmente após o sucesso das elegantes cenas espaciais ao som de Danúbio Azul de Johann Strauss e o poder épico de Assim Falou Zaratustra de Richard Strauss. Gostava de pesquisar músicas de todos os estilos, constituindo uma invejável discoteca e uma coleção de diversos tipos de aparelhagem de som, ambos sendo constantemente atualizadas. Um método que costumava utilizar com atores consistia em tocar uma música específica para estimular uma reação e criar um clima favorável no set (somente em cenas sem diálogo, logicamente).
Contratava os compositores para fazerem versões ou variações de músicas que havia selecionado nas pesquisas — fato que o impediu de trabalhar com grandes compositores como Bernard Herrmann, que recusou trabalhar em Lolita ao perceber que o diretor queria uma versão orquestrada de uma música popular.
A utilização de músicas populares chegou ao auge em Nascido para Matar, no qual a seleção das músicas da época do combate ocupavam pouco mais que a metade do tempo da trilha incidental.
O ecletismo musical do diretor pode ser conferido também na trilha de sua última obra, De Olhos Bem Fechados.
Com relação ao tratamento sonoro, podemos destacar a utilização dos microfones de lapela, que o diretor preferiu pois eliminava a presença do boom, aumentando a liberdade de movimento da câmera pelo cenário.
Apesar de trabalhar apenas como mão de obra em Spartacus, Kubrick não conteve seu padrão de exigência. O relato de Don Rogers, o gravador de som na pós-produção do filme, é revelador: “Foi demorado. Stanley é um verdadeiro perfeccionista, um perfeccionista exigente. Ele quer tudo exatamente perfeito. [levou] Nove meses! Foi o mais longo show que trabalhei em toda minha vida.”
Divulgação e Distribuição
Apesar de trabalhar como diretor-produtor em dois filmes bem sucedidos até o final da década de 60, Kubrick só conseguiu a liberdade que almejava ao se associar à Warner Bros., que lhe deu controle total sobre seus filmes. Laranja Mecânica foi seu primeiro teste no mercado de promoção de filmes. O diretor montou uma equipe para analisar os dados referentes às bilheterias das salas de cinema dos Estados Unidos e de outros mercados. Depois de analisar as salas que rendiam mais com filmes no estilo do seu, Kubrick traçou um plano de lançamento que foi rejeitado pelo chefe executivo da Warner. O cineasta redobrou suas energias e fez uma pesquisa de mercado tão intensa quanto suas pesquisas de pré-produção, indicando que o estúdio estava fazendo o filme perder dinheiro na Europa, usando como referência as bilheterias de 2001 no mesmo mercado. Marcou uma reunião e apresentou os dados aos executivos, e ameaçou tirar o filme das mãos da Warner se nada fosse feito. Uma disputa interna pelo cargo de chefe executivo facilitou a vida do diretor. O executivo que havia rejeitado o plano de Kubrick foi despedido e o diretor foi apresentado num encontro anual do estúdio como um gênio que combinava senso estético com a responsabilidade fiscal.
No início, Kubrick lançava seus filmes de forma mais lenta, criando o efeito do boca a boca para aumentar os ganhos. Mas o tempo foi passando e o mercado foi mudando. O efeito filme de verão estava se solidificando e a necessidade de ganhar dinheiro rápido em várias salas simultaneamente tornou-se uma arma para a sobrevivência. Tal estratégia foi utilizada para vender seus filmes a partir de O Iluminado.
Diferentemente da maioria dos diretores de cinema, que viajam para descansar e deixam os filmes nas mãos dos estúdios, Kubrick acompanhava todo o processo de pós-produção. Fiscalizava e assistia todas as cópias que seriam distribuídas para as salas de exibição, tendo rejeitado várias vezes a qualidade da imagem ou a mixagem do som.
Quando chegava o momento de fazer uma premiere, o diretor manejava o projetor pessoalmente, certificando-se do foco e controlando o nível do som. Além deste cuidado, mantinha seus amigos e colaboradores como fiscais de qualidade pelo mundo, controlando sempre que possível a qualidade da projeção de seus filmes.
Considerações Finais
Nossa jornada informativa nos mostrou o jovem cineasta em busca da emancipação profissional, o diretor maduro que lançou seu olhar clínico sobre os impulsos destrutivos que nos separam e o artista quase artesão que dedicou sua vida a desenvolver métodos de trabalho meticulosos afim de dominar seu ofício.
Três faces de um mesmo homem que nos fez caminhar por estranhos labirintos cinematográficos, nos quais trazia à luz um mundo que queríamos esconder, ou ignorar.
Como pudemos averiguar, a investida de Stanley Kubrick no universo trágico do homem se deu através de técnicas inovadoras e métodos exigentes. Portanto, ao confrontar a temática do diretor (caracterizada pela imperfeição humana) com a sua metodologia (definida como perfeccionista), perceberemos que uma paradoxal coesão entre ambos aspectos se manifesta na figura de Stanley Kubrick através da obsessão.
Se interpretarmos a obsessão como um defeito, teremos uma imperfeição. Uma vez comprovada a personalidade perfeccionista do diretor teremos Kubrick: Perfeccionista do Imperfeito, o que nos leva a um último comentário sobre um dos principais assuntos que o diretor discutia com o colaborador Garret Brown: a perfeição e o seu caráter ilusório.
Referências Bibliográficas
Livros
- O cinema de Hollywood. Philipe Paraire, Martins Fontes, 1994
- Stanley Kubrick: a Biography. Vicent LoBrutto, DonaldI. Fine Books, 1996
- O cinema americano dos anos 50. Oliviere-Rene Veillon, Martins Fontes, 1993
- O gênio do sistema. Thomas Schatz, Cia das Letras, 1991
Artigos de jornais nacionais
- Clássico antimilitarista não perde a força. Luiz Carlos Merten, O Estado de São Paulo, Caderno 2, 7/08/1998
- Deste grande filme o diretor não gostava. Luiz Carlos Merten, O Estado de São Paulo, Caderno 2, 1999
- O espetáculo do cinema. Inácio Araújo, Folha de São Paulo, Ilustrada, 1999
- Os clássicos de Kubrick. Luiz Zanin Oricchio, Folha de São Paulo, Ilustrada,1999
- O amor e a máscara. Jorge Coli, Folha de São Paulo, Ilustrada, 1999
- Filme dissolve o horror de Traumnovelle. Bernardo Carvalho, Folha de São Paulo, Ilustrada, Setembro de 1999
- O natal diabólico de Bill e Alice. Laymert Garcia dos Santos, Folha de São Paulo, 1999
Artigos de revistas nacionais
- O Vietnã iluminado. José Geraldo Couto, Revista Set, Ed. Azul, 1987
Artigos de revistas internacionais
- By means of music — a concert for Stanley Kubrick. Programme notes by Jonathan Finney, April 2000
- A sword in the bed. Stephen Pizzello, American Cinematographer, October 1999
- Quest for perfection. Ron Magid, American Cinematographer, October 1999
- The old ultraviolence. Vicent Lobrutto, American Cinematographer, October 1999
- Kubrick. Michael Herr, Vanity Fair, August, 1999
- Inner demons: flawed protagonists & haunted houses in The Haunting & The Shinning. Creative Screenwriting, Daniel S. Duvall, Jully/August, 1999
- Not just chitchat: dialogue in the screenplays of Stanley Kubrick. Ira Neyman, Creative Screenwriting July/August, 1999
- Ears Wide Open. John Bender, Film Score Monthly, September/October, 1999
- Kubrick’s Shining. Richard T. Jameson, VanityFair, 1999
- Resident Phantons. Jonathan Romney, Vanity Fair, 1999
- Full Metall Jacket: Cynic’s Choice. Ron Magid, American Cinematographer, September, 1987
- Completely missing Kubrick. Michael Herr, Vanity Fair, April, 2001
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