O Sonho Americano e Outros Contos de Fadas, novo filme de Abigail Disney e Filhos do Katrina, filme de estreia de Edward Buckles Jr., escolhem o Cinema como local de denúncia da desigualdade social nos Estados Unidos e marcam presença no Panorama Internacional Contemporâneo da 12ª Mostra Ecofalante de Cinema.
Por Giuli Gobbato
Dois Contos de Fada Americanos
Em O Sonho Americano e Outros Contos de Fada (2022), a cineasta Abigail Disney denuncia a empresa de seu tio-avô, Walt Disney, apresentando-nos a situação miserável de 4 funcionários da Disneylândia, que reivindicam por melhores pagamentos para garantir alimentação e acesso à saúde privada. Já em Filhos do Katrina (2021), Edward Buckles Jr. adentra um espaço de vulnerabilidade ao perguntar, pela primeira vez, como estão as crianças que, como ele, sobreviveram ao Furacão Katrina em 2005.
Apesar dos 3.000 quilômetros que separam Anaheim, na Califórnia, e Nova Orleans, na Louisiana, os dois filmes estão conectados pela negligência estatal, crescente desde a década de 1970 nos Estados Unidos. Compartilham também de uma proposta parecida: contestar histórias institucionalizadas na cultura estadunidense. Lançado primeiro, Filhos do Katrina contesta um dos “outros contos de fadas” apontados pelo título de O Sonho Americano: a narrativa estadunidense da reconstrução completa de Nova Orleans após o furacão, ao mostrar os efeitos ainda presentes do desastre, tanto na cidade quanto na população natural de lá.
As duas produções são conduzidas por meio de entrevistas e narração, com montagem cronológica, imagens de arquivo e animações como forma de recontar o passado. O formato documental escolhido pelos dois diretores é praticamente o mesmo, embora alcance resultados diferentes. Em Katrina, a mediação e participação de Edward Buckles Jr. como personagem pluraliza e reforça os traumas, resultando em vulnerabilidade. Em Sonho, a presença de Abigail como narradora distancia e controla as vozes das verdadeiras vítimas da Walt Disney Company, resultando em alienação. Embora o último não consiga atingir o que se propõe, ele ganha motivo de existência quando assistido junto a outros documentários sobre a ilusão americana, como Filhos do Katrina.
A narrativa do “sonho americano” é explorada como um conto de fadas no filme, a partir da criação da Disney por Roy e Walt Disney, em 1923, visto como a realização concreta de um sonho americano. Ainda que conservadora no universo documental, a linguagem didática se torna válida quando o público-alvo do filme é revelado no final, no encerramento da carta aberta de Abigail Disney: “Caros Bobs [Iger e Chapek, CEOs da Disney], mandei um e-mail, mas vocês não ouviram. Então, eu fiz um filme.”
No entanto, o documentário não dá voz aos trabalhadores, mas os usa como exemplos ao construir a denúncia e justificar o envolvimento de Abigail Disney nessa luta sindical. A intervenção da sobrinha-neta é tão presente que a menção da influência racial na desigualdade social do país por uma entrevistada parece ser podada pela diretora na edição, pois o assunto desaparece pelo resto do filme. A sensação de superficialidade parece ser popular entre o público de O Sonho Americano e Outros Contos de Fada. No debate após a exibição do filme, organizado pela Mostra Ecofalante, a convidada Luiza Nassif disse ter ficado surpresa que Abigail Disney conseguiu construir um documentário de 87 minutos sobre os impactos da macroeconomia e da concentração de renda, sem sequer mencionar o termo “neoliberalismo” ou comentar a política internacional. “É um filme tão americano que esqueceu que existem outros países além dos Estados Unidos.”, completou ela.
Já a potência de Filhos de Katrina surge na sua falta de pretensão para com o público. “Ninguém nunca perguntou às crianças como elas estavam. Então, eu vou perguntar.”, constata o diretor no início. O filme nasce primeiro para seus personagens, e depois para o público. Por meio da certeza de que “a arte cura”, o diretor dialoga com seus alunos adolescentes sobre o ocorrido e eventualmente se torna vulnerável junto às outras vozes no filme. Assim, similar a Edifício Master (2002) de Eduardo Coutinho, a “carta aberta” de denúncia é intrínseca ao diário compartilhado em vídeo, que Buckles constrói ao longo de 7 anos.
Resgatando imagens de arquivo da época – muitas vezes amadoras, já que os telejornais negligenciaram a população de maioria negra sobrevivente ao Katrina – a contestação da narrativa de reconstrução de Nova Orleans sequer precisa ser verbalizada, pois é evidente diante das imagens. E diferente de Abigail Disney, é na voz de outro personagem, inclusive, que Edward Buckles Jr. abre mão da autoria de seu filme, construído de forma coletiva – argumento evidente até nas animações e no pôster: “Nova Orleans é uma cidade africana. Nós somos um povo oral. […] O Katrina se tornou um folclore e nós somos os narradores.”
Diferente de Filhos de Katrina, que já tem distribuição garantida pela HBO Max, O Sonho Americano e Outros Contos de Fada está com dificuldades de encontrar parcerias que aceitem participar do ataque direto à Walt Disney Company, atualmente dona de uma das maiores plataformas de streaming do mundo, o Disney+. Mas seu título já nos convida a buscar outras narrativas falsas em outras obras. Filhos do Katrina é apenas um dos vários lançamentos que tratam de racismo ambiental, desigualdade social e economia que se tem acesso, enquanto O Sonho Americano procura uma casa. Até lá, as discussões iniciadas nesses encontros já são mais do que bem-vindas, e mesmo atrasadas e insuficientes, têm seu mérito em simplesmente não abraçar o silêncio.
Biografia:
Giuli Gobbato é cineasta, comunicadora audiovisual e escritora. Formada em Cinema pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), sempre explorou o som de todas as formas, inclusive na música. Foi montadora e diretora de som em diversos curta-metragens, além de dirigir e roteirizar dois curtas independentes. Atualmente pesquisa a acessibilidade na comunicação.
—
A cobertura da 12ª Mostra Ecofalante de Cinema faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.
Agradecemos à Atti Comunicação e Ideias e Francisco Cesar Filho por todo o apoio na cobertura do evento.
Equipe Jovens Críticos Mnemocine:
Coordenação e Idealização: Flávio Brito
Produção: Bruno Dias
Edição: Luca Scupino
Edição Adjunta e Organização: Rayane Lima
Share this content:
Publicar comentário