Águas do Pastaza (2022), primeiro longa-metragem da portuguesa Inês T. Alves, e parte da seleção do Panorama Internacional Contemporâneo da 12ª Mostra Ecofalante de Cinema, traz como protagonista a conexão pura e inocente de crianças com a natureza, documentando o cotidiano da comunidade indígena Achuar e provocando uma saudade pelo desconhecido.
Por Giuli Gobbato
Às margens do rio Pastaza, os indígenas Achuar vivem no interior da Amazônia peruana. A portuguesa mergulhou na vida da comunidade e foi conquistada pelas crianças do local que, de acordo com ela, tornaram “impossível não ter vontade de fazer um filme”. De forma contemplativa, o documentário observacional emula o olhar da diretora, que também filmou, roteirizou e editou o longa. Com ela, conhecemos as casas da comunidade, os barcos, a alimentação e até as formas de divertimento das crianças da comunidade. A ausência dos adultos até os últimos 5 minutos de filme sequer é questionada, já que a autonomia do grupo infantil é admirável. Com supervisão apenas da câmera, circulam mata adentro com segurança e destreza, além de navegarem o rio para pesca e locomoção.
A linguagem contemplativa não é mais novidade no universo documental, o que afasta alguns espectadores. No entanto, a experiência voyeurística proposta por Inês T. Alves parece ter sido abraçada pela maioria dos espectadores na Mostra, de acordo com alguns comentários após a sessão. O som da natureza, colocado em primeiro plano na mixagem de som, torna fácil de se deixar levar pelo ambiente meditativo do filme. Não é à toa que, quando um celular surge em tela, tristeza e decepção o acompanham, pois a conexão das crianças com a natureza é desequilibrada pela atenção que dão ao dispositivo.
O primeiro som não-amazônico no longa é a música sempre presente do celular, além da luz de sua tela, que quebra a noite escura nas margens do rio. Contudo, a angústia logo vai embora quando vemos que usam o aparelho não apenas como instrumento investigativo do próprio habitat, mas também o incorporam às suas atividades tradicionais. É claro que esse processo de invasão moderna não aconteceu durante o filme – inclusive temos indícios de uma recusa das tecnologias quando, no início, as crianças brincam de peão em cima de uma placa de energia solar. Mesmo assim, a diretora parece emular na montagem o processo de descoberta da presença tecnológica no interior denso da Floresta Amazônica, materializando seu discurso de equilíbrio entre origens e inovações.
A pureza no olhar das crianças ao encontrar novas tecnologias é cativante, também presente nos momentos que se deparam com insetos estranhos ou quebram barbatanas de peixes para comer. É subentendido que o público-alvo do filme são os adultos, em especial habitantes de centros urbanos – alguns dos quais talvez nunca tenham refletido sobre o que lhes foi ensinado, principalmente em relação à natureza. A observação do dia-a-dia da comunidade tem quase uma função terapêutica ao expor o público a uma diferente realidade pela qual qualquer repulsa ou impulso reforça a validez desse modo de vida. A frase “tudo nos é ensinado” ecoa pelo filme, desde a partilha com a diretora até quando as crianças dividem suas técnicas entre si.
Infelizmente, é evidente a necessidade de grande esforço para conservar suas tradições, conforme testemunhamos a invasão gradativa do mundo além da Amazônia na comunidade. Logo nos primeiros minutos de filme, descobrimos que o mundo hispânico peruano já os atingiu de maneira irreversível. As crianças falam espanhol entre si, vários de seus nomes são de origem espanhola, usam roupas com estampas de princesas da Disney e estudam inglês no colégio – algo que parece até irônico, quando conhecemos o local onde vivem. Mesmo que as imagens contradizem o discurso utópico de Inês, de que o rio basta para a vida e a sobrevivência desse grupo, a diretora tenta preservar ao máximo esse mundo à parte. Não é por acaso que o título original da obra é na língua indígena Achuar, Juunt Pastaza entsari. Apresenta o Rio Pastaza como um personagem, adorado e superior às influências modernas, discurso claro na última cena do longa, na qual os adultos carregam mais um barco para seu precioso rio, enquanto as crianças se divertem nas águas.
Águas do Pastaza é uma experiência indispensável para relembrarmos de onde viemos e ao que realmente servimos e respeitamos. É com a pureza do olhar infantil que descobrimos a essência da vida e refletimos sobre nossa trajetória até aqui. Talvez seja este o motivo que despertou a diretora a fazer o filme: a nostalgia, até por aquilo que não vivemos, nos conecta ao mundo como mais nada.
Biografia
Giuli Gobbato é cineasta, comunicadora audiovisual e escritora. Formada em Cinema pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), sempre explorou o som de todas as formas, inclusive na música. Foi montadora e diretora de som em diversos curta-metragens, além de dirigir e roteirizar dois curtas independentes. Atualmente pesquisa a acessibilidade na comunicação.
—
A cobertura da 12ª Mostra Ecofalante de Cinema faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.
Agradecemos à Atti Comunicação e Ideias e Francisco Cesar Filho por todo o apoio na cobertura do evento.
Equipe Jovens Críticos Mnemocine:
Coordenação e Idealização: Flávio Brito
Produção: Bruno Dias
Edição: Luca Scupino
Edição Adjunta e Organização: Rayane Lima
Share this content:
Publicar comentário